sábado, 22 de janeiro de 2022

Quintal Literário

Por: A. M. Pires Cabral

Trindade Coelho

Estou mais que convencido, e capaz de apostar dobrado contra singelo, que este nome Trindade Coelho dirá hoje muito pouco ou mesmo rigorosamente nada a noventa e cinco por cento dos trasmontanos. Dos restantes cinco por cento, uma boa fatia recordará o nome apenas porque foi aluno (tal como eu fui) de um célebre colégio em Macedo de Cavaleiros, o Externato Trindade Coelho; mas nem por isso terão questionado vez nenhuma quem diabo seria o sujeito que apadrinhava o colégio.
Por Mogadouro, terra natal de Trindade Coelho, é claro que os números não são assim tão drásticos. Que raio, sempre é um filho da terra, porventura o único que granjeou verdadeira reputação nacional. Há uma estátua dele na desafogada avenida central da vila e o seu nome foi dado a um largo e à Biblioteca Municipal ― mal seria que não se soubesse quem foi. Mas de saber quem foi a lê-lo vai a sua distância e, bem vistas as coisas, não ter lido um escritor vem a ser o mesmo que não saber quem ele foi.
Pois bem, Trindade Coelho foi isso mesmo, escritor, tão discreto e suave como a pessoa que o escritor habitava. O encanto principal vem-lhe justamente dali, da discrição e suavidade dos seus contos, reunidos no livro que chamou Os meus amores ― no género rústico, uma verdadeira obra- -prima. Tanto, que a obra tinha tido, até 1974, catorze edições; de então para cá admito que tenha havido ainda uma ou outra, se bem que o livrinho não quadre muito com as preferências que o leitor de hoje manifesta por uma ficção derrancada espiritualmente, toda acção e movimento, e seca como um pau de virar tripas em matéria estética.
José Francisco Trindade Coelho nasceu, como já se disse, em Mogadouro, em 18 de Junho de 1861. Foi esse ano marcado pela morte de D. Pedro V e subida ao trono de D. Luís: a substituição de um rei amado do povo por outro que não se soube fazer amar. Nas letras pátrias, para além do nascimento de Trindade Coelho, 1861 é o ano da publicação das Memórias do cárcere, um livro de memórias de Camilo Castelo Branco que anda quase sempre mal avaliado na sua excelente qualidade.
Trindade Coelho não teve vida longa: morreu em 1908, da maneira que já veremos. Tão-pouco foi feliz, a sua vida. Era um homem derrotado pela sua própria psique que propendia para o mórbido, para as crises de neurastenia e desânimo diante dos seus sofrimentos morais e diante da maldade humana que quereria regenerar com o exemplo da sua própria bondade, mas não pôde. Amargurado, acabou por se suicidar em Lisboa. Repetiu assim, nesse gesto supremo e derradeiro, o que vira fazer em 1890 a Camilo Castelo Branco, um dos seus mais generosos leitores e protectores.
Na sua relação com Camilo, há um ponto que não deixa de nos causar algum incómodo, embora tenhamos de o ver ‘com olhos de época’.
É o próprio Trindade Coelho que, com a maior das naturalidades, o relata na autobiografia que surge como uma espécie de apêndice a partir da 9.ª edição de Os meus amores. Bacharel em leis, tinha concorrido em 1886 ao lugar de delegado do procurador régio na vila do Sabugal. As esperanças eram poucas, «porque não tinha ninguém que me protegesse». Mas eis que Camilo lê num jornal (ele lia tudo, aquele demónio) que Trindade Coelho se apresentava a concurso. Simpatizando com o jovem escritor (que aliás não conhecia pessoalmente) e temendo que fosse suplantado no concurso por algum sacripanta que não fosse capaz de alinhar duas orações com sujeito e predicado nos seus lugares, resolve escrever ao ministro Tomás Ribeiro, grande amigo de longa data e poeta ultra-romântico de merecimento, pedindo-lhe que despachasse Trindade Coelho. Aquilo a que hoje muito cruamente chamamos uma cunha. E assim foi que Trindade Coelho iniciou a sua carreira pública.
É, como digo, o próprio Trindade Coelho que o narra. E nós ficamos sem saber o que admirar mais: se a solidariedade corporativa de Camilo para com um escritor novato que nunca tinha visto mais gordo, se a ingenuidade e sinceridade de Trindade Coelho ao divulgar uma coisa que, em boa verdade, devia antes calar, já não digo envergonhadamente, mas pelo menos recatadamente.
