Por: José Mário Leite
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Migalhas é pão! É um ditado antigo e frequentemente ouvido em todo o nordeste, em todas as suas declinações seja em rionorês, guadramilês, mirandês ou português. Independentemente da expressão escolhida, adequa-se na perfeição à Língua Mirandesa o que justifica o título. Milenar, (anterior à própria nacionalidade) foi um elo permanente de ligação, um refúgio seguro por vezes quase secreto, uma casa comum acolhedora para a gente das Terras de Miranda a quem proibiam de se expressar na sua língua materna na sede do concelho (por ordem de D. João III impondo tão draconiana medida à laia de tributo para a constituição do Bispado de Miranda), na escola e até na igreja, alegando a impossibilidade de ser atendido por Deus quando as preces fossem expressadas em língua alegadamente diabólica o que, para além de ser ofensivo para os falantes (fossem eles os mirandeses, os leoneses ou os asturianos onde esta forma de falar teve o seu berço) seria, igualmente, uma blasfémia pelo apoucamento aos inatacáveis e inquestionáveis poderes divinos.
O Estado Novo inaugurou um segundo e severo período repressivo proibindo a livre expressão nas escolas e instituindo a aplicação de castigos físicos às crianças que trocassem o português fidalgo pela linguagem bebida no peito materno e alimentada no recato do lar, praticada nas brincadeiras e sustentada no trabalho e demais afazeres diários. O isolamento das gentes do Planalto foi o resguardo para a manutenção da genuína e natural forma de expressão que se conservou e manteve suportada apenas na oralidade. Como tal teve, logicamente, alguma “contaminação” e, igualmente “contaminou” as regiões vizinhas. Mas sobreviveu sem comprometer a sua identidade singular.
A aprovação como a segunda língua oficial na Assembleia da República (Lei 7/99 de 29 de janeiro) deu-lhe o suporte legal para se poder afirmar a todos os níveis, e a aplicação da Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa, permitiu a recolha e uniformização (mesmo que com variantes) desta forma única de falar e exprimir. Das migalhas, se fez pão! O pão, para que forneça o devido sustento tem de ser feito recorrentemente e de forma continuada ou, facilmente se consome e de novo serão “apenas” migalhas. Desse pão inicial e fundador, sobram-nos (a todos nós, portugueses e não só aos de Miranda nem, tão pouco aos nordestinos, apenas) hoje, migalhas das quais urge, de novo, juntar, unir, levedar e cozer para que do forno não cesse de sair fornada suficiente.
É preciso ratificar a Carta Europeia das Línguas Minoritárias (já aprovada pelo Governo); instalar o Instituto da Língua Mirandesa (criado e dotado de orçamento des- de 2023, mas nunca implementado); promover a edição de gramáticas, dicionários e manuais escolares; promover instituir um prémio literário para incentivar os muitos autores e falantes de mirandês a deixarem, em letra de forma, os conhecimentos próprios, as recolhas feitas (urge preservá-las sob risco de se perderem para sempre) e darem largas à poesia, ao romance, à tradução e ao ensaio de forma a perpetuar o saber de um povo que teimosamente o guardou e que não merece vê-lo desaparecer.
Juntem-se as migalhas ao fermento e… coza o forno.
José Mário Leite, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia), A Morte de Germano Trancoso (Romance) e Canto d'Encantos (Contos), tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.
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