Este intróito, quiçá desnecessário, para dizer que reside no Nordeste Transmontano, algures, um dos mais notáveis poetas portugueses contemporâneos. É uma voz singular, que sobressai nítida na sua originalidade e na sua pessoalidade, inscrita em alto-relevo num pano de fundo paisagístico e magmático de rios, montanhas e fragas, o que lhe confere a inflexível ossatura, a intransferível identidade que ostenta. A sua palavra é serena mas firme, sóbria mas sofisticada, telúrica mas fina, depurada mas elegante, contida mas intrinsecamente emotiva, leve mas culta. Claridade, harmonia e equilíbrio de matriz indubitavelmente clássicos suportam cada poema, que se espraia suave e elegantemente na página, cuja brancura também vai bem com a luminosidade da sua linguagem. Os rios que desaguam nesta poesia só poderão ser os dos clássicos portugueses e universais – clássicos de todos os tempos no sentido que toda a obra superior é clássica ou integrando em si uma essencialidade clássica, como explicava José Régio na sua doutrinação estética, na Presença. Assim, nesta meticulosa nitidez de dizer repercutem ecos dos mestres fundadores e renovadores da língua: dos trovadores medievais a Camões, “vão as serenas águas deste rio” , do Padre António Vieira a Camilo Castelo Branco, de Almeida Garrett a Eça de Queiroz, de Cesário Verde ao Fernando Pessoa ele mesmo, para nos mantermos somente de entre os criadores pátrios. Dos seus versos emana uma luz intensa, mas à medida da retina humana, uma cintilância que envolve sem ofuscar, uma rigorosa consciência do lugar da palavra e do silêncio: “porque há lugares tão feitos / para a malha do silêncio, / que uma simples sílaba / apenas murmurada – embaraça” . A unidade de tom, de timbre e de visionamento do mundo é a marca de água de uma personalidade ética e esteticamente exemplar, que mantém em relação às suas raízes pessoais e culturais uma fidelidade sem hiatos. O seu discurso poético e as suas opções temáticas desenvolvem-se numa linha realista/naturalista (enquanto tipologia estética, que não enfeudada a realismos ou naturalismos de escola, ou de correntes histórico-literárias) que nos dá a ver o Real numa voz que é sobretudo fala, diálogo, respiração do ser no mundo, emanando de sua funda individualidade.
É pois sobre uma exímia tangência à literalidade que se desenrola a sua linha poética, linha de rumo de uma coerência inquebrantável e elemento básico de uma eficácia poética verdadeiramente incomum. Da terra nasce a obra deste poeta maior e é ao rés-da-terra que a palavra poética caminha, essencialista e imanentista, sem nunca se levantar em qualquer tipo de estridência dramática e muito menos melodramática. Mas não nos deixemos iludir pela acalmia de superfície, ela é possuidora de uma energia expressiva e comunicativa como poucas e é sem tergiversar que testemunha e denuncia os variados desconcertos do mundo, sobretudo o desconcerto de mentalidades que se abatem sobre uma terra e de uma gente esquecidas ou menosprezadas, situadas para cá do Marão, onde gostariam de mandar os que cá estão.
O livro que hoje aqui nos traz, como se vê no título, é Douro: Pizzicato E Chula: o Douro é, como sabem os leitores de A. M. Pires Cabral, um tema obsessivamente, mas nunca repetitivamente, abordado pelo autor: “tenho o rio na boca” , diz ele em Têmporas da Cinza. E este é também mais um livro sobre o seu rio, extraordinário a vários níveis: unidade de tema e de tom, vivacidade do estilo, reflexão metapoética, crítica irónica, cáustica, corrosiva até, de uma certa maneira de encarar a poesia: artificial, postiça, de pose ou de salão, neste caso de bojo ou de porão. Douro: Pizzicato E Chula é uma unidade poética subordinada ao tema da Viagem, uma verdadeira viagem no espaço, no tempo, no pensamento, no Ser. Viagem metapoética, ainda: poesia e poetas constituem-se em longas paragens obrigatórias. Uma viagem total, pois, não à volta do seu quarto, mas uma viagem na sua terra. E também ele poderia dizer: “e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica” ; neste caso uma soberba crónica e também reportagem poéticas.
