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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Um dó li tá

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Amanheceu. O tempo serenou. Abrimos a janela e um pássaro canta na frescura da árvore vestida de ouro, em tempo outonal. Desligamos a Televisão… deixamos de entender o mundo. As certezas de ontem são as incertezas de hoje. Não há passado porque se perdeu no desrespeito pela tradição... e se ignorou a dignidade humana instituída. Não há presente porque se afoga nos calabouços do medo e do tempo incerto. Não há futuro porque não se pode planear…prever…a lógica da incerteza fragiliza os mais frágeis que vivem o presente sem horizontes de amanhã, sem a frescura renovadora da esperança.
Hoje, ainda tomamos o pequeno-almoço pela manhã no recato da nossa casa… Quantos dias poderemos tomar o pequeno-almoço pela manha? Não sabemos… vivemos no sobressalto… no medo do saque consentido… na eminência da pobreza planeada. Tudo legal. Quem duvida da legalidade do Despacho, da Portaria, do Decreto-Lei, da Lei que todos os dias…pela calada da noite nos delapida o património…nos saqueia as magras reformas…nos retira serviços de proximidade… nos comprometem a saúde…nos fragilizam as escolas.
Gostava de saber de um sítio onde não houvesse Estado… onde as Leis assentassem na honradez dos vizinhos…regressar ao Comunitarismo… cultivar a horta…criar o porco e as galinhas… viver em paz com os vizinhos na esperança que não me saqueassem o renovo, nem me assaltassem a capoeira.
Mas não vale a pena sonhar…os velhos comunitarismos são uma miragem… o reino maravilhoso do Torga… morre paulatinamente… grande é o deserto!
O Povo continua a votar no seu Partido… a comprar o tractor maior do que o do vizinho… a assistir resignadamente à morte dos idosos… as crianças deixaram de jogar ao pião e ao giroflé… giroflá na cerca da escola… E um dia breve... talvez a última criança, do tal reino maravilhoso que morre duma forma ignóbil, legal e consentida às mãos do Poder de Lisboa dirá sozinha a última lenga-lenga, na imensidão dos destroços dos casebres abandonados:

Um dó li tá
Cara de amendoá
Um segredo
Colorido
Quem está livre, livre está. 
Em cima do piano está um copo de veneno, 
quem bebeu morreu, 
o azar foi mesmo teu!

...não acreditem... hoje acordei mais cinzento... não acreditem... temos que agarrar a esperança... nem que seja a ultima esperança!
Nos dias mais cinzentos é quando se ouve, duma forma mais vibrante e clamorosa o Hino sagrado da Maria da Fonte:

"É avante Portugueses 
É avante sem temer 
Pela santa Liberdade 
Triunfar ou perecer"


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

Ana Rodrigues Gonçalves estreia-se com mais de 30 poemas no livro ‘Triste fado’

 ‘Triste fado - Um caminho para a estrada do nada’ é o primeiro livro de poesia editado por Ana Rodrigues Gonçalves, uma jovem médica de Bragança, que se estreia com um conjunto de 33 poemas que têm como fio condutor a fragmentação do eu, a fugacidade do tempo e a descrença no futuro.


Glória Lopes

Traição

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...") 

Na penumbra da sala, reinava pesadamente o silêncio, apenas interrompido a espaços pelo crepitar do fogo na lareira. Lá fora o vento rugia, naquela temível manhã de janeiro, disparando gotas de chuva contra a vidraça.

Ele estava afundado no sofá individual ao pé da lareira, com os pés esticados sobre um pequeno banco e o olhar vidrado, perdido sobre o telemóvel que repousava na mesa de apoio. Estava já nos últimos anos dos quarenta, bastante magro e com olheiras profundas no rosto pálido. Os fios de prata no cabelo ondulavam à luz bruxuleante da chama. A sua mão esquerda brincava com o que parecia um pequeno cartão de visita.

Estremeceu com o súbito toque do telemóvel. Aquela melodia, escutada tantas vezes, trouxe-lhe memórias de ocasiões felizes... e outras nem tanto.

No ecrã do equipamento o rosto sorridente de um homem entre os trinta e os quarenta, de cabelos desgrenhados claros. O nome “Ricardo” piscava ao ritmo da música.

Após uns segundos de hesitação, ele soergueu-se, clicou para atender e encostou o telemóvel ao rosto. Do outro lado, uma voz grave e enérgica interpelou:

— Olá bom dia dorminhoca. Tudo bem?

— Bom dia... — A resposta foi rouca e arrastada. Do outro lado fez-se um silêncio, fruto da surpresa. — Desculpa, sei que esperavas a Sandra.

— Pois…, sim. Ela está? — A voz mudara de decidida para cautelosa.

— Não, ela não está. De facto, estava mesmo aqui a pensar se te deveria ou não ligar.

— Ligar-me?!? — Um tom de incredulidade. — Mas nós conhecemo-nos?

— Na verdade não e já agora, chamo-me Fernando e sou o marido da Sandra.

— Ricardo. — A resposta tardou um pouco. — Mas continuo sem perceber...

— Bem sei. — Um sorriso cansado perpassou nos seus lábios, algo divertido. — Queria ter uma pequena conversa contigo, não te importas que te trate por tu, pois não?

— Como disse, não nos conhecemos, mas não, não me importo.

