EXCERTOS
Dizem as más línguas que o interior do país se vai transformar numa grande, grande floresta e os que acreditam em tudo, os medricas, a quem chamam velhos do Restelo, botas de elástico, gente que não vê um palmo à frente do nariz – perdão, nariganga, - indivíduos teimosos e caturras, tacanhos, conservadores, provincianos, etc, esses, aqui del-rei (se dissessem aqui del-presidente da república seria uma enormidade), aqui del-rei, que nos querem expulsar da terra sagrada dos nossos avós, matar à fome, dar-nos cabo do cangote.
Ora bem, imaginemos que isso da florestação é mesmo verdade e, às duas por três, aparecem por aí camiões, comboios e barcos vindos da estranja, a abarrotarem de plantinhas frescas – tílias, plátanos, austrálias, negrilhos, álamos, bétulas, zimbros (dizem que a baga é boa para corar “l’eau-de-vie” da UE), sabugueiros (dizem que a baga é boa para corar o vinho a martelo da UE), faias, freixos, pinheiros e eucaliptos (ia-me esquecendo deles), robles, cedros, abetos, uma ou outra magnólia (viva o luxo), um ou outro lilás (rico cheirinho para a Páscoa), choupos, mognos, pau-brasil e pau-ferro (se pegarem é uma mina), sobreiros (nunca é de mais), carrascos, etc. e castanheiros.
Um amigo meu, prevendo isso, está a projectar um empreendimento turístico alindado de piscinas, teleféricos, campos de golfe e de ténis, até de jogos populares, tudo à volta de um hotel de pedra de xisto e ameias afestoadas de buganvílias, com um meio colar de relvado cortado de um tridente de ruas de basalto a convergirem na porta de entrada, em ogiva, e dois parques de automóveis, alpendrados e em leque, um em cada lado do edifício, constelações de aloendros e redoendros, pérgulas nos lugares recolhidos com dossel também de buganvílias, mas de flor vermelha (buganvílias, repare, até o nome é bonito, amoroso), uma estátua acobreada de Apolo, outra branca de Afrodite, e ainda num fontanário uma figura política consensual, carismática, em movimento giratório e a jorrar de cada mão um repuxo de água lustral, canalizada de albufeira próxima, albufeira que há-de ser um santuário de pesca para quem não goste de andar de espingarda ao ombro pelos matagais. E esse meu amigo propõe uma estância destas em cada um dos lugares pitorescos, sobretudo das Beiras e de Trás-os-Montes, cerca de trinta, como por exemplo Piódão, Monsanto, Sortelha (ah! As nossas aldeias típicas!), Arouca, Tarouca, Vidago, Vilar de Perdizes, Romeu e Miranda do Douro.
Outro amigo meu concorda mais ou menos com o sonho, mas com uma condição, uma apenas: que transmontanos e beirões se deixem de dendrolatrias politeístas e passem a prestar culto a uma só árvore, a nossa mais bela e popular árvore tradicional: o castanheiro. Um souto, um castanhal imenso no interior do país, eis o ideal dos ideais.
Ora veja, explica rasgadamente o meu segundo amigo, o castanheiro é a árvore tradicional por excelência, a mais útil, pois até se expandir a batata no século XIX dela nos vinha a paparoca fundamental, a castanha, alimento rico em calorias e hidratos de carbono, esse fruto polpudo e doce produzido seja pela “castanha sativa”, seja pela “quercus pyrenaica”, que tanto entrava em palácios e conventos, mesmo nas naus de Vasco da Gama, como no mais humilde tugúrio onde havia caniços, ainda há, o caniço serve para secar castanhas, ouça, é um entrançado de verga ou tabuleiro de ripas que fica sobre as lareiras, as castanhas são depois picadas, tira-se-lhes a pele e por isso, além de secas, também se chamam piladas, uma maravilha, já comeu?, pois não sabe o que perde, castanha seca, castanha verde, castanha cozida, castanha assada, até caldo de castanhas, suã de castanhas, castanhas pelo Natal, pelos Reis, na festa das Maias, nos magustos do S. Martinho, mal feito fora se ainda não tivesse ido a um magusto, já foi?, claro, ora bem e ainda castanhas nas adivinhas, cantigas, jogos, olhe, castanhas por todo o lado, eu concordo com a portaria 199/44, de 6 de Abril, o que é preciso é arborizar as superfícies agrícolas, venham os subsídios, olarila, e então arrase-se “toda a área que nos últimos dez anos tenha sido objecto de uma utilização agrícola regular, incluindo pousios até seis anos e pastagens naturais com um encabeçamento mínimo de 0,15”, e não fico nada espantado com o ministro que diz: “Dentro de uma ou duas décadas, iremos olhar para dezenas ou centenas de aldeias-fantasmas, habitadas, na melhor das hipóteses, em Agosto e Setembro, por ocupantes nostálgicos e desejosos de encontrar uma saída para um património que se degradou e onde investiram muito dinheiro e alguns sonhos”, espantar-me eu?, nada disso, mas peço desculpa por discordar um tudo-nada do Senhor-Ministro, o dinheirinho não vai perder-se e os sonhos vão ficar doirados, a maior parte dessas aldeias, como a de Monsanto, só as bonitas, obviamente, transformar-se-ão em lugares turísticos servidos por gente aprumada, os labregos e os pobretanas que vão bugiar, virão franceses, alemães, ingleses, canadianos, americanos, upa, upa, mostrar-lhes-emos a nossa cultura tradicional, tunas, filarmónicas, danças, autos, artesanato, mezinhas, etc, e até jogos, a ver se o sossegamos a si e outros diabos, desculpe lá, que andam praí a acusar de desculturações o nosso querido governo, que Deus haja, ou antes que Deus guarde por muitos anos e bôs, os nossos turistas poderão sobretudo apreciar a nossa bela castanha, em casa ou no monte, de preferência no monte, haverá magustos, monumentais regadinhos com o pingato de sacarose da UE, raparigas vestidas de fadas, bruxas e mouras encantadas, e rapazes a fazerem de duendes, sátiros, gnomos e trasgos, dos montes subirá um fumo azul, lindo, lindo, a castanha será a rainha que sempre foi. Que viva a castanha!
António Cabral,
in Tradições Populares - II - 1999
Sem comentários:
Enviar um comentário