Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Cegonhas-pretas – ou as primas tímidas

 Em contraste com as suas congéneres brancas, as cegonhas-pretas são raras, esquivas e desconhecidas. Apenas um em cada mil casais de cegonha que se reproduzem em Portugal pertence a esta espécie e a ciência ainda tenta perceber porquê.

HUGO MARQUES - Uma cegonha-preta procura o jantar num pego resistente à seca. Com o bico e as patas vermelhas, as penas pretas com reflexos esverdeados e azulados e o abdómen branco,
a sua silhueta regressa aos poucos às áreas bravias portuguesas.

A noite anunciava o seu fim e a luz erguia-se, preguiçosa, despertando para um novo dia com o campo em extrema secura num ambiente típico de Agosto. Da ribeira que há poucos meses escorria entre azinheiras naquele lugar perdido próximo da fronteira, sobravam pequenos pegos, onde a vida aguardava com paciência pela chegada das chuvas.

Esta espera que se repete todos os anos faz parte do ciclo de vida de peixes, anfíbios e lagostins que por ali ficaram aprisionados. Sem terem por onde fugir, nas poças que resistiram mais à secura, são agora presas potenciais para um conjunto de aves – as cegonhas-pretas – que aguardam pelo festim anunciado. São caçadoras experientes que aprimoraram a sua estratégia: não investem com velocidade como as aves de rapina. Como os generais veteranos, esperam que o terreno e o clima façam primeiro os danos, antes de avançarem.

HUGO MARQUES - Após um exercício difícil de escalada, o biólogo Carlos Pacheco captura com todo o cuidado as crias de cegonha-preta para marcação com emissores. O manuseamento de uma espécie protegida carece de autorização do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.

Se para o coberto vegetal o estio é uma época de verdadeiro stress pela carência de água no solo, o mesmo não ocorre nas aves que se alimentam nestes diminutos pegos. A concentração de alimento em espaços reduzidos facilita as capturas e reduz o dispêndio de energia na sua busca. Assim, esta espécie de masmorra aquática torna-se especialmente importante para algumas espécies raras que podem encontrar o alimento para as suas crias e para ganharem forças antes de migrarem para sul.

“Os arrozais na proximidade dos estuários do Tejo, Sado, Mondego e as zonas húmidas do Algarve e Alentejo são alguns exemplos onde a observação de cegonhas-pretas no Inverno é quase garantida.” (Marta Acácio, bióloga)

Com passos seguros, as garças-reais e os colhereiros são os primeiros a chegar. Pouco depois, chegam as esquivas e tímidas cegonhas-pretas. Como os agentes funerários, vêm de traje escuro e formal e avançam com lentidão, fazendo jus à sua desconfiança habitual. Num ápice, as patas vermelhas avançam pela água, enquanto as cabeças exercitam mergulhos súbitos. Pequenos peixes são capturados com o auxílio do comprido bico vermelho, saciando um apetite devorador. Em alguns dias, o oásis ribeirinho fica praticamente esgotado e as cegonhas partem em busca de novos “jardins do paraíso.”

HUGO MARQUES - O rio Águeda, afluente do Douro, é um dos cursos fluviais em melhores condições de conservação. Integra o território do Parque Natural do Douro Internacional
 e é um dos habitats clássicos da cegonha-preta.

A população de cegonhas-pretas em território português não deverá exceder cem casais. É diminuta, mas tudo indica que é estável. A ave procura locais isolados e pouco perturbados dos troços dos grandes rios internacionais como o Tejo, o Douro e o Guadiana e alguns dos seus afluentes, como o Côa, o Sabor, o Erges, o Ponsul, o Sever, o Ardila e outras ribeiras para nidificar.

As escarpas rochosas são o seu lugar predilecto pelo difícil acesso para predadores, pela camuflagem que oferecem a olhares indesejados e pela proximidade das zonas de alimentação. As copas de árvores de grande porte também não são esquecidas para a instalação dos ninhos apesar de essa ocorrência ser menos comum. A maioria das cegonhas passa o Inverno europeu na África subsaariana e regressa em finais de Fevereiro ao Velho Continente, atravessando então o disputado estreito.

As aves fazem por norma posturas com três a cinco ovos uma vez por ano, incubadas alternadamente pelos progenitores entre 33 a 38 dias numa “cama” de grandes dimensões construída com galhos e complementada com a delicadeza do musgo.

A maioria das cegonhas passa o Inverno europeu na África subsaariana e regressa em finais de Fevereiro ao Velho Continente, atravessando então o disputado estreito.

