segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Foz Tua - «Governos nunca se preocuparam com a componente patrimonial em risco»

O Movimento Cívico pela Linha do Tua (MCLT) considera que o relatório da ICOMOS, que sustenta que a construção da barragem de Foz Tua terá impactos irreversíveis na paisagem protegida do Douro, configura uma «situação da maior gravidade» a nível nacional. Daniel Conde, responsável do Movimento, acusa todos os Executivos de, nos últimos anos, esquecerem o estatuto do Douro Vinhateiro e o património do Vale do Tua. «É o património, a paisagem e o desenvolvimento que estão em causa», alerta.
Daniel Conde não tem dúvidas e refere que uma coisa é «absolutamente certa: se a barragem do Tua for avante, o Douro Vinhateiro deixará de ser Património da Humanidade».
Para o responsável, a «incrível marginalidade do contributo energético do pacote de dez barragens proposto [pelo anterior Governo de José Sócrates], mostra a ligação entre a asneira de novas barragens para colmatar a asneira de novos parques eólicos, e o escandaloso favorecimento das concessionárias à custa do Estado na forma de rendas de garantia de potência».
Críticas que se estendem ao projecto arquitectónico a cargo de Souto de Moura: «o delírio de que um arquitecto, mesmo sendo um ‘Prémio Pritzker’, e umas esguichadelas de tinta salvarão o Douro Vinhateiro de ser desclassificado, mesmo que, tratando-se de uma ínfima parte do território que será devastadoramente alterada, seria uma lógica aceitável para uma criança de 10 anos».
Daniel Conde recorda a desclassificação do vale do Elba, na Alemanha, para realçar que «a construção de uma ponte - também ela a ocupar uma porção infinitesimal do território – levou poucos anos a empurrar o sítio da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) para fora da sua bênção».
E acrescenta: «no fim da construção, do descerramento da placa com o nome de Souto de Moura, e da última esguichadela de tinta no paredão de 100 metros de altura, o Douro Vinhateiro sairá da lista de Património da Humanidade, tão certo como dois mais dois serem quatro. Estamos falar da UNESCO».
Para Daniel Conde, nada foi menos salvaguardado neste processo pelo Governo que a componente patrimonial em risco. «Nem por um segundo os executivos se preocuparam com o património do Vale do Tua, e como já se comprovou também, com o próprio estatuto do Douro Vinhateiro como Património da Humanidade».
«Esta despreocupação não só não foi inocente, como foi, aliás, uma enorme “pedra no sapato” das verdadeiras intenções e personagens por detrás da total farsa do Plano Nacional de Barragens», crítica, recordando que «o silêncio à volta da questão da desclassificação da UNESCO foi mantido com enorme sucesso, apesar de algumas queixas e questões levantadas desde há alguns anos sobre esta matéria, tanto por associações cívicas, como por ONG’s e partidos políticos».
Impactos severos:
Sobre os impactos negativos, Daniel Conde enumera vários, «extensos, severos e irreversíveis: significará a ruína socioeconómica da região, a troco de uma produção de electricidade menos que marginal a nível nacional».

