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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Douro: Pizzicato e Chula: ou o Rio Poético de A. M. PIRES CABRAL

Escrevo este texto a um sol transparente de Janeiro, uma luz de cristal chega das lonjuras do Planalto e nenhuma reentrância deixa ao domínio da obscuridade. Não sei por quê, (ou, melhor, sei) esta claridade traz-me ao pensamento, e ao olhar, os poemas de A. M. Pires Cabral, também eles límpidos, concisos, austeros e puros, como este dia imaculado.
Este intróito, quiçá desnecessário, para dizer que reside no Nordeste Transmontano, algures, um dos mais notáveis poetas portugueses contemporâneos. É uma voz singular, que sobressai nítida na sua originalidade e na sua pessoalidade, inscrita em alto-relevo num pano de fundo paisagístico e magmático de rios, montanhas e fragas, o que lhe confere a inflexível ossatura, a intransferível identidade que ostenta. A sua palavra é serena mas firme, sóbria mas sofisticada, telúrica mas fina, depurada mas elegante, contida mas intrinsecamente emotiva, leve mas culta. Claridade, harmonia e equilíbrio de matriz indubitavelmente clássicos suportam cada poema, que se espraia suave e elegantemente na página, cuja brancura também vai bem com a luminosidade da sua linguagem. Os rios que desaguam nesta poesia só poderão ser os dos clássicos portugueses e universais – clássicos de todos os tempos no sentido que toda a obra superior é clássica ou integrando em si uma essencialidade clássica, como explicava José Régio na sua doutrinação estética, na Presença. Assim, nesta meticulosa nitidez de dizer repercutem ecos dos mestres fundadores e renovadores da língua: dos trovadores medievais a Camões, “vão as serenas águas deste rio” , do Padre António Vieira a Camilo Castelo Branco, de Almeida Garrett a Eça de Queiroz, de Cesário Verde ao Fernando Pessoa ele mesmo, para nos mantermos somente de entre os criadores pátrios. Dos seus versos emana uma luz intensa, mas à medida da retina humana, uma cintilância que envolve sem ofuscar, uma rigorosa consciência do lugar da palavra e do silêncio: “porque há lugares tão feitos / para a malha do silêncio, / que uma simples sílaba / apenas murmurada – embaraça” . A unidade de tom, de timbre e de visionamento do mundo é a marca de água de uma personalidade ética e esteticamente exemplar, que mantém em relação às suas raízes pessoais e culturais uma fidelidade sem hiatos. O seu discurso poético e as suas opções temáticas desenvolvem-se numa linha realista/naturalista (enquanto tipologia estética, que não enfeudada a realismos ou naturalismos de escola, ou de correntes histórico-literárias) que nos dá a ver o Real numa voz que é sobretudo fala, diálogo, respiração do ser no mundo, emanando de sua funda individualidade.
É pois sobre uma exímia tangência à literalidade que se desenrola a sua linha poética, linha de rumo de uma coerência inquebrantável e elemento básico de uma eficácia poética verdadeiramente incomum. Da terra nasce a obra deste poeta maior e é ao rés-da-terra que a palavra poética caminha, essencialista e imanentista, sem nunca se levantar em qualquer tipo de estridência dramática e muito menos melodramática. Mas não nos deixemos iludir pela acalmia de superfície, ela é possuidora de uma energia expressiva e comunicativa como poucas e é sem tergiversar que testemunha e denuncia os variados desconcertos do mundo, sobretudo o desconcerto de mentalidades que se abatem sobre uma terra e de uma gente esquecidas ou menosprezadas, situadas para cá do Marão, onde gostariam de mandar os que cá estão.
O livro que hoje aqui nos traz, como se vê no título, é Douro: Pizzicato E Chula: o Douro é, como sabem os leitores de A. M. Pires Cabral, um tema obsessivamente, mas nunca repetitivamente, abordado pelo autor: “tenho o rio na boca” , diz ele em Têmporas da Cinza. E este é também mais um livro sobre o seu rio, extraordinário a vários níveis: unidade de tema e de tom, vivacidade do estilo, reflexão metapoética, crítica irónica, cáustica, corrosiva até, de uma certa maneira de encarar a poesia: artificial, postiça, de pose ou de salão, neste caso de bojo ou de porão. Douro: Pizzicato E Chula é uma unidade poética subordinada ao tema da Viagem, uma verdadeira viagem no espaço, no tempo, no pensamento, no Ser. Viagem metapoética, ainda: poesia e poetas constituem-se em longas paragens obrigatórias. Uma viagem total, pois, não à volta do seu quarto, mas uma viagem na sua terra. E também ele poderia dizer: “e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica” ; neste caso uma soberba crónica e também reportagem poéticas.
“A Fábula do comboio e do barco”  não é mais do que uma representação global do livro por metonímia e sinédoque. Não é mister a fábula exigir como condição indispensável ter na narrativa animais como personagens, mas sim configurar uma narrativa alegórica cujo desenlace reflicta uma lição moral em que seja nítida a vitória do bem sobre o mal, em suas diversas faces ou metamorfoses: a fraqueza sensível sobre a força bruta, a bondade sobre o calculismo e o interesse, a humildade sobre a presunção. Aqui, podemos concluir que a lição desta fábula é a vitória da ancestral sabedoria da natureza perante a jactância dos poetas pretensiosos e ignorantes dos segredos do rio, da poesia das coisas perante a poesia das metáforas. Ao contrário da corrida entre o comboio e o barco, aqui, na verdade, não se registou “um empate técnico” , antes uma vitória do Douro por KO.
  O percurso desenrola-se portanto sob o signo do olhar e da poesia, e se o rio é uno e imutável, já a ideia de poesia, de viagem e de beleza variam conforme o ponto de vista dos viajantes, suas intenções profundas, suas formas de estar no mundo e na vida, isto é no Rio, que tudo isso simboliza ou, melhor, alegoriza. Uma estética natural constituída pelo rio, pelas montanhas, pelo céu, pelos vinhedos, pelas aves, pelos peixes, coexiste, em simultaneidade dialéctica, com uma estética e uma poética humanas. Mas se aquela une o humano e o natural, esta, pela artificialidade das palavras calculadas, das metáforas, das imagens, estabelece a separação, a fenda entre as coisas e a linguagem que as nomeia. Neste caso, este grupo de “poetas abrasados nos mais canoros zelos”  não se contenta em olhar, ver, nomear; dentro deles “têm uma oculta segunda intenção: / fazer a derradeira tentativa / de também se decifrarem a si mesmos, / e não apenas o que o cerne do rio / retém por nomear. // Sagazes poetas, que assim alimentam / dois coelhos de uma cenoura só” . Estes poetas ficam-se pela simples retórica da visão e da composição, postergam a linguagem fenoménica da transparência e da essencialidade, não a essência de raiz platónica residente algures na ideia e na pura contemplação, mas a visão pura de quem vê as coisas no seu natural habitat e conquista a beleza pura da simplicidade e da naturalidade. A referencialidade é pois o ponto de partida da poesia de A. M. Pires Cabral: também, sob esse prisma, poeta de excepção na nossa poesia, a tomarmos por boa a afirmação de Jorge de Sena, retomada por Joaquim Manuel Magalhães, de que haveria uma impossibilidade mental na poesia portuguesa de se escrever no arco da referencialidade.
Mas retomemos a nossa viagem dupla, por este rio acima, – ainda que esta tenha por destino Barca de Alva e não Santarém também ela abunda em digressões, como vêem, – na poesia de uns é o rio que corre, na poesia de outros é o artificioso curso das palavras que faz do rio pretexto para o outro texto, que por grávido de metáforas atroadoras é bem possível que afugente as aves “ou, pelo menos, as deixe / desfavoravelmente impressionadas” .
