sábado, 26 de janeiro de 2019

Os vinhos de pouco álcool podem ser tão maus como os vinhos de álcool elevado

Um vinho de 10 ou 11 graus é um vinho de uvas que não amadureceram bem. É um vinho sem matéria e complexidade. Beber um vinho destes é o mesmo que comer uma tangerina pouco madura.
RICARDO CASTELO/NFACTOS

Recentemente, provei e bebi dois tintos que se podem enquadrar na categoria dos chamados vinhos de sede. Vinhos de pouco álcool e frescos. 

Um chama-se Saroto, projecto de dois jovens enólogos, Frederico Machado e Ricardo Alves, no Planalto Mirandês (Bemposta, Mogadouro), nos confins de Trás-os-Montes e do Douro nacional (ver proposta da semana). Não sei o ano do vinho, porque não consta no rótulo (foi engarrafado com o selo do IVV, como vinho de mesa, sem qualquer certificação, e as regras destes vinhos não obrigam a indicar o ano de vindima). Foi feito com uvas de uma vinha velha pisadas em lagar e a fermentação ocorreu espontaneamente e sem controlo de temperatura. No contra-rótulo é-nos dito que o vinho fez “estágio na adega” e que não foi sujeito a filtração. Tem 11% de álcool.

O segundo vinho chama-se Carralcoba e é um Caiño Tinto das Rias Baixas, Galiza, criado por Eulógio Pomares, o mesmo que produz os fantásticos Zarate, brancos atlânticos de Alvarinho. Também tem origem numa vinha velha (em Castrelo, Cambados) e é um DOC Rias Baixas de 2016. Foi vinificado em tonéis de castanho de 1200 litros e o seu volume alcoólico é de 11,5%.

Um e outro, são vinhos que podem muito bem já estar na carta de alguns restaurantes estrela Michelin deste mundo. No mínimo, deverão estar na barra de muitos bares que só servem vinhos da chamada vaga “natural”, seja lá o que isso for (enquanto não houver uma designação oficial e um modelo de certificação, é apenas um nome, um atributo mais próximo do marketing do que outra coisa). Ambos têm uma bonita imagem e uma boa história por trás para ser contada. E, muito importante, fogem do óbvio e do clássico. Mas são grandes vinhos?

Para evitar contra-perguntas retóricas (“Mas o que é um grande vinho, afinal?”), um grande vinho, no meu entender, não é apenas aquele vinho de que gostamos muito. Tem que ser mais do que isso. Tem que merecer um reconhecimento público abrangente, baseado em parâmetros de qualidade mais ou menos consensuais, na sua longevidade e também no seu historial, prestígio e até preço. 

Muitos destes vinhos de sede não são produzidos com a aspiração de serem grandes, é preciso reconhecer. Respondem a uma procura do consumidor por coisas diferentes e originais, mas também a um desejo de produzir vinhos personalizados, íntegros e muito ligados à tradição e ao lugar. Em alguns casos, vinhos de memória, do tempo dos nossos pais e dos nossos avôs. Noutros, vinhos de parcela, de uma vinha só, de muitas ou poucas castas, mas sempre com identidade e alma. Só por isso, a proliferação destes vinhos deveria merecer o respeito de todos nós. Não só porque traz diversificação ao sector, mas também porque tem implicações no tecido agrário e social de regiões mais esquecidas. Muitos destes projectos envolvem jovens que deixaram a cidade e se instalaram no interior desertificado. São eles que estão a recuperar castas e métodos de vinificação esquecidos e, com o seu exemplo, a dar uma segunda oportunidade a lugares pobres e periféricos, ao mesmo tempo que vão alargando os horizontes do vinho e as escolhas de todos nós.

Na hora de provarmos um vinho, não podemos deixar de ter em atenção toda esta “história” - se a conhecermos. Ela também conta para a prova, porque nos pode ajudar a entender melhor o vinho. No entanto, há um critério que vai prevalecer sempre: o da qualidade. Quando provamos um vinho, são as nossas emoções primárias que vão determinar o nosso julgamento. Ou gostamos ou não gostamos. Ou gostamos muito ou gostamos pouco. Se a “história” do vinho nos sensibilizar, tenderemos a exaltar ainda mais a sua qualidade ou a minimizar a falta dela. Mas nunca a transformar um vinho mediano e simples num grande vinho.

Tanto o Saroto como o Carralcoba são vinhos que deveríamos conhecer e provar. Provar e comparar com outros de estirpe diferente, para melhor podermos avaliar. Se tivesse que escolher entre os dois vinhos, elegeria como o meu preferido o Carralcoba. Tem um aroma mais complexo, uma frescura atlântica e um maior carácter, porque é um vinho que até no seu volume alcoólico reflecte melhor o lugar. O Saroto é um vinho também agradável no aroma, fresco, ligeiramente menos seivoso e mais curto de boca. Faz jus ao nome. É um tinto, diria, de rabo cortado. Depois, sendo um tinto "selvagem” no método de vinificação, não me parece que expresse o lugar e as castas do Planalto Mirandês. Os vinhos desta zona são por tradição e influência climática mais maduros. Têm mais espessura. Um vinho tinto de 11 graus do Planalto Mirandês reflecte mais um estilo pessoal e uma tendência de consumo (e também uma certa reverência dos mentores do projecto ao estilo Dirk Niepoort, com quem trabalharam) do que uma tradição ou um perfil regional.


Não há mal nenhum nisso. A questão nem é tanto o respeito pela tradição e pela identidade do lugar. É mesmo o volume alcoólico e a sua relação com a qualidade final do vinho. Um vinho de 10 ou 11 graus é um vinho de uvas que não amadureceram bem. É um vinho sem matéria e complexidade. Beber um vinho destes é o mesmo que comer uma tangerina pouco madura. Até nos pode saber bem, mas se tivesse sido colhida mais tarde teria um sabor mais rico, cheiraria e saberia melhor. Ao fazermos vinhos de pouco álcool, podemos estar a responder a um interesse crescente do consumidor, mas na maioria dos casos estamos a prejudicar o potencial das uvas. Uma uva pouco madura é tão má como uma uva madura de mais. Vinhos pouco maduros (ou muito maduros) tendem a igualizar-se, a cheirarem e a saberem todos ao mesmo. São vinhos mais de processo do que de terroir. É o que acontece com vinhos como o Saroto ou o Carralcoba. Mas há casos piores.

Pedro Garcias
FUGAS
Jornal Público

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