Número total de visualizações do Blogue
Pesquisar neste blogue
Aderir a este Blogue
Sobre o Blogue
SOBRE O BLOGUE:
Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço.
A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)
(Henrique Martins)
COLABORADORES LITERÁRIOS
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.
terça-feira, 19 de março de 2013
Márcia: O “Cão Preto”
Por: Amadeu Ferreira
Na aldeia, trama forte que o Diabo urdisse só a Tia Márcia deslindava.
Nó, por apertado, que o Sujo desse à vida dum desgraçado só a Tia Márcia desfazia.
Ferrolho que o Demo armasse às almas incautas só a Tia Márcia conseguia abrir.
O «Márcia» vinha-lhe do Brasil, onde nascera e se criara até aos catorze. Ao arrepio dos usos, que eram a gente nova emigrar para o Rio de Janeiro e para São Paulo, Márcia imigrara para a aldeia e com ela trouxera um sotaque cantarolado e aberto e uma «arte» que, diziam os entendidos, tinha muito a ver com o candomblé, os orixás, os voduns, os oxosis e os iemanjás e outros «cultos» dos nossos irmãos do outro lado do mar.
Toda a aldeia sabia das «artes» da Tia Márcia para anular enguiços e afastar assombrações, redes que o Diabo tecia quando lhe davam azo e abriam caminho às «malapatas» com que atentava os desprevenidos, que os aldeãos entendiam como «tentações do Demónio».
Que na aldeia o Demónio tinha muitos nomes, mas todos iam dar ao mesmo: às aflições e aos desassossegos dos que lhe sofriam as arremetidas e atraíam as atenções diabólicas. E alguns já o Demo assombrara e afligira, e eram várias as «manobras» que ele usava: desde «ataques» no termo em noites escuras e coriscosas até às «aparecidas» na curva do cemitério a horas caladas, tudo eram meios e processos de o Sinistro abordar os aldeãos descuidados e menos crentes.
Talvez viesse da variedade de circunstâncias e disfarces a diversidade onomástica que lhe atribuíam, nomes que a Tia Márcia invocava ao tornear-lhe as armadilhas e os maus intentos.
A Tia Márcia tanto recorria ao «Demo» como ao «Demónio», ao «Sujo», ao «Satanás», ao «Sinistro», ao «Canhoto», ao «Porco», ao «Barzabu», ao «Dianho» e até ao «Cochino», «Marrano», «Tinhoso» e «Mafarrico». Não se sabe bem das preferências da Tia Márcia nas invocações; se seria o acaso que as inspirava ou se o nome teria influência no caso concreto que ela tinha a resolver.
A «arte» da Tia Márcia não tinha paralelo na aldeia. Esconjuração sua era remédio e cura para muitos enredos dos corpos e das almas.
Só não passava «escritos» como a vidente da Lousa; ela até sabia ler e escrever, mas é que não acreditava naquele «recurso».
As palavras ditas a tempo e horas e com a devida intonação, os gestos cabalísticos ilustrados com penas de três pitas pretas cosidas com nastro de três fios, e três patas de coelho bravo enfiadas num baraço de linho de três fios dobrados completavam o cerimonial e eram a «ferramenta » toda de que a Tia Márcia precisava.
É certo que as tais palavras que acompanhavam o esconjuro vinham num «brasileiro» que soava um tanto estranho aos ouvidos da aldeia, mas a que muitos atribuíam o sucesso da Tia Márcia nos despiques com o «Mafarrico».
Às vezes, o Diabo empenhava-se na urdidura de um mal maior, o que pedia empenho especial dos interessados e da Tia Márcia. Mas os casos notáveis, que ficaram na memória e andam ainda na tradição da aldeia, foram três.
O do «ivadinho», um garoto eivado e relesito, que o Demo trazia mirrado, «sequinho com’às palhas» quando lho levaram, e ficou listo e escorreito com três dias de esconjuras e rezas e se fez depois um homem alentado e cheio de saúde.
O outro caso que deu brado foi o do «cavalo rinchão» que tropeava na Mesquita e nas Ferrarias em noites de tempestade e trovões e que resistiu a «figas», «abrenúncios» e «t’arrenegos» dos muitos passantes naquele caminho obrigatório para Vale de Ladrões e Carviçais, mas que nada pôde contra os apelos da Tia Márcia aos «génios do bem» e aos contrapoderes dos misteriosos «mundos do além» a que recorreu.
Mas a coroa de glória da Tia Márcia, e a razão cimeira da gratidão da aldeia, foi quando da aparição no caminho da Deveza do «cão preto de três cabeças e três pares de olhos» que impediu mais de um mês o acesso nocturno aos Casais dos Lobos, acesso importante para os pastores e os donos dos muitos castanheiros que ponteavam a zona.
