Chamava-se Teresinha, e fazia hoje anos...
Tinha fartos cabelos insculpidos de ondas profundas, em pau-preto filamentado e dúctil. Quando saltava às cordas (" zás! zás! za´s! ") os pés muito juntinhos, aos pulos, saltando e saltando, – e a corda vermelha descendo e batendo: ("prás! prás! prás! “) os grossos e espiralados caracóis cor-de-noite, que lhe ladeavam a carita de porcelana tostadinha, também saltavam ("zás! zás! zás! "); também batiam ("prás! prás! prás!"): eram como sinos de carrilhão alegre, bimbalhando, em catedral de esperanças, um hino infantil de avezinha amanhecida...
Teresinha garota e traquina esfuziava, pelo liceu da Praça do Coronel Pacheco, como rastilho lúdico, estralejando risos e conquistando simpatias. Qual das suas antigas condiscípulas a recorda sem saudade?!...
Ai, as aulas do primeiro ciclo, com Teresinha, criança, sobre um banco para chegar ao quadro!...
Ai, as molhadelas até aos ossos, e os sapatos afogados!...
Ai, os outros sustos da " pedra-do- estiquete!..."
Ai, a figura sinistra e negra, da talvez ex-freira!...
Ai, o grande casarão monástico, transformado em cortiço minérvico de abelhinhas esculpidas em corolas rociadas !
Teresinha cresceu. Fez-se senhora. Já não saltava às cordas (" zás! zás! zás!"), os pés muito juntinhos, aos pulos, saltando e saltando, – e a corda vermelha descendo e batendo: (" prás! prás! prás! ")
Teresinha cresceu...
Casaquinho vermelho, de botões prateados, e saia escocesa; livros entalados no braço, na cabeça uma boina clara; no rosto uma larga pincelada de sol, onde bailavam sombras oscilantes de roseiras, e brilhavam dois olhos luminosos e meigos, semicerrados pela violência da luz estival, estou a vê-la chegar das aulas. Do alto do patim da escada, junto da qual floriam jarros, quantas vezes a esperei! E ela ao ver-me esperá-la, a sorrir:
- "Olá! Está ai?!"
- "Não! Estou lá fora! "
Teresinha parava. Olhava-me, entre risonha e trocista:
- "Com que então o " senhor" está lá fora?! Ora não querem lá ver?!!! "
E porque era transmontana, e achava delicioso, e saborosamente arcaico, certos termos e expressões da sua terra: (- " Dê-me um cibinho de pão!"; - " Colhi um mandil de casulas chicharas..." - "Estava arrimado ao fundo das escaleiras"), por vezes rematava apenas:
- " Ora não?"
No ar cruzavam borboletas brancas, e diluíam-se vagos perfumes de roseirais em flor!
Ao longe, gemiam rolas...
Lembras-te desse tempo, Teresinha?
Tu lembras-te?
" Ora não"?
Com areia fina entre dedos de criança, o tempo fugiu imperceptivelmente...
Teresinha acalenta os filhos. Por duas vezes ela os vê florir entre os seus braços:
- " Já se quer erguer!"
- " Já tem dois dentinhos!"
- "Já começa a andar! "
- "Já diz:"mamã"!
Teresinha mamã, sente-se inundada de felicidade!
Aperta ao coração os pequeninos que Deus lhe deu, e ergue os belos e grandes olhos castanhos para o azul do céu...É de lá, desse lago aéreo onde vagam as pombas, que descem os anjos pequeninos!...
- "Já se quer erguer!"
- "Já tem dois dentinhos!"
- "Já começa a andar! "
- "Já diz: "mamã!"
Lembras-te desse tempo, Teresinha? Tu lembras-te?
"Ora não"? "Ora não", Teresinha?
Na sua cama de doente, debaixo de uma colcha alvíssima e bem esticada, Teresinha geme baixinho. Sobre os grandes olhos castanhos, como sobre o seu espírito, que tão luminoso foi, desceu a treva. Lá fora também há escuridão: a escuridão da noite e das almas! E há gemidos: os ventos de Novembro, envolto em bátegas de chuva e de granizo...Noite de lágrimas!...
Lutando contra tudo e contra todos, os filhos conseguem chegar à sua cabeceira. Afagam-lhe a cabeça torturada; beijam-lhe o rosto crispado; apertam entre as suas mãos de homens as mãos femininas que lhes ampararam os primeiros passos...Mas Teresinha é tão infeliz que não se apercebe da sua presença, e continua a gemer baixinho...
Ai, as cordas vermelhas descendo e batendo!
Ai, os pés de Teresinha pulando e saltando!
Teresinha menina...
Teresinha estudante...
Teresinha mulher...
Teresinha mamã...
Chamava-se Teresinha e fazia hoje anos!
Pobre Teresinha!...
Transcrito de: “ O Comércio do Porto” – 01/08/1969 – secção: “Apontamentos”.
Tem textos dispersos por várias publicações, entre elas: “O Comércio do Porto”, onde mantinha a coluna “ Apontamentos”, e o “Mundo Português”, do Rio de Janeiro, onde publicou as “ Crônicas Lusíadas”. Foi redator do “Jornal de Turismo”, membro da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, e secretário-geral da ACAP. Está representado na selecta escolar: " Vamos Ler", da: Livraria Didáctica Editora, com o texto : " Bacos e redes".
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