Os meus amores, que tem o subtítulo “Contos e baladas”, é, como vimos, não só a obra-prima de Trindade Coelho como uma das obras-primas de toda a produção contística nacional. Uma espécie de Bichos de Miguel Torga, só que mais espontâneo, sincero e despretensioso, lírico por vezes.
O próprio Trindade Coelho achava que os contos não se querem com intenção didáctica (ensinar ou moralizar), mas apenas com intenção emotiva (evocar a simplicidade da vida rústica e lisonjear a saudade do paraíso perdido da infância). Era assim que ele os fazia, singelos, desataviados, ressumando emoção. Não têm praticamente enredo. Limitam-se a correr, mansos como ribeirinhos, naturalistas, realistas de um realismo salutar.
Às vezes parecem crónicas. Eugénio de Castro, o poeta simbolista de Coimbra, diz: «Prefere os assuntos simples aos complicados. Ao longo dos seus contos não se alastram óxidos de almas difíceis, nem se emaranham filigranas de raras psicologias. No meio dos modernos livros, os seus livros são como ingénuos colegiais entre viciosas pessoas.» O próprio autor, definindo os seus contos, diz deles que são «talvez saudades; e tenho a certeza de que se vivesse na minha terra […] não os teria feito.»
A primeira edição de Os meus amores saiu em Lisboa em 1891, pela mão do editor António Maria Pereira, que tão ligado esteve também à publicação de obras de Camilo (mais um ponto de contacto entre os dois homens de letras...), nome que felizmente, sob outra forma de sociedade, perdura ainda no mundo editorial português. Continha então apenas 13 narrativas (às vezes a gente hesita em chamar-lhes contos). Dez anos depois sai a chamada edição de Paris, substancialmente ampliada (são agora 23 narrativas) e dividida em “Amores velhos”, “Amores novos” e “Amorinhos”. Seguem-se, até 1974, mais 12 edições: o livrinho foi, claramente, um best- -seller.
Não o único deste autor que se diria não talhado para o sucesso. Um outro best-seller sai em 1902 e chama-se In illo tempore. São as suas memórias de Coimbra, onde se bacharelou em 1885. Coimbra deixa feridas em todo aquele que a frequentou, é bem sabido. Trindade Coelho ajusta as contas com os tempos estouvados de Coimbra neste livro que lhe trouxe porventura mais reputação do que o anterior, embora tivesse conhecido apenas 7 edições ― número que de resto continua a ser excepcional em Portugal.
Uma outra faceta de Trindade Coelho, muitas vezes esquecida, quando não pura e simplesmente ignorada, é a de autor de textos políticos e sociais. Neste âmbito merece atenção particular uma colecção chamada Folhetos para o povo. São sete os folhetos, e versam temas como a necessidade do ensino, o mutualismo, a denúncia da exploração do jornaleiro pelo patronato rural. Tudo causas progressistas. Merece atenção, igualmente, o Manual político do cidadão português, uma espécie de compêndio destinado ao esclarecimento cívico e político do povo, então mergulhado em obscurantismo. Uma acção que diríamos de esquerda. E talvez fosse. Mas era acima de tudo uma profissão de fé no progresso e no aperfeiçoamento social ― que tinham de passar, primeiro que tudo, pela educação do povo.
Por ocasião do centenário do seu nascimento, em 1961, Augusto da Costa Dias organizou uma colectânea de textos de carácter etnográfico de Trindade Coelho, intitulada O senhor sete. E com este título se completa a obra deste trasmontano que, nas palavras de Eugénio de Castro, era «pequenino mas tesinho» e «alegre como uma romaria».
Pequenino, seria; de corpo, claro. Tesinho, era-o sem dúvida, e por diversas vezes o mostrou ao longo da sua carreira profissional, enfrentando adversários poderosos. Alegre como uma romaria, seria também. Mas infelizmente não tanto que, num dos seus frequentes acessos de melancolia e desalento, tendo-se demitido do seu lugar de magistrado e vendo-se em dificuldades para sustentar a família, não pegasse numa pistola e não a descarregasse contra a têmpora direita.

Tellus, n.º 61
Revista de cultura trasmontana e duriense
Director: A. M. Pires Cabral

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