“A Fábula do comboio e do barco” não é mais do que uma representação global do livro por metonímia e sinédoque. Não é mister a fábula exigir como condição indispensável ter na narrativa animais como personagens, mas sim configurar uma narrativa alegórica cujo desenlace reflicta uma lição moral em que seja nítida a vitória do bem sobre o mal, em suas diversas faces ou metamorfoses: a fraqueza sensível sobre a força bruta, a bondade sobre o calculismo e o interesse, a humildade sobre a presunção. Aqui, podemos concluir que a lição desta fábula é a vitória da ancestral sabedoria da natureza perante a jactância dos poetas pretensiosos e ignorantes dos segredos do rio, da poesia das coisas perante a poesia das metáforas. Ao contrário da corrida entre o comboio e o barco, aqui, na verdade, não se registou “um empate técnico” , antes uma vitória do Douro por KO.
O percurso desenrola-se portanto sob o signo do olhar e da poesia, e se o rio é uno e imutável, já a ideia de poesia, de viagem e de beleza variam conforme o ponto de vista dos viajantes, suas intenções profundas, suas formas de estar no mundo e na vida, isto é no Rio, que tudo isso simboliza ou, melhor, alegoriza. Uma estética natural constituída pelo rio, pelas montanhas, pelo céu, pelos vinhedos, pelas aves, pelos peixes, coexiste, em simultaneidade dialéctica, com uma estética e uma poética humanas. Mas se aquela une o humano e o natural, esta, pela artificialidade das palavras calculadas, das metáforas, das imagens, estabelece a separação, a fenda entre as coisas e a linguagem que as nomeia. Neste caso, este grupo de “poetas abrasados nos mais canoros zelos” não se contenta em olhar, ver, nomear; dentro deles “têm uma oculta segunda intenção: / fazer a derradeira tentativa / de também se decifrarem a si mesmos, / e não apenas o que o cerne do rio / retém por nomear. // Sagazes poetas, que assim alimentam / dois coelhos de uma cenoura só” . Estes poetas ficam-se pela simples retórica da visão e da composição, postergam a linguagem fenoménica da transparência e da essencialidade, não a essência de raiz platónica residente algures na ideia e na pura contemplação, mas a visão pura de quem vê as coisas no seu natural habitat e conquista a beleza pura da simplicidade e da naturalidade. A referencialidade é pois o ponto de partida da poesia de A. M. Pires Cabral: também, sob esse prisma, poeta de excepção na nossa poesia, a tomarmos por boa a afirmação de Jorge de Sena, retomada por Joaquim Manuel Magalhães, de que haveria uma impossibilidade mental na poesia portuguesa de se escrever no arco da referencialidade.
Mas retomemos a nossa viagem dupla, por este rio acima, – ainda que esta tenha por destino Barca de Alva e não Santarém também ela abunda em digressões, como vêem, – na poesia de uns é o rio que corre, na poesia de outros é o artificioso curso das palavras que faz do rio pretexto para o outro texto, que por grávido de metáforas atroadoras é bem possível que afugente as aves “ou, pelo menos, as deixe / desfavoravelmente impressionadas” .
