sábado, 2 de julho de 2016

A Praça do nosso contentamento

"O Coreto enquadrava as verbenas e parece que ainda se ouvem melodias de outros tempos. Ouve-se também o cantar dos números do Bingo do GDB: o 1, sozinho, o pilinhas; o 88, as maminhas da Amália…"

A Praça Camões estava repleta de gente focada no grande ecrã ali montado para ver a bola. Um silêncio de cemitério, preenchia o ambiente, enquanto olhares expectantes tentam distrair o polaco que se preparava para marcar a grande penalidade.

Emparedado entre o Cinema Camões e o Liceu, na magia do tempo, fugiu-se-me a lembrança para outras noites…
Debaixo das arcadas, o Cachimbo Xixeiro afiava a faca, pronta a cortar com mestria a peça de vitela que pendurada no gancho, aguardava pela sua vez. A Tia Aurora que ganhava a vida a vender leguminosas, maltratava uma cliente burguesa que se atrevera a desdizer dos seus feijões. O Sr. Zé Espada, estacionava com dificuldade a camioneta Bedford, série “J”, o primeiro modelo a ser produzido, em 1963, na General Motors da Azambuja. O Milhão vendia vasos e outros cacos, cães de louça e flores artificiais. A Rebordonas vendia casqueiro e grelos. O Peixeiro sacudia as moscas. O Chefe Maurício agarrava o cinto das calças e cofiava o bigode, esticando os beiços, numa manifestação de autoridade não fosse ter de correr atrás de algum meliante. Os namorados aproveitavam a distração dos pais e fugiam, à socapa, para o Jardim António José de Almeida e
acobertados pela proteção frondosa das tílias, trocavam os beijos possíveis. O Chico Nareco, guardador do Jardim, tomava conta dos pimpões que a pequenada alimentava, na pequena taça que já não repuxava. Migalhas de pão alimentavam os pardais, nervosos e irrequietos. Nas latrinas, o Elvis fazia mais uma viagem nas fumaças e ácidos, sobras dos meninos ricos da cidade. No Floresta saía mais uma tosta mista das mãos sisudas do Sr. Teixeira. A D. Alice, Santa Alice, aturava os estudantes enfrascados de subarus e charabanadas. Na esplanada fermentavam amores proibidos, fechados em armários que o tempo demorava em abrir. Olhares furtivos, de sinalética codificada, congeminavam transações de outras vidas, daquelas que nunca se encaixam e se auto destroem. Nos buracos dos muros do jardim, rebentavam bombas de Carnaval, compradas às escondidas na Tabacaria do Jesuíno. O Coreto enquadrava as verbenas e parece que ainda se ouvem melodias de outros tempos. Ouve-se também o cantar dos números do Bingo do GDB: o 1, sozinho, o pilinhas; o 88, as maminhas da Amália…

As lembranças desorganizam-se e vejo agora o Polis, pelo meio, o Fervença, limoso, flui sozinho, enfraquecido pelo decorrer do estio. Os peões, à falta de velocípedes, ocupam a ciclovia e refilam às modernices da juventude e dos que teimam em ser elegantes.
De volta ao Mercado, o Cachimbo desfez a peça de vitela. O Peixeiro vendeu os carapaus aos pobres e a pescada chilena ao Dr. Nalguinhas. A Tia Aurora vendeu o melhor feijão manteiga da temporada. O Milhão tratou mal a canalhada que lhe roubou um par de fisgas. O Chefe Maurício adormeceu de tédio.
No grande ecrã, o Quaresma selou o 5-3 final, depois do Patrício defender o quarto remate dos polacos, um tal de Blasczkowski. No empedrado, ouve-se a borracha dos pneus da Bedford do Zé Espada, o motor 220 Diesel de 3614 c. c., queixava-se da vida que levava.

Acabado o jogo, o povo voltava para casa sem pensar no Brexit ou nas hipotéticas sanções da União Europeia. Que Diabo! Estávamos nas meias-finais.
Como dizia o último ébrio que saía do Floresta: Que se f… o mundo!


Rui Machado
in:Correio Transmontano no Facebook

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