— É verdade, não nos conhecemos, mas temos uma coisa muito importante em comum... a minha mulher Sandra.

A afirmação soou como um tiro e provocou um longo momento de silêncio nervoso

— Como? Não estou a perceber. — Era uma patética tentativa de ganhar tempo. — Que quer dizer com isso? A Sandra sabe que está a falar comigo? Que é que ela lhe disse?

— Não adianta negar. — O sorriso alargou-se. — Eu sei de tudo: os encontros nos motéis, os jantares, os passeios nos jardins... até mesmo a conferência há dois meses em Londres... — Não se ouvia o respirar do outro lado da linha. — … de todas as formas, não te posso censurar. Ela é uma mulher muito bela e inteligentíssima, uma combinação irresistível.

— Mas... quando soubeste? — Rendeu-se, percebendo que não adiantava negar.

— Oh, já sei há muito tempo. Quase que posso dizer desde o início.

— Não posso crer... e não disseste nem fizeste nada? — Ricardo tentou passar ao ataque. — Há quanto tempo achas que aconteceu?

— Deverá fazer dois anos em Março. Estou certo?

O silêncio do interlocutor era o assumir da culpa.

— Inicialmente não me apercebi de nada, claro. Pelo menos, nada que me fizesse suspeitar disto. — Fernando continuou. — De repente, a relação morna de um casal da nossa idade com muitos anos de casamento, tornou-se muito mais ativa sexualmente. Como já não era há muitos anos. — Limpou uma lágrima que correu no rosto. — Ela procurava-me mais frequentemente e não se negava tantas vezes aos meus “avanços”.

A chuva parara, entretanto e o latido de um cão ouviu-se longe, trazido pelo vento que amainava.

— Eu estava feliz, ela estava feliz, como poderia suspeitar? Nem reparava nas frequentes trocas de SMS, no falar mais baixo ao telemóvel em algumas circunstâncias... estava cego. — O suspiro que se seguiu saiu mais audível do que pretendera. — Até que um dia, ela chegara a casa mais tarde que eu. Estava a tirar as coisas da carteira e vi que trazia amarrotado um pano negro... onde consegui divisar pequenas rendas. Mesmo depois da sua atrapalhação em esconder, fiquei sem qualquer dúvida que trazia na carteira as calcinhas que vestira naquela manhã... Porque traria ela as calcinhas amarrotadas na carteira? Porque as tiraria?

— Há milhares de outros motivos para além de... — Ricardo tentou defendê-la.

— Pois há. Por isso não poderia ficar com a dúvida. Ela disfarçou e escondeu... e eu fingi não ter reparado.

— Ela deve ter pensado que não viste... — Pareciam dois amigos a conversar.

— Mas vi. E, louco de dor e confusão, andei atento a todos os seus movimentos, atitudes e horários... que cada vez aprofundavam mais as minhas suspeitas. Até que um dia, à hora do almoço, fui para a rua em frente à escola onde ela trabalhava e esperei. Não tardou que a visse... que vos visse juntos.

— Sim, encontrávamo-nos ao almoço muitas vezes.

— Para saber a extensão “do problema”, contratei uma pessoa para a seguir durante uma semana e dar-me um relatório; com isso fiquei a saber mais do que queria: o relatório era extenso o suficiente para incluir fotos, horários, os motéis e restaurantes que frequentavam e a altura aproximada em que começaram a ser vistos juntos. Um bom trabalho em suma.

— Nunca nos apercebemos de nada...

— Como eu disse, um bom trabalho. Mas o que me deixava louco era a sua naturalidade, a facilidade e o prazer com que fazíamos amor, a sua vontade e carinho. Parecia que continuava apaixonada por mim...

— E continuava. Ela disse-mo várias vezes. Sempre que lhe pedia para te deixar e vir viver comigo. Nunca o quis, dizia que te amava demais para poder viver sem ti e que o que existia entre nós era uma paixão que ela esperava que passasse um dia.

Foi a vez de Fernando ficar em silêncio por uns minutos. Ambos os homens calados a escutar a respiração do outro através do éter.

— Por fim acabei por me conformar. — Fernando retomou a narrativa. — Aceitei que ela seria discreta o suficiente para não me envergonhar e aceitei que deveria apreciar cada minuto da sua atenção, cada beijo e cada carícia, como dádivas que poderia perder a qualquer momento.

— Foi precisa muita coragem para uma decisão dessas.

— Não, não foi. Muita covardia isso sim, medo de ficar sem ela, sem a mulher que amo. Medo que se fosse e não tornasse mais. A vida sem ela seria insuportável. Mas nos últimos tempos é assim que tem sido mesmo com ela, insuportável.

— Daí esta chamada. — Ricardo sentenciou. — Concluíste que não consegues viver assim e vens pedir-me que me afaste.

— Serias capaz?

— Se isso for o melhor para ela... sim. — Suspirou audivelmente. — Também vou sofrer imenso. Deixei a minha mulher há uns meses, achando que facilitaria a decisão da Sandra, mas ainda não lhe disse que o tinha feito.

— Temes pressioná-la?

— Sim, ela é adorável, mas sob pressão é imprevisível. — Sentiu-se o sorriso na voz.

— Consigo perceber que também a amas, não se trata apenas de um caso.

— