terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Já fiz parte do meu país

 Aos 34 anos, ganho uma miséria de ordenado face ao custo de vida e trabalho com a maior excelência e determinação. Tenho vontade de deixar o meu país, e um enorme arrependimento por não ter saído mais cedo.

UNSPLASH

Eu costumava gostar do meu país, da minha cidade, de ter orgulho de ser portuguesa. Costumava sentir-me feliz, por viver numa cidade ao pé do mar, num país com belezas naturais ao pé do rio. De ter vontade de explorar território português porque “é meu”, e “o que é nacional é bom”, e isso ser motivo para falar de boca cheia de Portugal. Mas aos 34 anos tenho vontade de deixar o meu país, e um enorme arrependimento por não ter saído mais cedo.

Aos 34 anos, ganho uma miséria de ordenado face ao custo de vida e trabalho com a maior excelência e determinação. Esforço-me o melhor que posso, que considero acima da média. Não tenho um curso superior, porque as oportunidades não são as mesmas para todos e, por muito que eu me esforce por vingar neste país, não vejo a meta de passar a linha de sobrevivência todos os dias, para poder viver todos os dias. Não falo de luxo, falo de dignidade!

Pessoa e cidadã responsável, pago as contas como a maior parte de nós. Água, luz, gás, Internet, telefone, renda, supermercado, gasolina, passe do metro, e estudo para melhorar a minha segunda língua, o inglês, para poder acompanhar o mercado de trabalho.

Junto miseravelmente alguns trocos porque parece digno e merecedor ter, um dia, uma casa. Então, do que sobra... não dá para ir jantar fora ou ir ao cinema. Estou há meses a adiar a visita ao Pavilhão da Água, ao Museu de Serralves, à Livraria Lello, porque o que sobra nem cultura paga. Junto desesperadamente dinheiro para poder não ter que viver num quarto arrendado, ou arrendar casa, que benefício nenhum traz à vida dos jovens. Parece literalmente um sacrifício, uma sentença de morte do meu objectivo: ter uma casa, constituir família.

Já tive mais orgulho da minha cidade, de o meu país ser destino para milhares de turistas por ano. Já tive mais vontade em receber e fazer jus ao facto de o povo português ser acolhedor, afável e amigável. Continuaria a ter se, por causa da falta de política de turismo e de regras imobiliárias, não fôssemos afectados pelo aumento do custo de vida geral, em particular no valor da habitação. Portugal é um país dos outros, e tenho mais vontade de ser “outros” do que de ser Portugal. Tenho vontade de ir e de nem a reforma aqui gastar. Tratar o meu país como ele me trata a mim.

Vivo num país que não defende a classe média; pelo contrário, esforça-se por extingui-la. O que sobra dela deve-se à herança de ser português: é ser desenrascado. Vivo num país onde a política é tão corrupta que descredibiliza a justiça por inteiro, mas também mata a esperança da existência de democracia e respeito pelos cidadãos.

Vivo num país de cunhas e interesses próprios com paisagens bonitas para estrangeiros se fixarem. Vivo numa cidade e num país que se orgulha de ser destino preferido de turismo, potencializando a expulsão dos cidadãos merecedores da sua terra.

Em 24 horas, trabalhamos oito, nove ou dez horas diárias, horas extras não-remuneradas. É a realidade de muitos morar a hora e meia do local de trabalho.

Às tarefas imprescindíveis do dia-a-dia, que não acrescem educação, formação ou qualidade de vida, sobra-nos já dormir com défice, e ter a sorte de não sonhar com a péssima rede de transportes públicos, ou com as obras na Avenida do Brasil, na Foz do Douro, que é o pesadelo de qualquer portuense. Em Portugal, temos a esperança de vivermos na sobrevivência de algumas horas livres ao fim-de-semana, até à reforma, idade muito próxima do fim de linha.

Na casa arrendada onde resido, com aquecimento central nunca utilizado, uma vez que não ganho o suficiente para isso, preciso de ligar a luz durante o dia para ver em algumas divisões. Dependo do carro para me deslocar a qualquer sítio sem desconforto, partilho os meus dias com mais três pessoas, muitas vezes não se compatibilizando estilos de vida. Isso custa tanto como o ordenado mínimo.

Impensável pensar em ser mãe porque a biologia humana tem um prazo tão curto como o crédito à habitação. Talvez pudesse ter já 10% do valor obrigatório para aquisição de casa se, nestes últimos 14 anos, não tivesse conhecido humildemente Paris, Londres, Barcelona, Berlim, Tenerife e “o Algarve”, conhecido quatro ou cinco restaurantes na minha cidade e em lazer/cultura ter visitado o jardim zoológico. Assim como provavelmente estaria neste momento a gastar o mesmo valor em medicação psiquiátrica.

A esperança de melhoria expirou em 2021, e em 2022 tenho vontade de deixar de ser portuguesa. Na impossibilidade disso, caminho para querer ser mais revoltada, menos acolhedora e inspirar outros para que se façam ouvir. Para sermos cidadãos com direito à habitação digna, ao transporte, a ordenados compatíveis com o nível de vida e com direito a viver nas cidades onde crescemos!

Paula Lemos
Nasceu em 1987 e sempre morou no Porto. Foi estudante de mérito, no ensino nocturno da escola Clara de Resende e trabalha na área de saúde como operadora de back office.

Sem comentários:

Enviar um comentário