A busca de conforto e aconchego para a prole não é só apanágio das sociedades humanas. As crias nascem brancas com o bico laranja e são alimentadas várias vezes por dia. Peixes, lagostins do rio, anfíbios e respectivas larvas capturados num raio de 7 a 10 quilómetros do ninho são regurgitados para as pequenas cegonhas.

HUGO MARQUES - Ao contrário da cegonha-preta, a cegonha-branca estabelece colónias e usa qualquer posto elevado na paisagem para melhor se precaver contra predadores. Neste caso, a sul do Tejo, esta colónia recorre a um velho sobreiro.

À medida que as aves crescem, a plumagem branca vai dando lugar a tons acastanhados e o bico e as patas tornam-se esverdeados até atingirem a silhueta inconfundível dos adultos aos 3 anos. São então pretas com reflexos verdes e azulados iridescentes, o bico e as patas ganham tons de vermelho-vivo e o abdómen mantém-se branco. A cegonha-preta, além de rara e tímida, é também mais pequena do que a sua prima, a cegonha-branca, e distingue-se por não estabelecer colónias nem procurar alimento em aterros sanitários.

No âmbito do seu doutoramento na Universidade de East Anglia, a bióloga Marta Acácio tem estudado esta espécie, em colaboração com o investigador do CIBIO, Carlos Pacheco. Ambos procuram conhecer melhor a sua ecologia e os seus movimentos. Com o financiamento da bolsa de doutoramento de Marta Acácio e com um prémio atribuído por uma empresa de seguimento de vida selvagem por satélite, os dois biólogos colocaram vários transmissores GPS em cegonhas pretas juvenis. Esta tecnologia fornece posições em tempo real, desvendando percursos, bem como dados de acelerómetro, que permitam conhecer as actividades a que as aves se dedicam em cada momento. Aos poucos, Marta e Carlos têm descodificado os comportamentos da cegonha-preta e caracterizado melhor o uso das suas áreas vitais, contribuindo dessa forma para a conservação da espécie.

As cegonhas-pretas rejubilam com a nova tranquilidade nos antigos vales encaixados, tentando apenas escapar à mão do biólogo que quer revelar ao mundo os seus percursos discretos.

A dificuldade de acesso aos ninhos torna a tarefa muito exigente, pois transforma as equipas científicas em escaladores de ocasião. O trabalho de campo implica pesar, medir, tirar sangue para análise e anilhar as crias rapidamente antes de as devolver ao ninho em segurança. Só assim se instalam os emissores, que pesam cerca de 40 gramas e são alimentados por um pequeno painel solar.

HUGO MARQUES - Carl Lineu foi o primeiro naturalista a descrever a cegonha-preta na 10.ª edição do seu tratado "Sistemas Naturais". Não a arrumou, porém no género correcto. Coube ao zoólogo francês Mathurin Jacques Brisson a proposta taxinómica de a colocar no género Ciconia.

Os mapas obtidos através destes emissores e dos controlos das anilhas coloridas revelaram que as cegonhas, na sua migração anual, atravessam zonas desérticasaté chegarem às áreas de invernada na  Mauritânia, no Mali, na Costa do Marfim, nos Camarões e no Senegal. E um dado novo tem levantado interrogações aos investigadores: cada vez mais cegonhas-pretas passam o Inverno na Península Ibérica. Há muito que se sabia que uma pequena parte das aves ibéricas não migrava, mantendo-se por aqui todo o ano. Contudo, nas últimas décadas, o número de aves invernantes aumentou, bem como as zonas de permanência regular. O incremento parece dever-se essencialmente à presença crescente de cegonhas-pretas da Europa Central, que terminam a sua viagem na Península Ibérica para passar o Inverno em vez de continuarem para o continente africano.

“Este comportamento tem uma tendência crescente, uma vez que as mesmas tendem a ser fiéis aos mesmos locais desde o primeiro ano de vida”, diz Marta Acácio. “Os arrozais na proximidade dos estuários do Tejo, Sado, Mondego e as zonas húmidas do Algarve e Alentejo são alguns exemplos onde a observação de cegonhas-pretas no Inverno é quase garantida.” A abundância de lagostim-vermelho e de peixe poderão ser a explicação desta escolha. Por outro lado, são territórios extensos e poucos perturbados.

HUGO MARQUES - No Baixo Alentejo, as biólogas Marta Acácio (à esquerda, na imagem) e Inês Catry registam biometrias e verificam a condição física das crias antes de as devolverem ao ninho. O manuseamento tem de ser rápido e preciso.

