terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O Gardel, o Leonel Petra e o Senhor César Barata.Três personagens maiores do imaginário do meu tempo de menino

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Entrar às nove da manhã era coisa que o Gardel abominava. Se algum dia entrou na Barbearia antes da hora para poder estar operacional quando soassem as quatro mais nove badaladas no relógio da torre da Sé, foi porque se enganou, ou teria grande responsabilidade. Já o Leonel entrava sempre a tempo excepto quando a noitada acabava já o dia se pressentia e a Alvorada despontava, mais cedo no Verão, mais tarde no Inverno.

O Senhor César Barata era patrão de dois tipos tão diferentes e mesmo assim tão iguais. O Senhor César tinha como caraterísticas primeiras a benevolência e a boa disposição. A benevolência, eu atribuía-a ao seu carácter conciliador e a boa disposição nascera da sua tendência para se rir de tudo e todos e ter o dom de saber aforismos e frases feitas em quantidade industrial.

No nosso tempo de Flórida o Senhor César antes das nove abria a porta, metia a cabeça e dizia: -Isto é que são terras não é Vidoedo! Ele sabia há muitíssimo tempo que a mãe da minha mulher era de lá e gostava de "atazanar, pois a Isabel adorava o diálogo com ele.
Eram os bons dias que o preparavam para aturar e meter o Gardel nos eixos quando o Benfica perdia e o Leonel quando as manhãs ajudavam a destilar o "Grazil" da noitada no Almeida ou no Verbo. O Padre Carneiro chegava a partir das 09:30 e se o Dr. Patrício estivesse presente eram abertas as hostilidades que o Senhor César tentava em vão remeter para uma espécie de "Truce" que pusesse as hostilidades em banho-Maria. 
Quando eu era pequeno o Gardel dormia pouquíssimo, tinha afazeres após deixar a Barbearia que nunca consegui compreender como se desenvencilhava deles tão airosamente. Era chefe de sala na JOC no tempo em que o ping-pong estava na moda. Os duelos Entre o Telmo Seixas e o Senhor Ribeiro duravam horas e os mirones manifestavam-se sempre que o seu preferido ganhava uma partida. 
Quando o Gardel fechava o salão de Santa Clara eram 23:00 e ele ainda tinha no mínimo até às 02:00 da matina para ir visitar o Zé Verde-gaio que depois o acompanhava ao Verbo, Almeida e estabelecimentos afins. Andava sempre a pé. Raramente entrava num carro pois só confiava em pouquíssimos "chauffeurs".
O Leonel, esse, era um castiço mas amicíssimo da mãe e irmãs e o seu carácter era bom por natureza. No dia que fomos ao Cemitério eu fiquei convencido, que por aquele não viria o mal ao mundo. O Fininho recusou-se a acompanhá-lo, o outro entrou em pânico que se borrou completamente, a Alma do outro mundo, afinal era o Victor Fotógrafo e ele encarou tudo sem um remoque, antes achando que tudo era natural e só não acontecia a quem não entrava naquele trem. 

Acho que o Senhor César queria a estes dois como se fossem seus irmãos. A minha amizade com o Gardel era uma das que eu mais prezava. A minha filha mais velha era da idade do seu mais novo. Como já disse ele era adepto do Benfica e eu do Sporting. Teriam os miúdos sete ou oito anos e o Sporting jogaria em Alvalade com o Sevilha para as competições europeias.
Uma noite o Gardel passou no Flórida para cobrar as quotas do Desportivo. Fez-me então uma proposta. Já mais que uma vez havíamos falado de irmos a Lisboa ver o Sporting X Benfica e aproveitarmos para relaxar um pouco. Disse-me vamos a Lisboa ver o jogo e levamos os garotos. Eu respondi, vamos no meu carro. Resposta rápida :-sabes bem que não viajo de automóvel, assim vamos de Comboio. 
Quando fechei o Café e fui para cima, dormíamos no terceiro andar, e disse à minha mulher o que tencionava fazer ela só disse :-se um Diz mata outro Diz esfola!
Dias depois embarcámos ás 06:00 da manhã e chegamos a Santa Apolónia aos pregos da noite. Mas as crianças adoraram a viagem! No dia seguinte à noite fomos à Bola e os outros dias foram de turismo. Só não atingi um objectivo que era fazer da minha filha uma devota do Sporting, mesmo assim ela sem alarde é fiel aos amores do pai. Regressámos e ficamos ambos com uma recordação que eu ainda hoje tenho como uma das minhas mais agradáveis viagens. Daria uma bela história passar estas e outras memórias para letra redonda e partilhá-las com os que gostam de Bragança ou no mínimo conhecem um pouco da cidade. Neste grupo incluo o Dr Lino Ferreira que foi professor no Liceu antigo e que era amicíssimo do Padre Carneiro e do Senhor Aníbal Pássaro que em Londres me contou histórias ocorridas na Barbearia Ideal e em que todos os personagens que mencionei tiveram papel de relevo.
O padre Carneiro era um bom garfo…Sabia também estar à mesa das festas de aldeia e seleccionar o melhor do cabrito, da vitela e do leitão que não sei porque artes de mágica ia sempre a parar ao prato de Suas Reverências. 
Tendo tido o cuidado de avisar o da Música para não reabrir o Baile muito cedo era um consolo vê-los trinchar nas carnes que mais pareciam trogloditas à volta de um cervo tenrinho e dourado com as peles crestadas como só o forno de lenha das aldeias é capaz com esteva e vide ardendo para se cumprir mais uma refeição magistral. 
Quando o Padre Carneiro começava a contar os pormenores o Dr. Patrício irritado falava alto e dirigindo-se ao Leonel ou ao Gardel afirmava com convicção, sois uns alarves e pior ainda não cumpris com a abstenção das carnes o que infringe a lei da temperança.
Tenho ao longo do ano que findou escrito sobre a Babel que se formava na Barbearia Ideal e a capacidade de argumentação que particularmente os mais letrados possuíam de com uma simples menção a algum tema controverso se armava ali uma confrontação retórica que para mim era ouro sobre azul!
 Além da frequência e do prazer de dizer algo que deixasse o outro estupefacto havia capacidade do Leonel dizer ao Cigano: -Não tens dinheiro para alimentares a criança? E respondendo o cigano,-Num Senhora. O Petra verdadeiramente Zangado ripostou :-VENDE O VEÍCULO!





Bragança, 22 de Janeiro de 2019
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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