Em pequeno nunca percebi bem as férias de uma ou outra pessoa que apareciam na minha aldeia a veranear. Uma ou outra lisboeta mais mimosa, ou de outro canto, em Agosto muniam-se de uma sombrinha ou sombreiro, diferentes das que tinham as aldeãs, quando decidiam ir à Bila pela hora da canícula. O exotismo chegava ao ponto de se passearem com umas peles de gato-bravo ou raposa a penderem do pescoço. Depois, de tempos a tempos, falamos da década de cinquenta do século passado, chegavam «os Franceses», para a pequena e humilde casa do António Luís (alcunha o Cuco).
Quase toda a aldeia parava para os cumprimentos. O cortejo começava na travessia das Barcas de Chelas, parava na Casinha da Barca e seguia pela Canelha da Barca acima, parando no terreiro junto à minha casa paterna.
Algumas mulheres esqueciam-se dos cozinhados nas panelas ao lume e esturricavam. Outros, com o cinto do estômago apertadíssimo e assobiar ar e «bento», chamavam pelas mulheres para comer o que a terra dava.
Reparem no pequeno diálogo de um casal simples da aldeia:
- Oh! Mulher! vem lançar os mirros!
- espera que agora estou a ver os «fanfeses»!
- deixa lá os «fanfeses» vem mas é botar os mirros!
Mas, o filho do António Luis, «O Francês» (Francisco), era muito afável e conversador, chegava com a Amparo, a espanhola cara-metade, as filhas, «Ingeles» e «Genobeba» e os maridos franceses (Henri) e (Joachin), aquele de mais de 1,90 m e ambos altos para o «pobo» do burgo. Por isso, dizia-se: - miúdos estadulhos! O António «Cuco» e a Tia Elisa Mateus, ajudados pela filha, M.ª Emília, tinham trabalhos redobrados, para bem receber o Francisco e a prole.
Das inovações que me lembro era os «franceses» andarem de camisola interior branca de alça e as «francesas» de blusas cavadas ou sem mangas. Uma revolução na estática moda rural! Até os poucos relógios da aldeia andavam pela hora velha ou hora solar e os dos franceses p’la hora nova. Até no tempo os «fanfeses» estavam à frente.
Como não havia estrada para a minha aldeia, deixavam o carro, numa casota preta de madeira que o feitor das Pinto Azevedo lhes deixava guardar na Maravilha. O rafeiro do António «Cuco» e do «Pirze» (genro), nessas férias, chegava a ser tratado a açúcar branco, ao ponto de muitos, na aldeia, invejarem a boa vida do cão. Um fidalgo! Nós quase só comíamos açúcar marelo ou escuro e ele a amassar uns «terrões» ou cubinhos de açúcar!
Os franceses, ao contrário dos demais, eram sempre afáveis, respeitadores e conversadores e passavam o tempo no ócio. Uma vez por festa, chegavam a fazer umas canecas de vinho doce (adoçado com laranjada ou gasosa) e distribuíam pelos vizinhos e pelos presentes, junto à taberna da «Questina» ou à do Serafim do Xico Maria Mateus. Quando juntavam os ex-Franceses que emigraram, no pós-1.ª Grande Guerra, e voltaram, gerava-se um diálogo galicisado, em que entrava o Francisco Moleiro, o «Flintro» e o Maximino da Zefa e outros. Cada qual procurava melhor nota no seu francês engrolado. Mas o que falava melhor era o Francisco Moleiro. Era um cavalheiro. Os franceses também iam até ao rio Rabaçal banhar-se, porque as suas águas não sofriam o efeito da mineração do rio Tuela, por altura de Ervedosa.
Mas, para mim, férias era o tempo de aulas e quando saía da escola primária tinha sempre trabalho a fazer. Ir com alguma ovelha parida fartá-la para uma borda ou na ferrã. Ir segar a ferrã, fazer o nabal, esbandeirar o milho ou segar uma carga de cevada verde para a cria. Durante as aulas, nem tempo tinha de olhar para a lousa dos deveres ou para a lição do livro ou trecho de história. Quando tinha problemas ou redacção para casa, estava sempre à espera da noite para que os meus irmãos me ensinassem o que não sabia e a pouca vontade minha, estimulada pelas reguadas da tortura, esbarrava na indiferença dos meus irmãos, pingando, muitas vezes, a lágrima.
As tardes de Verão era certo e sabido que me esperava, o levar os «beis» para o lameiro do Fojo, da Chouza, de Vale das Mós, ou dos Campassóis (termo dos Eixes) e para as regatas do rio Rabaçal. O regresso tinha que ser sempre ao lusco-fusco, quando os demais raparigos escachouçavam pelo Terreiro do Tanque (Eiras), jogando ao rou-rou, ao arranca-cevada, ao esconde-esconde, aos reis-pretos. O apetite da brincadeira era maior quando via que andava no grupo alguma rapariga. Pareciam-me todas bonitas. Quando aconteciam brincadeiras conjuntas, era certo e sabido que me chegava mais a elas, aproveitando, quando podia, para me rebolar, agarrar e sentir o calor do proibido. Quando chegavam grandes carros de feno, para meter em espaços exíguos, era sempre voluntário, para o calcar e rebolar-me com alguma cachopa galhofeira. Na aldeia não se namorava em pequeno ou espigadote, apenas se «gostava» mais dumas do que de outras. Era tudo muito são, comparado com o que hoje é trivial.
Depois, deixei a aldeia e rumei ao Colégio Marista dos Pousos (Leiria), regressando nas curtas férias de Verão transformado e com os horizontes de vida mais abertos. Passei a ser um aluno e gaiato exemplar, apenas sobressaindo a rebeldia com alguma contrariedade ou injustiça. Passei a ser o menino Jorginho da «Guitéria». Ainda hoje sou o «Jorginho» para algumas pessoas da aldeia.
No mês de férias, que voavam mais rápido que um fim-de-semana festivo, passei a ter um comportamento de gente crescida, mas o levar os bois e depois as «bacas» a pastar tocava-me todas as tardes e tinha como atracção montar uma égua bonita, mansa e muito veloz. Mas quando não havia pasto com os bois, havia rega nas cortinhas, com a nora a marcar o ritmo lento do «hiiii…tan-tan» e a burra a arrastar-se como uma zorra, que teima em não fazer mexer o baldão, a guia e os alcatruzes.
E lá ia mais uma cossa com uma vara de marmeleiro no lombo, ficando a andar de lado como os de Caravelas. Regados os talhos do «renobo», era tempo de regresso, pela hora do calor, com os moscardos a atacarem a besta e as moscas garejeiras a enfiarem-se-lhe pelas pregas da rabada e das narinas.
Nas deslocações de égua, era um cavalgar desabrido a galope, ao ponto de, às vezes, as velhinhas ficarem a implorar à Senhora do Amparo e aos santos para que não me matasse. E foram atendidas.
Jorge Lage
in:diario.netbila.net
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