Deve dizer-se, em abono da verdade, que o poeta não se põe de parte dos seus compagnons de route, assume na pele, cúmplice e solidariamente, a condição precária da humana vaidade que aponta aos poetas-viajantes: “piscamo-nos os olhos, / achamos que somos os maiores” . Mas o Poeta vai mais longe, sente dentro de si um percurso inverso da viagem real: estranho, ontológico, desempenhando a imprescindível função de estranhamento própria da verdadeira poesia: “Sigo no barco que sobe o rio. Porém / não sinto que subo o rio: / sinto, em vez disso, / que o rio me sobe a mim” . A diferença entre a poesia do rendilhado, do arabesco e a poesia autêntica é que esta segrega o real nas suas entranhas, e as palavras são, à maneira do Crátilo, de Platão, coisas, seres vivos, ou que com estes se fundem e confundem. E essa poesia, como o Douro sentido e não só percorrido, “escalda como / uma febre nas dunas. Repercute / nas têmporas, magoa / as vísceras da alma” . Desta forma, ninguém sai incólume à leitura de um poema de A. M. Pires Cabral, porque ele não se funda no fogo-de-artifício retórico, mas no fogo magmático de cariz ontológico dos seres e das coisas. Não nos deixemos pois confundir pela ironia poética dirigida aos poetas abrasados e canoros, os mesmos que no “Prefácio” de Têmporas da Cinza eram classificados como “os piores de todos nós”, porque “perfuram o tímpano” . O Poeta não renega em momento algum a sua condição de poeta, seria aliás renegar-se no píncaro da superior missão porque veio ao mundo, ele renega simplesmente o artificialismo e o convencionalismo poéticos. Desde logo, A. M. Pires Cabral é um poeta no sentido atribuído pelo grande romantismo alemão ao poeta e à poesia, ou seja, categoria estética que percorre e é inseparável do homem no mundo e na linguagem. Aliás, ao observar os múltiplos planos segundo os quais se desenvolve a obra de A. M. Pires Cabral, ocorre-me outra observação de Jorge de Sena, referindo-se à sua própria obra, também ela diversa e plural, como é sabido: “sempre achei que a poesia é a minha principal criação, mesmo quando estou fazendo coisas inteiramente diferentes de poesia. Penso que o sentimento poético está sempre por detrás de tudo o que escrevo” . Sendo, por conseguinte, Pires Cabral um poeta ainda quando escreve em prosa, é enquanto poeta tout court que o seu talento atinge dimensões incomuns e renega, por conseguinte, com certa regularidade, a poesia e os poetas com aquela ironia com que o nosso Garrett renegava o Romantismo, precisamente na sua obra romântica maior, As Viagens na Minha Terra: “Romântico, Deus me livre de o ser” , o mesmo é dizer, “os poetas, repito / são os piores de todos nós” .
Pensamos que na velha disputa entre a origem da beleza superior, se a residente no mundo natural, segundo Kant, ou na obra de arte humana, segundo Baudelaire, A: M. Pires Cabral parece inclinar-se, neste e noutros livros, pelo filósofo alemão. Todavia, não sejamos ingénuos, estamos perante um altíssimo produtor de beleza artificial: apesar da naturalidade da sua escrita, ela não é mais do que o effet du réel, uma procura do modelo exemplar na natureza. Ele sabe que apesar da essencial beleza do seu rio e da sua montanha, elas perderiam bastante sem o sujeito sensível e contemplativo, estésico e estético, espectador e transfigurador, que toma essa matéria primeira para a destilar em matéria verbal indelevelmente inscrita na obra de arte de linguagem, ou seja, no poema. Esta questão entre o Real e as palavras que o cantam, sua pertinência ou utilidade, é pelo poeta insistentemente colocada; e este livro não foge a essa regra. Observe-se o poema “Palavras”: “Que queres, Douro, de mim? / Não posso senão palavras, / […] opor palavras contrafeitas / aos ruídos que salteiam este sítio / tão alegremente / […] Com tanto rumor nativo, / com tanto rumor sadio / - para que diabo, Douro, quererás / as intrusas / palavras inquinadas do poeta?” .
