As duas espécies de pegas-azuis, pertencentes ao género Cyanopica, apresentam uma distribuição curiosa, estando separadas por muitos milhares de quilómetros, entre a Península Ibérica e a Ásia Oriental.
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Bruno Garrido Macias / SHUTTERSTOCK - A pega-azul pode ser encontrada em Portugal e Espanha, mas também no norte da China, Mongólia, Península Coreana, Japão e nalgumas áreas da Sibéria. |
A pega-azul é um corvídeo, de tamanho médio, cujas características físicas mais distintivas são os azuis das asas e da longa cauda, o preto do seu “barrete” e o tom creme e acastanhado do resto do corpo.
Também conhecida por charneco, rabilongo e por mais uma meia dúzia de nomes de âmbito local, esta ave é bastante conspícua, deslocando-se geralmente em grupos familiares que abarcam várias gerações, ou mesmo em bandos compostos por várias famílias, e vocalizando com muita frequência e intensidade.
Em Portugal, a pega-azul é encontrada principalmente na faixa interior do país, embora quanto mais para Sul na sua distribuição mais provável seja de a encontrar no litoral. Esta ocorrência está associada à zona de clima com influência mediterrânica no nosso país e na vizinha Espanha.
A sua distribuição é por vezes descontínua, um factor que dados apontam que se deva à sua natureza essencialmente florestal. Esta característica leva-a a ter dificuldades em subsistir em terrenos pouco arborizados, como é o caso das pseudoestepes cerealíferas, onde muitas vezes resiste apenas em manchas mais arborizadas ou nos corredores ripários. É isto que explicará, por exemplo, a existência de uma população isolada na Sierra Nevada, que terá ficado incapaz de se expandir dali devido à conversão agrícola dos solos circundantes.
De reputação parcialmente desmerecida (não há dados que suportem a acusação de que estes animais têm um impacto particular sobre outras espécies de aves, por exemplo, embora possam oportunisticamente predar crias ou ovos), nem sempre as interacções das pegas-azuis com os humanos são amistosas. Principalmente quando os agricultores tentam cultivar árvores de fruto ou similar, fonte alimentar que estas aves apreciam, o que aliado aos seus hábitos gregários as torna um verdadeiro terror para os donos de pomares. Foram também por isto perseguidas durante muito tempo, e ainda há quem defenda não lhes dar tréguas, escudando-se na crença de que estas aves, ao terem sido alegadamente introduzidas na Península Ibérica durante o período da expansão de Portugal e Espanha, seriam aves exóticas e um factor de desequilíbrio nos ecossistemas. Mas não é isso que a ciência nos diz: a verdade é bastante mais interessante.
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Rudmer Zwerver / SHUTTERSTOCK - As pegas-azuis são animais altamente gregários e particularmente ruidosos quando voam em bando. |
Irmãos à distância
Esta crença que a pega-azul seria uma espécie introduzida não aparece do nada: é resultado da distribuição mundial do género Cyanopica, composto por apenas duas espécies, muito semelhantes fisicamente. Uma, Cyanopica cooki, é nativa da Península Ibérica, particularmente das áreas de influência mediterrânica no sudoeste e centro, enquanto que o seu parente próximo, Cyanopica cyanus, é encontrado no norte da China, Mongólia, Península Coreana, Japão e nalgumas áreas da Sibéria… a quase 10 mil quilómetros de distância!
Sendo as espécies tão obviamente aparentadas – historicamente eram, aliás, consideradas a mesma espécie –, como explicamos esta distância entre ambas? A introdução de uma das populações parecia uma possibilidade razoável: afinal, esta distribuição é tudo menos típica. No entanto, múltiplos trabalhos perto da viragem do século, incluindo a tese de mestrado do português Pedro Cardia, determinaram, para além de qualquer dúvida, que as populações asiáticas e ibéricas apresentavam um grau de diferenciação genética considerável. Esta distinção seria completamente impossível caso os indivíduos europeus tivessem origem numa introdução a partir dos asiáticos, complementando assim descobertas, recentes à altura, que indicaram um fóssil de cerca de 44 mil anos encontrado em Gibraltar como pertencente a este género.
Foi determinado, então, que não só ambas as populações eram nativas das áreas onde residiam correntemente – com óbvios ajustes para possíveis alterações de distribuição ao longo do tempo – como que eram espécies distintas, um par de espécies-irmãs, ou seja, os parentes mais próximos existentes uma da outra.
Mas então, como é que espécies tão próximas, evolutivamente falando, acabaram por ocupar localizações geográficas tão díspares? A resposta está uns milhares de anos atrás, na última era glacial.
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CC BY 3.0 - Note-se, nesta representação gráfica, que a Península Ibérica e a costa este asiática apresentavam o mesmo tipo de vegetação na última era glacial. Fonte: Internet Archaeology |
Separadas pelo gelo
É hoje tido como ponto assente que a distribuição das aves do género Cyanopica, à primeira vista tão anómala, é na verdade um caso particularmente extremo de um padrão que existe noutras espécies, e não só de aves. A separação de uma população antigamente contínua em duas ou mais devido ao avanço do gelo na última era glacial, que durou desde há cerca de 115 mil anos até há cerca de 11 mil e 700, a maior parte do Pleistocénico, sendo esta parte de um padrão maior de glaciação, a Glaciação Quaternária.
Com a diminuição das temperaturas, muitas espécies foram vendo as áreas onde conseguiam sobreviver cada vez mais diminuídas e, enquanto muitas acabaram por se extinguir, outras subsistiram no que se costuma chamar “refúgios glaciares”, zonas onde as alterações dos ecossistemas não foram tão dramáticas e onde estas espécies conseguiram sobreviver.
Uma dessas zonas é justamente a Península Ibérica, que neste período apresentava grandes estepes florestadas, onde estes animais puderam subsistir. Outra área geográfica que apresentava este mesmo tipo de habitat era… o Este da Ásia. Assim, é altamente provável que estas duas espécies, divorciadas há muitos milénios, sejam ambas descendentes de uma única espécie que apresentava uma distribuição contínua entre as duas hoje existentes. Esta, no entanto, ter-se-á extinguido da maior parte da área que ocupava algures durante os sucessivos períodos glaciares, deixando apenas duas populações isoladas nos seus extremos, que divergiram, dando origem às duas espécies que hoje conhecemos.
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