Devemos chamar-lhe cristãos novos, como o rei D. Manuel estatuiu, por decreto, ou judeus velhos, que embora batizados, nunca abandonaram a lei de Moisés, no dizer de um autor citado por Borges Coelho? (1) Habituada a viver apartada nas judiarias, com leis próprias e governantes seus, em liberdade religiosa oficialmente promulgada por leis régias, a minoria judaica, depois que recebeu a água do batismo, ficou exposta a estranhas mudanças sociais e incompreensíveis práticas religiosas.
Assim exposta, e vivendo em perigosa duplicidade religiosa, naturalmente criou mecanismos de defesa. E, entre estes, devem destacar-se os casamentos endogâmicos e o trabalho em redes familiares, onde a confiança e o crédito ocultavam o dinheiro e agilizavam os negócios. Também no seio da família de Rafael de Sá e Luísa de Mesquita, a endogamia foi regra e na rede familiar de negócios por eles montada no Algarve entraram também os sobrinhos Grácia Nunes e António Cardoso da Paz, que cedo perderam os pais e para ali rumaram.
Nascido e batizado em Vinhais, António Cardoso da Paz (2) foi crismado em Faro. Certamente começou a trabalhar em ligação com seu tio Rafael, o líder do grupo familiar e tutor dos sobrinhos, que também terá negociado o seu casamento. Ana da Paz era tia paterna de Rafael de Sá. Casou com António Furtado da Paz e o casal morava em Bragança. Ambos foram processados pela inquisição de Coimbra, na vaga de prisões que se fizeram na cidade ao início da década de 1660. (3) Não sabemos que caminhos trilharam depois que saíram penitenciados em 1662.
Mas encontramos, mais tarde, no Algarve, duas filhas do casal. Maria Lopes, uma delas, casou com seu tio Luís da Paz, irmão de Rafael de Sá. Outra filha, Ana da Paz, como a mãe, foi a escolhida para consorte do primo António Cardoso da Paz, celebrando- -se o casamento por 1685. Ficaram igualmente a morar em Faro e ali lhe nasceu a filha Isabel (4) e um filho que foi batizado com o nome de Rafael de Sá da Paz, (5) sendo padrinhos os tios Rafael Sá e Luísa Mesquita. Na década seguinte, António Cardoso e Ana da Paz mudaram-se para Aiamonte com a família, que ali cresceu com mais 4 filhos.
Aiamonte é município de Espanha, e por ali passavam as rotas comerciais ligando o Algarve a Sevilha e oferecendo aos mercadores portugueses bons negócios na região da Andaluzia e a possibilidade de comerciar com as Índias de Castela. Explica-se assim a presença de muita gente da nação portuguesa na região, dominando a administração do tabaco na comarca de Aiamonte e no contrato da venda do sabão. Pelo menos um boticário fora do Algarve estabelecer-se ali, enquanto um seu irmão era organista da matriz e Francisco Rodrigues mestre de meninos. Temos ainda informações sobre dois confeiteiros e dois proprietários de casas de jogo, enquanto Luís Tinoco se empregava como guarda na aduana dos portos secos. Até Manuel Dias Brandão, (6) que fora o pagador geral do exército do reino do Algarve, se mudou para Aiamonte, a explorar um estanco de tabaco.
A casa de morada de António Cardoso da Paz era na Calle Real, uma casa que valia 400 mil réis, com loja de fazendas. A casa era foreira ao convento da Sª das Mercês e ao abade de Lepe, de que ele pagava 12.5 ducados de velon, o equivalente a 6.875 réis. António Cardoso quis comprar a casa “e escreveu ao comendador, prior do convento que lha vendesse (…) não teve resposta”. O facto mostra que era intenção do inquilino manter-se em Aiamonte e que dispunha já de capitais avultados. A loja de António Cardoso teria alguma referência, já que nela se vestiam pessoas gradas da terra como era o caso do aguacil mor de Aiamonte, Don Matheos Arias Vella, ou o sargento mor Don João de Mata Mouros, que lhe ficaram devendo umas dezenas de patacas. Na loja se vendiam baetas inglesas e holandilhas que, possivelmente, seriam importadas através do tio Rafael. Mas também havia meias de seda e tecidos diversos e muito em especial “rendas de Pita”, ou seja rendas feitas com fio extraído das piteiras, trabalho em que se especializaram artesãos açorianos. Podemos suspeitar que António Cardoso fosse especialista neste nicho de mercado, com larga venda para as Índias de Castela o que, por vezes, não corria bem.
