sábado, 8 de janeiro de 2022

Butelo e casulas no castelo: Bragança celebra símbolos gastronómicos transmontanos

 Ao primeiro olhar é semelhante a outro enchido, mas o butelo só se descobre verdadeiramente depois de ser aberto. É, a par das casulas e dos cuscos, um dos mais dignos representantes da gastronomia de Trás-os-Montes, e pode ser provado até ao final de fevereiro


Ao primeiro olhar é semelhante a outro enchido. Podia ser uma paiola ou um paio tradicional, mas o butelo só se descobre verdadeiramente depois de ser aberto. Lá dentro, carne de porco, costelinhas e ossos do espinhaço, envolvidas pelo bucho ou pela bexiga do animal. Cumprindo o desígnio do aproveitamento completo do porco, o butelo é um dos mais dignos representantes das tradições de Trás-os-Montes e, com as casulas (as cascas do feijão), é protagonista de um evento gastronómico, que anima Bragança durante os fins de semana de 8 de janeiro a 27 de fevereiro.

Na região da Terra Fria, a lareira aquece as mãos arrefecidas pelos invernos rigorosos, é local de reunião, de confeções com panelas de ferro e ajuda a conservar os enchidos resultantes das matanças do porco. O proeminente butelo é um deles. É colocado sobre a fogueira, recebendo o calor e algum fumo para depois se consumir no “Sábado de Carnaval”. Para fazer o butelo, recorre-se ao bucho (e até à bexiga) do porco, recheando-o com ossos do espinhaço e costela de porco de raça bísara, ainda com carnes agarradas. Essas carnes marinam em sal, alho, vinho, água, louro e colorau durante alguns dias. O butelo é o elemento de maior calibre de um prato famoso em Trás-os-Montes, no qual tem a companhia das casulas, ou “cascas”: estas vagens são secas com o feijão no interior, sob palhas e depois ao sol, dispondo-se por exemplo em mantas nas eiras ou varandas das casas, um processo que acaba por ser mais um método de conservação.

Na véspera da confeção, deixam-se as casulas a demolhar. Coze-se o butelo e aproveita-se essa água para fazer o mesmo com as casulas. Numa fase mais avançada da cozedura acrescentam-se as batatas, cenouras e o butelo. Este vai servir aberto e ladeado pelas casulas e os legumes, levando caldo da cozedura e rega de azeite transmontano. Há quem acompanhe com orelheira, outras partes do porco e enchidos.

Prato de butelo com casulas

Butelo no Castelo
Para provar, nada melhor do que rumar até Bragança nos fins de semana entre 8 de janeiro e 27 de fevereiro e aproveitar a iniciativa Butelo no Castelo. A Tasca do Zé Tuga (Tel. 273381358) preparou dois menus especiais dedicados a tão emblemático produto: o “Cozido de butelo”, com a dose individual a custar €20, e uma ementa de cinco momentos, com “Trufa de butelo e casulas”, “Cuscos de butelo e hortelã”, “Caldo do cozido”, “Cozido de butelo”, “Torta de casulas” ou “Leite-creme de casulas”. A experiência custa €40 e inclui vinho e café.

Preparação de cuscos em Trás-os-Montes

Os espantosos cuscos transmontanos
A região de Trás-os-Montes é guardiã de segredos surpreendentes como os cuscos, um produto que se acredita ter sido trazido do Magrebe para a Península Ibérica pelos muçulmanos, à semelhança do que aconteceu com outras rotas que o difundiram pelo mundo. Preserva-se há séculos nesta região e é uma das suas heranças mais genuínas. Em Vinhais, mãos hábeis e pacientes produzem-nos a partir de trigo Barbela. Salpicam a farinha, “torcem-na” formando flocos através de movimentos que não é suposto esmagarem a massa, mas sim “acariciá-la” até se formarem flocos consistentes. Estes grãos passam na “criva”, secam, são envoltos em panos de linho e colocados numa cuscuzeira de lata furada no fundo, que depois fica a ferver sobre um pote de ferro com água. Os cuscos são assim submetidos a uma pré-cozedura a vapor e, quando ela termina, chamam-se “carola” e podem ser degustados simples, com açúcar ou mel e canela. Podem também voltar a secar e aí é preciso “torcerem” de novo. Neste caso, ficam aptos a serem cozinhados e servirem de guarnição em pratos mais compostos, à imagem do arroz. A partir daqui, põe-se a imaginação a funcionar. Podem ser servidos com produtos regionais, como cogumelos silvestres ou enchidos, ou ainda cozer em leite e serem polvilhados com canela, satisfazendo os mais gulosos.

A preservação deste património deve-se à perseverança da população, um esforço reconhecido pela restauração local, que tenta manter “acesa a chama” e inclui cada vez mais os cuscos transmontanos nos seus menus, mesmo com abordagens criativas. Uma das últimas criações dos irmãos Geadas (Óscar e António Gonçalves) no premiado G Restaurante, na Pousada de Bragança (Tel. 273331493), são os “Cuscos de Vinhais com amêijoa pé-de-burro e gamba vermelha”.

Paulo Brilhante

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