sábado, 27 de janeiro de 2024

A burra da patroa

Não. Não é da expressão de uma serviçal mais estouvada ao referir-se à patroa, de que aqui se vai tratar.
-Ah ti João! Venda-me a burra? - Era o cigano, lampeiro, de olho vivo, chapéu à meia tarde, para o lavrador.
- Catano! A burra?!.….Oh homem, não era má obra!.....A burra é da patroa!
E era. Mesmo sem formal título de posse, era da patroa a burra.
Fosse a casa de lavoura sustentada por junta de vacas, junta de machos, ou até mesmo, nos tempos mais chegados, por trator, sempre faria parte do acervo do casal de lavoura, uma burra. Pela primazia no uso, mesmo em prejuízo das coisas da lavoura maior, era de facto da dona de casa a burra.
De diminuta envergadura, ou mais avantajada se da raça mirandesa, de pelo curto ou lanzuda como ovelha antes da tosquia, menos sábia e obediente que a burra de Balaão, e frugal como o ruço do Sancho Pança. A pelagem, que normalmente sustenta o chamadouro, vai do preto ao cinzento, sendo também comum o tom castanho do pelo.
- Oh Maria?! … Tu não ouves!? Precisas burra?! - Que não, que podia levá-la e que levasse as alforges. Com recomendações ainda, - passasse em Juncais e trouxesse dois feixes de grabanços, e as peras do chão. E que regasse os feijões tardegos. Ia já no cabo da rua – olha, traz uma cabaça menina!
A patroa, é mulher, companheira, mãe, sentinela e guardiã feroz do seu núcleo familiar.
Nada do que respeita à economia do lar, por momento algum ficava afastado do cogitar constante da patroa.
É a companheira sempre a forragear todo o sustento do casal. Abastecendo a despensa de feijão, grabanços, chícharos, cebolas e batatas para enfrentar os rigores do inverno. Com frequência e minucia vistoria as tulhas,as talhas e a salgadeira.
- Não leves a burra, vou às Picotas apanhar uma cesta de azeitona pra cutilar! – recomenda ao marido.
É preciso popelina para um avental, chita para os vestidos das filhas, o rapaz vai às sortes e precisa de uns sapatos baixos, ou um bocado de marrã se calhasse altura de Gorases, e impunha-se a ida a Mogadouro.
- Albarda a burra e poe o tapete no enxalmo que vou à feira.
Acabou o pão. Urgência de nova fornada.
Pragmática a patroa: - Oh vizinha empreste-me cá um pão, que amanha já lho torno!
- Não leves a burra que é preciso ir à moagem moer uma carga de trigo!
Usa os préstimos da burra como a pá de forno. Com destreza e ciência sabida desde sempre, abastece a casa com avantajada e balsâmica fornada de alvo pão trigo ou substancial centeio.
Depois de plantada a horta, sorteada a água da poça de consortes, é a patroa que se incumbe de regar nos dias que lhe ficaram adstritos, que planta ainda beterrabas e couves na cabeceira das batatas, semeia a leira de alfaces ou cenouras e aqui e ali uma ou outra sércia, dália ou crisântemo. E lá ira manha cedo, e à tardinha para a ultima poçada, montada na burra, de cesta ou balde no braço ou nas alforges. Da horta vem sempre uma regaçada de fruta ou legumes com que mimoseia a casa.
Com ciência certa, adquirida de menina, trata do linho e da lã. Maçando, espadando, assedando, separando linho e estopa, fiando, usando com mão certeira o sarilho para a formação das meadas. Com presteza e saber há-de depois branquear, e usar a dobadoura com que formará os novelos. E logo urdirá a teia no familiar tear de dois liços. E assim com diligência, saber e devoção se fabrica o bragal da família. As filhas cedo são industriadas no manejo das agulhas e nas subtilezas do ponto em cruz. E se alguma lhe pergunta - minha mãe o que é casar?! Com inusitada crueza e prontidão dirá – minha filha….. casar é chorar, parir e fiar.
Avisados andavam os lavradores do teor do ditado! - toma casa com lar e mulher que saiba fiar.
Poupando, aforrando sempre, não desperdiça nem as borras do azeite, com que há-de fabricar sabão, tão rude quanto útil.
É a companheira que dirige o orçamento familiar com rigor espartano em permanente conflito com a generosidade dos afetos. Cerzindo com sabedoria ancestral, muito amor e mão firme, laços imorredoiros. Sempre ao lado do homem, sem fingida submissão. Ao serão, à luz mortiça da candeia pendurada nas lares ou velador, conta o terço enquanto com mãos ágeis fia o linho e a lã, nunca faltando nem caldo nem avé maria.
Tem a firmeza e o porte austero da Passionaria e a doçura angustiada e regaço macio de uma Pieta.
Cedo aprende a ser discreta, sem artifício ou afetação, vencendo a fragilidade pelo exemplo e pelo trabalho, privilegiando a virtude em detrimento da aparência. A formusura é em si natural, sem recurso a manhas ou artifícios, desconhecendo mesmo o rímel e o pó de arroz. É a beleza modesta e despretensiosa que, sem conflituar com a virtude, a torna estimável.
Cobre-se com escolástico xaile de merino preto, e a única garridice que a si mesma se consente, é o virtuosos lenço com ramagens, que usa atado na cabeça para cobrir e segurar os cabelos.
No dia a dia, não prescinde também do humilde avental de chita, resguardo, agasalho e muitas vezes usado ainda para esmoncar o rapazio.
Cumpridora zelosa dos preceitos da igreja, frequenta amiudadamente os sacramentos e transmite aos filhos as rezas e devoções que nortearam sempre o seu viver.
Fina-se serenamente com a noção do dever cumprido, rodeada de familiares e amigos que grangeou toda a vida pela bondade e pelo exemplo.
Curvo-me à memória das mães, mulheres, patroas de Brunhoso.
Apesar de singelo, não fosse a canhastrez do escrevente, seria bem mais elevado o tema.
Mas enfim….

Francisco Ribeiro

Sem comentários:

Enviar um comentário