«Mesmo os argumentos de menos importações de barris de petróleo, maior capacidade de armazenamento de água, e diminuição da produção de CO2 são absolutamente discutíveis: as centrais termoeléctricas nacionais funcionam a carvão, não a petróleo, e o desinvestimento no transporte público ferroviário na região levará a maior uso do automóvel particular, resultando precisamente em aumento das importações de petróleo (e aumento da produção de CO2)», explica o membro do MCLT.
Frisa que as estimativas de disponibilidade de água realizadas para o Plano Nacional de Barragens foram «tão correctas quanto as estimativas de tráfego nas SCUT ou as de passageiros para o TGV». Daniel Conde diz que «não haverá, como as alterações climáticas estão a colocar a nu, tanta água disponível quanto se julga, e a sua qualidade na albufeira do Tua já vem descrita no Estudo de Impacte Ambiental da barragem como muito má; a diminuição da produção de CO2 apresentada prende-se com a diminuição da importação de petróleo discutida, e com menor utilização das centrais termoeléctricas, as quais, por motivos de gestão da rede, devem ser mantidas sempre a funcionar – de mais a mais, a inquinação da água pela eutrofização, e nisso a barragem do Tua tem o seu futuro traçado, liberta metano, que é tremendamente mais prejudicial para a poluição atmosférica que o CO2!».
A nível agrícola, base de sustento da maior parte das famílias e da economia da região, «desaparecerão hectares de laranjal, olival, vinha de produção de Vinho do Porto de classe “A”, sobral e azinhal».
«Mata-se também uma jóia da coroa turística, e o único transporte público de várias populações, com potencial para servir de porta de entrada para a região de todo o Noroeste e Centro Peninsular, e de outros destinos na Europa, seja pela linha de TGV Madrid – Vigo, que vai passar às portas de Bragança, seja pela renovação do aeródromo de Bragança para receber voos de companhias low cost», relembra.
Já no que toca aos impactos ambientais, afirma que «a memória viva de um Douro desaparecido, e um habitat RELAPE (espécies Raras, Endémicas, Localizadas, Ameaçadas ou em Perigo de Extinção), serão obliterados para sempre. Espécies ameaçadas como a águia de Bonelli ou o lobo ibérico terão menos território ainda para sobreviverem, sem falar da potencial ameaça para o dado como extinto há alguns anos mexilhão de rio do Norte», lembra.
E recorda que o relatório da UNESCO já afirmou categoricamente que não será possível conciliar a barragem com a paisagem do Douro Vinhateiro, e que «por muito criativo que julguem ser Souto Moura, ou muito artístico que julguem ser “pigmentar” um paredão de 100 metros de altura, em plena foz de um rio».
Perda no transporte ferroviário
Daniel Conde considera que nesta última década de Douro enquanto Património da Humanidade, a região ganhou «notoriedade» a nível mundial, o que suscitou investimento em infra-estruturas e recursos e produtos turísticos, «ultimando num extraordinário crescimento do número de visitantes e de dormidas».
Contudo, refere que «a relação causa/efeito entre o galardão e o desenvolvimento da região é, no mínimo, ténue». No panorama ferroviário, «tudo foi sempre de mal a pior, onde para além de um meritório investimento na Linha do Douro entre a Régua e o Pinhão, se assistiu à perda do serviço Intercidades entre o Porto e a Régua, pela segunda vez em menos de 10 anos, e, claro, encerrou-se a Linha do Corgo – com pelo menos 6 km classificados como Património da Humanidade, e um serviço turístico efémero – e a Linha do Tua».

«O próprio Censo de 2011 não deixou margem para dúvidas: a região continua a sangrar profusamente, perdendo mão-de-obra e massa crítica diariamente, havendo uma longa distância entre as causas de abandono sistemático do Interior e a da crise económico-financeira global para justificar este despovoamento. Mesmo em termos de equipamentos sociais básicos, como sejam hospitais, centros de saúde e escolas, nem mesmo o galardão serviu de garrote ao desinvestimento. Resta então uma reflexão: estará este galardão a ser levado a sério, ou deixado ao sabor único das iniciativas privadas, direccionadas quase em exclusivo para o domínio turístico?», questiona.
Para o responsável, a Região deverá sobretudo crescer para fora, reportando-se à sua extensão natural através dos afluentes do Douro: pelo Corgo até Vila Real e às zonas termais das Pedras Salgadas a Chaves; pelo Varosa até Lamego; pelo Tua até Mirandela e à Terra Fria Trasmontana; pelo Sabor até ao Planalto Mirandês; pelo Côa até ao sítio Património da Humanidade das Gravuras de Foz Côa.
Por fim, Daniel Conde diz que «não precisamos de reinventar a roda, ou socorrermo-nos de grandes spots publicitários; basta que os diversos agentes turísticos da região, em conjunto com operadores turísticos e com o Turismo de Portugal, agendem uma série de protocolos de cooperação, e disponibilizem pacotes de experiências entre as micro-regiões turísticas presentes».
«Até mesmo uma simples refeição a bordo de um comboio charter ou de um navio do Douro que mescle de forma natural mas evidente produtos típicos que identifiquem os saberes e sabores que vão de Barqueiros a Barca d’Alva, de Lamego a Miranda do Douro, de Foz Côa a Chaves», remata.
O Café Portugal contactou o Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e Ordenamento do Território, bem como a Secretaria de Estado da Cultura, confrontando as referidas entidades com o exposto no presente artigo. Isto sem, até à data, ter obtido qualquer resposta.

Ana Clara; Fotos - MCLT

in:cafeportugal.net

Sem comentários:

Enviar um comentário