Em meados do século XVII, uma das famílias hebreias mais consideradas em Moncorvo era a de Pedro Marcos Ferro, casado com Branca Gomes.(1) A maioria dos parentes de Pedro viviam em Chaves e Lebução,(2) enquanto a parentela de Branca se foi de Vila Flor para Viseu.
Pedro fora casado em primeiras núpcias com uma mulher que não identificamos, que lhe deu um filho chamado Lopo que foi casar e morar em Faro, dedicando-se ao comércio.
Branca Gomes, foi a segunda mulher de Pedro Ferro. Em determinada altura, o casal deixou Moncorvo e foi para Salamanca. E na universidade local se formariam dois de seus filhos: um em medicina e outro em leis. Regressados a Portugal, foram assentar morada em Pinhel, enquanto os filhos casavam e se dispersavam. Vejamos:
Lopo Marcos Ferro, médico, casou com Leonor Pereira e foi estabelecer-se na cidade algarvia de Tavira.
O filho Diogo Vaz Faro, foi grande mercador na cidade do Porto, essencialmente dedicado ao negócio do tabaco. Era casado com Isabel Henriques, de Vila Flor, filha de Vasco e Mécia Fernandes.(3)
Francisco Marcos Ferro, advogado, nasceu por 1655, em Moncorvo. Estudou na universidade de Salamanca e casou com Maria Henriques, irmã da citada Isabel Henriques. O casal cedo se mudou para Viseu e, por 1694, foram para o Porto.
Entre a elite da burguesia Portuense, Francisco Ferro ocupava um lugar cimeiro e tudo parecia correr de feição quando, em 22.10.1698, a inquisição de Coimbra decretou a sua prisão.(4) E enquanto ele recolhia à cadeia, a mulher e os filhos e muita parentela sua, de Chaves, Lebução, e outras terras, procurou os caminhos da fuga, embarcando no navio Nª Sª la Coronada, com destino a Livorno, em Itália. Porém, escalando o porto de Cádis, foram presos pela inquisição de Espanha.(5)
Quando o prenderam tinham acabado de chegar ao Porto os barcos da frota da carreira do Brasil. E neles vinham mercadorias para o Dr. Ferro. Vejam:
— 211 arrobas de açúcar (mais de 3 toneladas!) que valiam uns 330 mil réis; 39 arrobas de carvão, no valor de 140 ou 150 mil réis; 10 arrobas de pau cravo avaliadas em 30 mil réis; 24 moios de solas, que valiam 30 mil réis.
Refira-se que estas mercadorias vinham em diversos navios e à responsabilidade de várias pessoas que, naturalmente, ganhavam a sua comissão e para o Brasil tinham levado mercadorias do mesmo Ferro para vender. Vejam que tipo de mercadorias:
— Espingardas, mosquetes de pederneira e morrão, espadas, adagas, chapéus, facas marinheiras, meias de lã, mantos de seda, panos de peneiras, cachimbos…
Muitos destes produtos eram importados, nomeadamente de Holanda e para as bandas do Norte o Ferro exportava principalmente azeites, em ligação com seu cunhado Manuel Henriques Lopes.(6)
Advogado… mercador… Francisco Marcos era também rendeiro e trazia arrematadas as rendas do morgadio de Moçâmedes, da abadia de Queirã e da Misericórdia de Viseu…
Do inventário de bens, destaque para o preço de um “vestido de primavera” que comprou para uma filha por 50 mil réis e para a sua livraria avaliada em 70 mil réis, constituída por livros de “direito e ordenação” e os 5 livros do Pentateuco.
Foi denunciado por seu primo Francisco Rodrigues Brandão e pelos amigos António e Alexandre Mesquita, todos naturais de Vila Flor e moradores em Viseu.
Outras denúncias chegaram do Porto, em sumário feito pelo deputado da inquisição D. Tomás de Almeida, em 1692. Uma das testemunhas ouvidas neste sumário declarou o seguinte:
— Disse que sabe que Francisco Marcos Ferro, Diogo Vaz Faro e Manuel Henriques Lopes, que são cristãos-novos, e eles o não negam, e Diogo Vaz Faro disse que eles eram mais honrados e que todos os mais eram uns manganos mestiços.
Ter-se-iam estes 2 irmãos e seu cunhado por “mais honrados” que os outros cristãos-novos? A verdade é que, em 12.5.1701, Pedro Furtado, seu companheiro de cela na cadeia de Coimbra, se apresentou perante o inquisidor Mascarenhas de Brito contando que ouvira Marcos Ferro falar de si mesmo nos seguintes termos:
— Disse que ele, Francisco Marcos Ferro, era descendente da Real Casa de David e estimava muito ser cristão-novo inteiro e os que não eram cristãos-novos inteiros eram mestiços, vis e baixos, e que lhe fazia grande injúria quem com eles o comparava.
Esta declaração foi confirmada por outro companheiro de cela, chamado António da Fonseca dizendo que “ele se prezava muito de ser judeu, descendente da tribo de David”. Mais tarde, houve desentendimentos graves entre o Ferro e o Furtado, sendo este mudado de cela. Para o seu lugar foi Domingos Pires. E estas foram 3 testemunhas que contra Francisco Marcos acrescentaram um rol de denúncias.
Desde logo foi acusado de dizer que Cristo não era o Messias prometido, antes era o Anticristo que, em vez de “congregar o povo santo”, viera separá-lo; que nele se não cumpriram as profecias e por isso os teólogos e doutores da Lei o não reconheceram e nele só acreditou “a gente popular ignorante e gentia”.
Com muitas citações da Bíblia, disse que se a tribo de Judá se dispersara pela Sefarad, e que 9 tribos e meia foram para a terra de Assaret, que fica para além dos desertos e está defendida por um rio de pedras que estão sempre a bater umas contra as outras. E com argumentos tirados dos livros dos Profetas, afirmava que o Messias viria no ano de 1708, em que as 12 tribos se juntariam e reconstruiriam o templo de Jerusalém. E, citando o Bandarra, dizia que “nos três que vêm o reo haverá açoites e castigo”, referindo-se aos 3 inquisidores, que ele classificava como “os ministros da crueldade”, que prendiam para roubar os bens dos prisioneiros. E agora veja-se uma esta denúncia do mesmo Pedro Furtado:
— Disse que o santo ofício não prendia ninguém senão por herege, e que a ele réu faziam grande injúria os que o tinham por herege, dando a entender que não fora batizado (…) mas que era circuncidado.
Obviamente que logo os inquisidores mandaram os médicos examinar, concluindo estes que não havia qualquer sinal de circuncisão.
Aquelas foram apenas algumas das heresias apontadas pelos três companheiros de cárcere, das quais Francisco Marcos Ferro (através do seu procurador) soube defender-se muito bem, conseguindo provar que aqueles três homens não mereciam qualquer crédito, que eram padres e que puxavam por ele conversas acerca das Escrituras, que depois deturpavam, e sendo ele cristão-novo e estando preso por judeu não era crível “que se declarasse com os ditos padres e lhes confessasse o que era (…) pelo que se deve julgar que os testemunhos dos ditos padres não são capazes de fazerem prova”.
Na verdade, Pedro Furtado nem sequer se chamava assim, pois o nome verdadeiro era Manuel Carvalho. E entre eles houvera grandes desavenças, ameaçando Francisco que o “havia de açoitar e meter num alguidar”.(7) Este padre era natural de Serpa, cura da igreja de Sambade, filho de António Machado, familiar do santo ofício. Foi preso por sodomia e se fazer passar por mulher.
O padre António da Fonseca, natural de Amarante, morador em Midões, viveu em Coimbra a maior parte do tempo. Dele faria o conservador da universidade o seguinte retrato: “embusteiro, fingido e suspeito da nossa santa fé”, e o escrivão de Santa Cruz o considerava “teólogo de larga consciência” cujas “práticas e conversações eram sempre picantes”.(8)
O padre Domingos Pires era natural de Soutelo Mourisco, Vinhais, pároco de Bouzende, junto a Bragança. Foi preso porque andava amancebado com uma moça e pedia aos fregueses que a “venerassem por santa”.(9)
Na defesa de Francisco surgiu entretanto um contratempo: o seu procurador abandonou o processo dizendo que “lhe parecia que este se defendia maliciosamente e entendia que ele era judeu (…) pelo que entendia do modo e dizer do dito réu ser este fino judeu”.
Apesar disso, a pena de Francisco, lida no auto-da-fé de 18.12.1701, foi relativamente leve: abjuração, cárcere e hábito a arbítrio e 60 mil reis para despesas do santo ofício.
Notas:
1 - Branca Gomes era filha de Francisco Rodrigues Brandão e Isabel Gomes, que foram morar para Viseu.
2 - Neste ramo da família ligado ao Dr. Manuel Mendes, contam-se vários médicos, formados também por Salamanca.
3 - Inq. Coimbra, pº 9984, de Vasco Fernandes Lopes, o Malrasca; pº 2439, de Mécia Fernandes; pº 10572, de Isabel Henriques.
4 - Idem, pº 6198, de Francisco Marcos Ferro.
5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do mundo, Sefardita e Marrano, pp. 89 – 99, ed. Lema d´Origem, Porto, 2014.
6 - Inq. Coimbra, pº 8521, de Manuel Henriques Lopes. Quando foi preso estava carregando um barco de azeites no porto da Figueira da Foz.
7 - Inq. Coimbra, pº 7622, de Pedro Furtado.
8 - Idem, pº 10318, de António da Fonseca.
9 - Ibidem, pº 3011, de Domingos Pires.
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