As alterações climáticas poderão também contribuir para este novo fenómeno. “Se os invernos são mais amenos e o alimento abunda, talvez não valha a pena enfrentar o risco de uma viagem tão longa para África”, acrescenta Carlos Pacheco.

“É um padrão similar ao que já vínhamos a assistir nas cegonhas-brancas há bastante tempo, mas que chegou também às cegonhas-pretas, embora com uma diferença notória na sua ecologia”, diz Marta Acácio. Na sua fase juvenil, as cegonhas-brancas migram todas para o continente africano, mas, à medida que se tornam maduras, tendem a tornar-se sedentárias ou a fazer movimentos de menor amplitude na Península. Ainda não há certezas sobre a causa deste comportamento, mas é uma realidade facilmente constatável numa viagem de auto-estrada para o Sul do país em Dezembro: as cegonhas-brancas acotovelam-se nos ninhos instalados em postes de alta tensão da rede eléctrica nacional. “É importante compreender estes comportamentos divergentes para estabelecer estratégias de conservação para a espécie, em particular na Península Ibérica, dado que muitas destas áreas não possuem qualquer estatuto de protecção”, lembra Carlos Pacheco.

Na sua fase juvenil, as cegonhas-brancas migram todas para o continente africano, mas, à medida que se tornam maduras, tendem a tornar-se sedentárias ou a fazer movimentos de menor amplitude na Península. 

A ciência assegura que as aves e os mamíferos migratórios seguem rotas ancestrais estabelecidas há milhares de anos como uma marca impressa no seu código genético. Em algumas espécies, os juvenis seguem os progenitores nos primeiros anos de vida; noutras, os mais novos acompanham os grupos que se formam na “chamada” para a grande viagem. “Quando estes elos se quebram, toda a cadeia se altera”, afirma Carlos Pacheco.

Serpenteio com cuidado antigos estradões de terra batida bem próximos da fronteira. Ali onde a soberania é difusa, os solos pobres de magro sustento há muito que expulsaram as comunidades que por lá viviam, obrigando-as a migrar para longe à procura de melhor vida.

HUGO MARQUES - Nas cegonhas-pretas, o cuidado parental é realizado por ambos os progenitores. Apesar de o macho ser ligeiramente maior do que a fêmea torna-se difícil com frequência distinguir as diferenças através da observação à distância.

Os matos, carrascos e azinheiras que resistiram às agruras expandiram-se e tornaram-se de novo senhores destas terras esquecidas. Numa Primavera radiosa, observo no fundo de um vale majestoso, a beleza do voo de uma cegonha-preta que plana sobre um rio furioso e fragas sem fim. O ninho está bem camuflado numa plataforma de rocha e três pequenas crias agitam-se, adivinhando a chegada de novas iguarias.

No meio de territórios perdidos como este, emergem oportunidades para a vida selvagem. Nas serranias e nos planaltos contíguos aos grandes vales do Nordeste e Beira Alta, carvalhais e outras folhosas afirmam-se nos seus domínios, lutando com bravura contra o triste fado do fogo. Deste modo e sem a intervenção de mão humana, uma nova mancha verde que transporta a esperança avançou e continua a avançar nas terras raianas como se de uma teia se tratasse. Atrás de um mosaico de ecossistemas mais ricos, novas vidas fixam-se. O corço e o veado caminham sem medo. O grifo nunca abandonou estes domínios e expandiu-se, e o abutre-preto, ausente há décadas, regressou a Portugal para nidificar.

Empurrada pelos bons ventos de Espanha a águia-imperial também prospera e o lobo, apesar de fundados receios, começa a arriscar-se por caminhos meridionais. O próprio lince, que quase se perdeu, está hoje a conquistar novos territórios, seguindo antigos trilhos entre a urze e a carqueja, em busca do coelho, a sua principal presa.

Num charco efémero na fronteira entre Portugal e Espanha, um bando de cegonhas-pretas banqueteia-se às primeiras horas da manhã de um dia de Verão. Desconfiadas, partirão ao primeiro ruído suspeito.

As cegonhas-pretas rejubilam com a nova tranquilidade nos antigos vales encaixados, tentando apenas escapar à mão do biólogo que quer revelar ao mundo os seus percursos discretos. Em Setembro, as jovens cegonhas poderão, ou não, partir para lugares distantes, mas com uma certeza: regressarão às suas origens nas primaveras seguintes.

Sem comentários:

Enviar um comentário