O «cão preto» já fora visto por três aldeãos em noites particularmente escuras e de cieiro cortante, número que desceu quando duas das três testemunhas confrontadas com a dificuldade de ver um cão «preto» em noite também «preta» confessaram que o não tinham visto, mas que lhe ouviram bem os «ladrares» das três bocas ao mesmo tempo. Quanto ao terceiro, não teve dúvidas e manteve a certeza de o ter visto e ao brilho dos três pares de olhos fixos nele e que sorte fora o ter-lhe escapado «sem ofensa nem moléstia».
Ainda se pediu ao Tio Balhé que aprestasse a caçadeira e os zagalotes e saísse ao caminho à «besta-fera» na curva do caminho da Deveza onde se acoitava aquela «alma penada feita cão». Mas o Tio Balhé argumentou que melhor seria pedir ajuda à Tia Márcia, que «cão preto de três cabeças» não era serviço ao alcance da sua pontaria, «porque se acertasse numa sempre ficariam duas», e mesmo que acertasse em duas
sempre poderia a terceira vingar-se do «desaforo que haviam feito às parceiras», como ele dizia.
O Tio Balhé lembrou ainda o caso de há anos em que o povo pediu a um seu parente, também caçador, que o livrasse dos lobos que, às ocultas do escoval que então enchia o Trás-das-Eiras, se chegavam aos gados quando saíam e entravam nos palheiros. Só que ao parente, ao meter-se ao escoval, lhe saltou um lobo, «grande com’um reixelo», de moita espessa, sem campo de tiro nem tempo de pontaria, e que milagre foi ter tudo ficado só numa grande borrada nas calças do caçador, «que não poude suster as tripas c’o susto».
Não que ele, Balhé, tivesse medo, mas «cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém», e «isto de lobos e cães pretos é tudo aparentado»; só iria se a Tia Márcia o acompanhasse com as suas «artes» e «ferramentas», decidiu o Tio Balhé.
E, assim, numa «noite de lobisomens», que são «noites de lua a meio crescer», se puseram a caminho o Tio Balhé, a Tia Márcia e um voluntário, pastor valente e entendido em lobos e armadilhas.
Só que as rezas, as figas e os esconjuros com as penas de pita preta e as patas de coelho bravo da Tia Márcia surtiram e quando os três passaram a linha do comboio e entraram nos domínios da «besta-fera», este já tinha sumido ou, como dizia o Povo, estava em «pó e terra», como a Tia Márcia tinha pedido nas suas rezas e exorcismos, bem mais fortes e bem urdidos que as tramas do Demo.
Há sempre descrentes e «gente de pouca fé»; alguns duvidaram do «assucedido», rindo-se do que contaram o Tio Balhé e a Tia Márcia, mas tiveram que engolir as troças e as desfeitas quando depois se encontraram os restos do «cão preto» perto do sítio em que os esconjuros foram feitos. Restos que não deixaram dúvidas, que as «cinzas» não enganavam e ainda se viam alguns pêlos e alguns dentes das «três bocas», que aguentaram melhor o «fogo» que consumiu a «besta-fera».
E a confirmar o acerto daquela verdade veio o facto certo e verificado por todos que nunca mais houve novas do «cão preto de três cabeças» nas redondezas dos caminhos que da Fonte da Moira levam à Deveza e aos Casais dos Lobos, fosse em dias de sol a pino, tardes de lusco-fusco, noites de invernia e trevas ou madrugadas de raios e troviscos.
Amadeu José Ferreira (Sendim – Miranda do Douro, 1950) é mestre em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e professor convidado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). É presidente da Associaçon de Lhéngua Mirandesa (ALM) e professor em cursos desta associação desde 2000.
Assinou várias obras obras em língua mirandesa, desde poesia como Cebadeiros (Campo das Letras, 2000), L Ancanto de las Arribas de l Douro (INA-PDI, 2001), Cula Torna Ampuosta Quienquiera Ara (Tema, 2004), Pul Alrobés de ls Calhos (Fluviais, 2006), até contos como Las Cuontas de Tiu Jouquin (Campo das Letras, 2001), e literatura infantil como L Filico i l Nobielho (Chinchin, 2006) e L Segredo de Peinha Campana (Gailivro, 2008).
Além de Os Lusíadas, Amadeu Ferreira traduziu para mirandês obras de escritores latinos (Horácio, Virgílio e Catulo), Os Quatro Evangelhos e duas aventuras de Astérix (em colaboração), Asterix l Goulés e L Galaton. É coordenador científico e tradutor da banda desenhada Mirandês – História de uma Língua e de um Povo. Fracisco Niebro é um dos seus pseudónimos literários.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Guapa a conta e mestria de contar. Embalamo-nos no cantarolar para enxotar o Mafarrico que bem longe irá parar. Não tinha lido esta, gostei.
ResponderEliminar