Continuemos então a seguir o périplo líquido e escrito, este mundo natural está entranhado até ao âmago pelo mundo humano: construído, destruído, reconstruído, de novo devassado. O Poeta comove-se, revolta-se, compadece-se: o presente cruza-se com o passado, que o mesmo é dizer, a vida sempre intrínseca e dialecticamente perpassada de morte, como se verifica em “Solar em Ruínas”, cujos destroços, mais que destroços materiais de uma construção, são metafóricas ossadas dos seus antigos habitantes e o testemunho de que a pompa não suspende, antes torna mais ostensiva, a acção da morte. Trata-se de uma meditação de carácter elegíaco que não deixa de denunciar a intemporal exploração do homem pelo homem: “Além, sobre o lado esquerdo, / um solar destroçado pelo tempo, / derruído quase até aos alicerces. // Nasceu do chão do suor como um pomposo / cogumelo, e dele prosperou. / Teve lustres acesos nos salões, / porcelana da China nos armários, / garanhões na estrebaria e no quarto das criadas, / tectos de castanho com lavores, / obra de artesãos remunerados a malgas de caldo. // E, por cima de tudo isto, /uma capela muito compenetrada / do seu papel de pára – raios. // Ei-lo porém decaído do fausto, devassado de animais daninhos / que nele nidificam e defecam. // Lastimável como um cão extraviado / do aconchego dos donos. // Resta um pano da fachada, onde / entre as heras que comem do granito / a pedra-de-armas ainda sobrevive / […]” . E nesta linha melancólica e elegíaca em que o sujeito viaja e se viaja, toma o itinerário em sua mais estreme alegoria.
O rio é, em todas as circunstâncias, uma lição de vida e de poesia, “ou não fosse o rio um espelho / antes de rio” . O seu funcionamento perfeito, a sua rigorosa selecção entre o essencial e o acessório, tornam-no num mestre, diríamos, o supremo Mestre e, nessa medida, “De Scientia” apresenta-se como uma soberba arte poética: “Comparativamente, / o rio sabe muito poucas coisas. // Não sabe, por exemplo, que este peixe /que agora mesmo lhe arrufou a tona / é um Barbus Bocagei. // Porém sabe que tem de ir e vai. /Sabe a rapidez com que deve ir / a cada momento. Sabe o caminho. / E sobretudo sabe o sítio / que o dedo do grande destinador / lhe apontou para recolher ao mar. // E eu? // Atento a todas as vozes, / entregue à libertinagem / de tanta sabedoria - / eu, amigos, que sei eu / de mares no fim da viagem?” .
É privilégio nosso, a Nordeste, bem no centro de múltiplos paraísos naturais, como este(s) Douro(s), termos entre nós, um homem, um intelectual, um escritor, um poeta com a dimensão de A. M. Pires Cabral que, como poucos, tem o segredo horaciano do “malho e da bigorna ”  para erigir a escultura poética. E sejamos gratos a quem dá muito e pede pouco, quase nada. Felizmente, a sua reconhecida contenção não o inibiu de pedir à vida um mínimo, para os seus leitores, essencial: “Não pedi demasiado à vida / nem a esta viagem: / uma guitarra apenas, uma voz” .

1 - A. M. Pires Cabral, Douro: Pizzicato E Chula, Lisboa, Edições Cotovia, 2004, p. 47.
2 - Idem., p. 45.
3 - A. M. Pires Cabral, Têmporas da Cinza, Lisboa, Edições Cotovia, 2006, p. 62
4 - Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, Porto, Porto Editora, 1985, p. 15.
5 - Douro: Pizzicato E Chula, ob. cit., p. 27.
6 - Idem., p. 28.
7 - Idem, p. 13.
8 - Idem.
9 - Idem, p. 14.
10 - Idem, p. 53.
11 - Idem, p. 17.
12 - Idem, p. 63.
13 - Têmporas da Cinza, ob. cit., p. 11.
14 - Jorge de Sena, cit. por Luís Adriano Carlos in Fenomenologia do Discurso Poético
– Ensaio Sobre Jorge De Sena, Porto, Campo das Letras, 1999, p. 14.
15 - Almeida Garrett, ob. cit., p. 55.
16 - Pires Cabral, Têmporas da Cinza, ob. cit., p. 69.
17 - Douro: Pizzicato e Chula, ob. cit., p. 24.
18 - Idem, p. 19
19 - Idem, p. 30.
20 - Idem, p. 35
21 - Idem, p. 46.
22 - Idem, p. 57.

Fernando de Castro Branco

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