segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Miquelina Adelaide Ferreira de Castro e Figueiredo

Assim vem mencionada no livro do «Registo da cadeia de Bragança», aparecendo contudo em outros documentos (tomo VI, págs. 110 e 540, destas Memórias) com apelidos e sobrenomes diferentes, o que não admira, porque os fidalgos tinham muitos. Era natural de Rio de Fornos, concelho de Vinhais, casada e residente na Paradinha Velha, concelho de Bragança, filha de José Ferreira de Castro, natural de Vale das Fontes, concelho de Vinhais; tinha de altura «sessenta polegadas, rosto comprido, claro e corada, sinais de barba», trinta anos de idade, vestido cor de pinhão e era proprietária quando foi presa na sua casa da Paradinha Velha, na noite de 8 de Outubro de 1840 «por lhe ser encontrado em sua casa o cadaver de Maria Magdalena, solteira, da dita povoação».
Quando procedíamos a investigações nos livros do «Registo da cadeia de Bragança» encontrámos notícias de crimes bastante repugnantes – patricídios, infanticídios, fratricídios, assassinatos em condições tragicamente emocionantes, mulheres que matam os maridos à pancada, com veneno, etc., etc., isto no século XIX (não há livros anteriores referentes a estes registos).
Vimos a descrição de crimes que sensibilizaram a opinião pública, ecoando ao longe como o de D. Maria Bernarda, de Rebordelo, e outras que matam uma mulher; como outra mulher de Vale das Fontes acusada de assassinar o marido; como o de Maria Gonçalves do Vale, de Rebordãos, filha de Francisco Gonçalves do Vale e de Teresa de Morais, presa em 1875 por infligir maus tratos a um galego (parece que o queixoso se gabava de proezas cupidíneas que não fazia, donde a irritação das raparigas de Rebordãos que, em legítimo desforço, o castraram – daí o apodo popular capadeiras de Rebordãos, segundo presumimos); como o assassínio do coronel António de Figueiredo Sepúlveda, de Bragança, praticado pela sua criada Regina Rodrigues, de Rio Frio de Carregosa (287), e António Joaquim em 1883.
Conhecemos o caso de Frei Miguel, conterrâneo de Bragança, famoso contrabandista de sedas e sabões no primeiro quartel do século XIX, quando essa vida exigia audácia enorme pelas tremendas responsabilidades que acarretava, principalmente na larga escala em que ele a praticava, chegando a passar carros e carros desses géneros, que exportava mesmo para o Porto, juntando a isto a substituição de éguas e cavalos bons das caudelarias nacionais (durante o tempo que os mandavam a pastagens na primavera para os baldios das aldeias), por alimárias inferiores, embolsando o excesso, acrescido de largas vigarices de dinheiros apanhados a diversos indivíduos.
Explorado convenientemente o meio ou, talvez, julgado acanhado para a sua faina de contrabandista, desapareceu daqui e surgiu na Índia, onde professou num convento franciscano; passados anos veio para o da mesma ordem em Bragança, chegando alfim a comissário das esmolas e a recebedor das anatas dos confrades, andando para esse fim em constantes peregrinações e pregações (era também apreciável orador) de terra em terra.
Bom Deus, o que foi essa vida em intrujices, simonias, fornícios et reliqua ejusdem furfuris até que a ordem o castigou!!! (O respectivo processo está no Museu Regional de Bragança).
Conhecemos também o caso de Domingos Lopes da Silva, de Bragança (avô do abade de Lamalonga,também do mesmo nome, falecido pelos anos de 1919, com sobrinhos residentes em Bragança), que, colhido de surpresa pelo feroz assassino e ladrão Diogo Alves em 1838, no Aqueduto das Águas Livres de Lisboa (onde exercia as suas proezas, precipitando depois as vítimas daquela enorme altura, dando aspecto de suicídio a informe massa a que ficava reduzida o cadáver, donde a sua impunidade durante anos, até que foi executado a 15 de Julho de 1840), lhe entregou seis pintos que levava e que ele lhe exigiu; mas, refeito do imprevisto choque, estendeu o bandido com um valente soco, dizendo-lhe ao mesmo tempo: «e, agora, ahí vai mais um murro á trasmontana».
Francisco António Martins Rebelo publicou em 1841, em folheto de cordel, a vida do terrível bandido e alude ao facto referido, omitindo porém o episódio do murro, ainda hoje memorado em Bragança.
Conhecemos o caso do Canedo, notável brigão, natural de Santulhão, concelho do Vimioso, que alfim foi vítima das tempestades semeadas, sendo morto num motim, em 1902, na romaria de Santo Antão da Barca, concelho de Alfândega da Fé (288); conhecemos mais o caso do morgado da Junqueira; o do dentista de Moncorvo, notável aventureiro, que, prevalecendo-se da audácia e aproveitando a ingenuidade de uma menina de fortuna daquela vila, esteve prestes a raptá-la, se o não mata um tal Pimpim. Conhecemos igualmente o caso de José Jorge (ver o artigo respectivo); finalmente, conhecemos vários outros crimes que emocionaram a lira popular, levando-a a fixá-los nesse género de literatura chamada ironicamente literatura de cordel, sem nos lembrarmos de que ela é a base da sólida literatura clássica autêntica, a qual os perpetuou também na lenda, na tradição, no relato curioso transmitida de pais a filhos nas longas noites de inverno à lareira, ao crepitar do brasaredo, enquanto se comem os bilhós e o pichel gira de mão em mão, no folheto impresso vendido a tostão nas feiras.
Mas o caso da Miquelina é dos mais falados, a não ser o de José Jorge, pela auréola de que anda revestido. Ainda hoje se refere que ela matou a criada lançando-lhe em cima a tampa de uma tulha donde estava tirando pão e arrancando-lhe os olhos apresentou-os depois na mesa de jantar ao marido, só por lhos ouvir gabar de lindos; ainda se fala no garbo com que atravessou as ruas de Bragança no meio da escolta militar que a conduzia à Relação do Porto, montada em fogoso cavalo, de charuto na boca, sobranceiramente indiferente à pasmaceira que, embasbacada, a admirava; ainda se comenta a indiferença do marido que, horrorizado, a abandonou e, comendo, bebendo e dormindo em seráfica beatitude, atirava para o fundo de um poço, como pitorescamente dizia, com todos os cuidados e na semcerimónia de um procurador de causas perdidas, de apelido Rebelo, que lhe encampou os direitos conjugais, obtendo-lhe a liberdade, evidente isenção da forca e o contubérnio doméstico. A Miquelina veio depois a falecer no concelho de Bragança pelos anos de 1875, arrependida e confessada à hora da morte dos crimes praticados, que, segundo a tradição, não se limitaram à morte da criada. O seu feito parece inspirado na tragédia grega ou shakesperiana.

Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança

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