Veja-se um caso, contado pelo próprio: - A Cristóvão Gonçalves, mulato, posto que não parece, e é português, que comerciava em Índias de Castela, e é casado na cidade de Aiamonte, onde é morador, deu uma encomenda de rendas de pita e outras drogas semelhantes para lhe levar a vender nas Índias de Castela e que o procedido da dita encomenda lhe trouxesse em patacas, e pedindo-lhe na volta da viagem o procedido da sua encomenda, lhe respondeu que lho haviam roubado os ingleses; sobre o que correu demanda e provou o contrário, com 7 ou 8 testemunhas e teve sentença a seu favor… (7) Outra remessa de “rendas de pita e outros géneros de fazenda” para vender, foi à responsabilidade “de outro mulato chamado Carandana de alcunha, casado com uma mulata chamada Francisca, mercador das Índias, morador em Aiamonte”. Como foi morto nas Índias, o dinheiro das vendas foi remetido à viúva e para ele e outros credores receberem o seu, tiveram igualmente de recorrer à justiça. Estes não foram os únicos casos complicados e cobrança difícil, de vendas para as Índias de Castela. E provavelmente os casos em que tudo correu bem seriam muito mais numerosos. Infelizmente não há números que nos permitam avaliar da importância e capacidade exportadora deste empresário da nação de Bragança. Em Roma, com acesso à cúria papal, se encontrava o Dr. António da Paz Furtado, médico, filho de Luís da Paz e Maria Lopes, sobrinho de António Cardoso. Pois, aí encontrou este uma oportunidade de negócio: a bancaria. Trocando por miúdos: através do primo, certamente, António mandava vir de Roma bulas papais permitindo o casamento entre parentes, serviço que incluía transferências de dinheiro. Já atrás se falou de vários portugueses presentes em Aiamonte.
Faltou referir uma importante família da gente da nação, originária de Miranda do Douro – Brites Alvarado e Manuel Francisco, aliás, Manuel Lopes Zamora, nome adotado em Castela. A família regressou a Portugal estabeleceu-se em Lisboa, no Largo das Mudas, então um dos espaços mais nobres da cidade, habitado por grandes capitalistas. Ao princípio do mês de Dezembro de 1702, foram presos pela inquisição. Um dos seus filhos chamou-se José Francisco Alvarado e era caixeiro do contratador Luís Nunes da Costa.
Corria o ano de 1703 e estando António Cardoso com o filho Rafael na sua loja em Aiamonte, ali apareceu José Francisco Alvarado, contando-lhe que teve a sorte de estar em Coimbra a executar uma cobrança de 10 mil cruzados (4 contos de réis!), quando prenderam a sua família e o iam também prender a ele. Tal não aconteceu porque o seu patrão mandou um próprio a avisá-lo que fugisse com 200 mil réis, entregando o restante dinheiro ao seu correspondente em Coimbra. Para além do dinheiro que o patrão lhe entregou levava um anel de diamantes que valeria 100 mil réis, que lho havia dado Ana da Fonseca de Castro, enteada do dito Luís Nunes da Costa, com a qual estava esposado.
Por essa altura António Cardoso ficara viúvo e abandonou Aiamonte, vindo fugido, “com 60 ou 70 patacas, deixando 2 mil e tantas patacas empregadas em rendas de pita, que ficaram em Aiamonte”.
No próximo texto explicaremos os motivos da fuga e continuaremos com António Cardoso, a mercadejar em Portugal.
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