Deve dizer-se, em abono da verdade, que o poeta não se põe de parte dos seus compagnons de route, assume na pele, cúmplice e solidariamente, a condição precária da humana vaidade que aponta aos poetas-viajantes: “piscamo-nos os olhos, / achamos que somos os maiores” . Mas o Poeta vai mais longe, sente dentro de si um percurso inverso da viagem real: estranho, ontológico, desempenhando a imprescindível função de estranhamento própria da verdadeira poesia: “Sigo no barco que sobe o rio. Porém / não sinto que subo o rio: / sinto, em vez disso, / que o rio me sobe a mim” . A diferença entre a poesia do rendilhado, do arabesco e a poesia autêntica é que esta segrega o real nas suas entranhas, e as palavras são, à maneira do Crátilo, de Platão, coisas, seres vivos, ou que com estes se fundem e confundem. E essa poesia, como o Douro sentido e não só percorrido, “escalda como / uma febre nas dunas. Repercute / nas têmporas, magoa / as vísceras da alma” . Desta forma, ninguém sai incólume à leitura de um poema de A. M. Pires Cabral, porque ele não se funda no fogo-de-artifício retórico, mas no fogo magmático de cariz ontológico dos seres e das coisas. Não nos deixemos pois confundir pela ironia poética dirigida aos poetas abrasados e canoros, os mesmos que no “Prefácio” de Têmporas da Cinza eram classificados como “os piores de todos nós”, porque “perfuram o tímpano” . O Poeta não renega em momento algum a sua condição de poeta, seria aliás renegar-se no píncaro da superior missão porque veio ao mundo, ele renega simplesmente o artificialismo e o convencionalismo poéticos. Desde logo, A. M. Pires Cabral é um poeta no sentido atribuído pelo grande romantismo alemão ao poeta e à poesia, ou seja, categoria estética que percorre e é inseparável do homem no mundo e na linguagem. Aliás, ao observar os múltiplos planos segundo os quais se desenvolve a obra de A. M. Pires Cabral, ocorre-me outra observação de Jorge de Sena, referindo-se à sua própria obra, também ela diversa e plural, como é sabido: “sempre achei que a poesia é a minha principal criação, mesmo quando estou fazendo coisas inteiramente diferentes de poesia. Penso que o sentimento poético está sempre por detrás de tudo o que escrevo” . Sendo, por conseguinte, Pires Cabral um poeta ainda quando escreve em prosa, é enquanto poeta tout court que o seu talento atinge dimensões incomuns e renega, por conseguinte, com certa regularidade, a poesia e os poetas com aquela ironia com que o nosso Garrett renegava o Romantismo, precisamente na sua obra romântica maior, As Viagens na Minha Terra: “Romântico, Deus me livre de o ser” , o mesmo é dizer, “os poetas, repito / são os piores de todos nós” .
Pensamos que na velha disputa entre a origem da beleza superior, se a residente no mundo natural, segundo Kant, ou na obra de arte humana, segundo Baudelaire, A: M. Pires Cabral parece inclinar-se, neste e noutros livros, pelo filósofo alemão. Todavia, não sejamos ingénuos, estamos perante um altíssimo produtor de beleza artificial: apesar da naturalidade da sua escrita, ela não é mais do que o effet du réel, uma procura do modelo exemplar na natureza. Ele sabe que apesar da essencial beleza do seu rio e da sua montanha, elas perderiam bastante sem o sujeito sensível e contemplativo, estésico e estético, espectador e transfigurador, que toma essa matéria primeira para a destilar em matéria verbal indelevelmente inscrita na obra de arte de linguagem, ou seja, no poema. Esta questão entre o Real e as palavras que o cantam, sua pertinência ou utilidade, é pelo poeta insistentemente colocada; e este livro não foge a essa regra. Observe-se o poema “Palavras”: “Que queres, Douro, de mim? / Não posso senão palavras, / […] opor palavras contrafeitas / aos ruídos que salteiam este sítio / tão alegremente / […] Com tanto rumor nativo, / com tanto rumor sadio / - para que diabo, Douro, quererás / as intrusas / palavras inquinadas do poeta?” .
