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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

FOI ASSIM

Ilustração: Susa Monteiro
Eis-me aqui em Lisboa mas nunca saí inteiramente de lá. Já não tenho camuflado, já não tenho arma, já não tenho cabelo loiro. O que tenho eu então? O que aconteceu à minha G3, o que me aconteceu a mim?

A minha filha mais velha nasceu quando eu andava na guerra, nas Terras do Fim do Mundo, cerca de seis meses depois de embarcar para lá. Lembro-me que tínhamos, à entrada do arame farpado, um letreiro que dizia Lisboa 10 000 km, Moscovo 13 000. Estávamos na fronteira da Zâmbia, a uma distância imensa de Luanda, vivendo os sobressaltos do primeiro ano de horrores. Nenhum de nós tinha trinta anos excepto o capitão e os sargentos e tudo aquilo era um pesadelo. Nisto veio uma mensagem em cifra

(porquê em cifra Santo Deus?)

a anunciar que me nascera uma menina. É difícil descrever o que senti. Lembro-me que me apeteceu matar os cabrões de Lisboa que me haviam mandado para ali. Matá-los mesmo, juro, matá-los mesmo. Fui sozinho para a beira do arame, o mais longe possível dos meus camaradas porque me apetecia chorar. E aí fiquei que tempos, voltado para a chama numa mistura de sentimentos que não sei descrever, embrulhado em lágrimas de alegria, desespero e ódio, repetindo

– Cabrões cabrões cabrões

e depois, à medida que o tempo corria, os abraços apertados e tristes

(tão apertados e tão tristes)

dos outros rapazes. Sem palavras: de que serviam as palavras? Andei para ali que tempos na areia, a cambalear como um tonto. Isto não perdoo. Não perdoarei nunca. Mas continuo a sentir a carne viva da amizade deles, que sempre foi tão importante para mim. Isto no Chiúme, no sítio pior do batalhão, era junho. Até um mês como junho pode ser tristíssimo. O meu camarada Eleutério, que sempre que ia para a mata regressava cadavérico, colocou-me a palma no ombro. E não podem imaginar o que uma palma ajuda, com os falcões por cima e as folhas das árvores a tremerem, tremerem, quase tanto como eu tremia. Depois nada, salvo eu sozinho sentado na cama, a olhar a G3 encostada à parede. O Eleutério olhou para mim e olhou para ela sem dizer nada, claro, para quê falar? Recordo-me de haver pensado

– E se eu não chego a vê-la?

Como aconteceu ao meu primo Quim Zé, e nisto eis-me outra vez na Vespa do Quim Zé, sempre com paciência para o miúdo que eu era, a passear-me em Benfica, agarrado às costas dele, todo vaidoso. Gostava de ti, primo, eras bom e paciente para mim, não te esqueci nunca, nunca te esquecerei, fui com os meus pais assistir à chegada do teu caixão, a pensar

– Oxalá a Ana Maria

(a irmã dele de que eu gostava tanto, ainda gosto)

a pensar

– Oxalá a Ana Maria saiba mexer na Vespa.

Demorei quase cinco meses a espreitar o meu bebé ao vir de licença a Lisboa, onde passei trinta dias quase sempre deitado na cama, mirando o tecto, a contar os dias que faltavam para regressar àquele inferno, com uma criança loira, de olhos claros, a dormir no meu quarto. A minha laranjinha, como eu lhe chamava, a minha laranjinha, eu sempre de olhos cheios de Angola, tão aflito, tão tenso de raiva. O Quim Zé morreu de um tiro só, pensava-se que do Pedro Afamado, o Mata-Alferes. Pode ser, pode não ser, o que importa? De qualquer maneira não foi o Pedro Afamado, foram os tais cabrões de Lisboa que o mataram, o Pedro Afamado fazia o que lhe mandavam, tal como nós, só que ele lutava pela sua terra, em relação à qual tinha mais direito do que eu. Pronto, foi assim. Mas para quê tanta violência, tanta injustiça, tanto sofrimento? Voltei ao fim de vinte e sete meses daquilo a que o meu camarada e amigo de coração Ernesto Melo Antunes chamava um erro formidável, um erro de uma maldade atroz. Meu Deus as lágrimas que apesar de tudo consegui congelar na parte de trás dos olhos. Lembro-me do capitão

– Matei um homem de costas, doutor, matei um homem de costas para nós

numa perplexidade e num sofrimento que se palpava. E eu a ouvi-lo engolindo-me a mim mesmo, porque era eu quem se atravessava na minha própria garganta. Passaram anos sobre isto tudo e de vez em quando estou lá, palavra de honra, de vez em quando estou lá. Não era apenas um erro formidável, Ernesto, era uma estupidez formidável. Porquê, porquê, porquê? E tudo isto no país mais bonito que visitei, sob estrelas que não conhecia, negros miseráveis perto dos brancos miseráveis que éramos, miúdos atirados para um espaço que não nos pertencia com a estação das chuvas a crescer, a crescer.

Agora eis-me aqui em Lisboa a escrever isto. Eis-me aqui em Lisboa mas nunca saí inteiramente de lá. Já não tenho camuflado, já não tenho arma, já não tenho cabelo loiro. O que tenho eu então? O que aconteceu à minha G3, o que me aconteceu a mim? Se contasse isto ao Quim Zé aposto que ele me respondia

– Senta-te aí atrás na Vespa

e me levava a passear por Benfica até as lágrimas me secarem todas no interior das pálpebras.



(Crónica publicada na VISÃO 1349 de 10 de janeiro de 2019)
António Lobo Antunes

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