Fevereiro de 2010. Deixo Torre de Moncorvo numa manhã de orvalho, pela eco-pista na antiga linha do Sabor. As árvores parecem enredo de um thriller, braços e hastes esticadas no manto branco de uma névoa geladiça. A linha fechou em 1988 e os carris desapareceram há muito mas os antigos apeadeiros ainda lá estão e aparecem-me quando menos espero, no meio do nevoeiro. QUINTA D'ÁGUA leio numa casa branca. Ao lado, a placa agora inútil reza PARE ESCUTE E OLHE.
A caminho de Carviçais, o vento sacode as nuvens por cima da Serra do Reboredo e do maior jazigo de ferro da Europa. Não neva, não chove, uma abóbada cinzenta mantém o mundo suspenso no frio. Chego ao asfalto perto de Felgar. Uma placa onde se lê ATENÇÃO AOS COMBOIOS foi mantida e pintada junto à estrada.
Passo junto ao comboio de casas baixas em banda do bairro da Ferrominas onde nasceu o primeiro núcleo do Museu do Ferro e chego a Carviçais à chuva - uma danada chuva fria de ensopar os ossos - a perguntar pelo «Artur» e pela sua posta mirandesa. A maldita terra nunca mais acaba. Uma recta interminável para quem caminha ao frio. Abrigo-me um bocadinho junto à antiga estação de caminho de ferro e contínuo.
No dia seguinte, num ermo a uns dois, três quilómetros de Estevais, encontro dois velhos aldeões no campo com um cavalo a puxar uma pequena carroça de metal. Por segundos, pergunto-me como reagirão quando erguer a máquina fotográfica naquela manhã de frigorífico longe de tudo. Peço para fotografar. A senhora, de lenço na cabeça, pega na forquilha e posa com ela na mão, um sorriso delicioso nos lábios. Uns segundos depois, segura a rédea do cavalo. Os últimos rurais no campo e com orgulho.
Atravesso uma paisagem de lameiros e choupos e ribeiras muito límpidas. Saúdo um pastor solitário perdido numa das mais perdidas e esquecidas paisagens portuguesas. Um cavalo parece abrigar-se da chuva debaixo de um grande carvalho na Quinta das Quebradas. Já vou perto de Castelo Branco quando um arco-íris pinta o céu por cima da Serra de Mogadouro.
O vento gelado corre de um lado ao outro da principal avenida de Mogadouro. A antiga vila dos Távoras cresceu nas últimas décadas em prédios e moradias no meio do campo. «Aqui em Mogadouro grande parte da povoação cresceu devido aos emigrantes. Dessa avenida para baixo, por exemplo. Agora, há muitos que procuram vender e regressar à Suíça ou à França porque aqui não há emprego. A agricultura morreu e indústrias?», comenta um habitante .
Reforçando o sentimento da abandono, as notícias sobre a região dão conta de burlões intrujando os últimos velhos habitantes, de leigos a substituir nas missas padres que já não chegam para as encomendas, de acessibilidades prometidas que não chegam e de bebés a nascer em ambulâncias.
No Domingo, subo à torre do castelo e ao que resta das muralhas, assisto à missa dominical na igreja Matriz ali ao lado e dou por mim a observar a reunião dos que restam, dos que ainda resistem. As naves da igreja encheram mas muitos vieram de carro e em táxis das aldeias da zona. Mogadouro voltará a esvaziar como um fole mal a missa termine.
Vou encontrando lameiros muito verdes à medida que me aproximo de Lagoa. Na aldeia, apesar de ser sábado, o frio empurrou as pessoas que não foram à missa para dentro de casa ou dentro dos cafés. Entro num onde sou recebido como um extraterrestre pelo dono. Parece que cometi o erro de pedir uma informação a uma mulher. Um velho a aquecer-se junto a uma salamandra observa-me com um olhar hostil. Quando ela sai, vira-se para a minha mesa: «O café é meu, ouviu, é meu. Ela é só minha empregada».
No exterior, as pessoas, na maioria idosas, vão deixando a igreja e desaparecendo no ar gelado. Sento-me no exterior a perguntar a Deus que mal fiz eu. Um casal saúda-me: «Não
in:cafeportugal.net
(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».
Uma bela viagem onde também entramos pela qualidade da narrativa. Descritiva , com as palavras jogadasor mãos de mestre, dános uma visão dos lugares e gente das Terras do Sul do Distrito.
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