Continuemos então a seguir o périplo líquido e escrito, este mundo natural está entranhado até ao âmago pelo mundo humano: construído, destruído, reconstruído, de novo devassado. O Poeta comove-se, revolta-se, compadece-se: o presente cruza-se com o passado, que o mesmo é dizer, a vida sempre intrínseca e dialecticamente perpassada de morte, como se verifica em “Solar em Ruínas”, cujos destroços, mais que destroços materiais de uma construção, são metafóricas ossadas dos seus antigos habitantes e o testemunho de que a pompa não suspende, antes torna mais ostensiva, a acção da morte. Trata-se de uma meditação de carácter elegíaco que não deixa de denunciar a intemporal exploração do homem pelo homem: “Além, sobre o lado esquerdo, / um solar destroçado pelo tempo, / derruído quase até aos alicerces. // Nasceu do chão do suor como um pomposo / cogumelo, e dele prosperou. / Teve lustres acesos nos salões, / porcelana da China nos armários, / garanhões na estrebaria e no quarto das criadas, / tectos de castanho com lavores, / obra de artesãos remunerados a malgas de caldo. // E, por cima de tudo isto, /uma capela muito compenetrada / do seu papel de pára – raios. // Ei-lo porém decaído do fausto, devassado de animais daninhos / que nele nidificam e defecam. // Lastimável como um cão extraviado / do aconchego dos donos. // Resta um pano da fachada, onde / entre as heras que comem do granito / a pedra-de-armas ainda sobrevive / […]” . E nesta linha melancólica e elegíaca em que o sujeito viaja e se viaja, toma o itinerário em sua mais estreme alegoria.
O rio é, em todas as circunstâncias, uma lição de vida e de poesia, “ou não fosse o rio um espelho / antes de rio” . O seu funcionamento perfeito, a sua rigorosa selecção entre o essencial e o acessório, tornam-no num mestre, diríamos, o supremo Mestre e, nessa medida, “De Scientia” apresenta-se como uma soberba arte poética: “Comparativamente, / o rio sabe muito poucas coisas. // Não sabe, por exemplo, que este peixe /que agora mesmo lhe arrufou a tona / é um Barbus Bocagei. // Porém sabe que tem de ir e vai. /Sabe a rapidez com que deve ir / a cada momento. Sabe o caminho. / E sobretudo sabe o sítio / que o dedo do grande destinador / lhe apontou para recolher ao mar. // E eu? // Atento a todas as vozes, / entregue à libertinagem / de tanta sabedoria - / eu, amigos, que sei eu / de mares no fim da viagem?” .
É privilégio nosso, a Nordeste, bem no centro de múltiplos paraísos naturais, como este(s) Douro(s), termos entre nós, um homem, um intelectual, um escritor, um poeta com a dimensão de A. M. Pires Cabral que, como poucos, tem o segredo horaciano do “malho e da bigorna ” para erigir a escultura poética. E sejamos gratos a quem dá muito e pede pouco, quase nada. Felizmente, a sua reconhecida contenção não o inibiu de pedir à vida um mínimo, para os seus leitores, essencial: “Não pedi demasiado à vida / nem a esta viagem: / uma guitarra apenas, uma voz” .
1 - A. M. Pires Cabral, Douro: Pizzicato E Chula, Lisboa, Edições Cotovia, 2004, p. 47.
2 - Idem., p. 45.
3 - A. M. Pires Cabral, Têmporas da Cinza, Lisboa, Edições Cotovia, 2006, p. 62
4 - Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, Porto, Porto Editora, 1985, p. 15.
5 - Douro: Pizzicato E Chula, ob. cit., p. 27.
6 - Idem., p. 28.
7 - Idem, p. 13.
8 - Idem.
9 - Idem, p. 14.
10 - Idem, p. 53.
11 - Idem, p. 17.
12 - Idem, p. 63.
13 - Têmporas da Cinza, ob. cit., p. 11.
14 - Jorge de Sena, cit. por Luís Adriano Carlos in Fenomenologia do Discurso Poético
– Ensaio Sobre Jorge De Sena, Porto, Campo das Letras, 1999, p. 14.
15 - Almeida Garrett, ob. cit., p. 55.
16 - Pires Cabral, Têmporas da Cinza, ob. cit., p. 69.
17 - Douro: Pizzicato e Chula, ob. cit., p. 24.
18 - Idem, p. 19
19 - Idem, p. 30.
20 - Idem, p. 35
21 - Idem, p. 46.
22 - Idem, p. 57.
Sem comentários:
Enviar um comentário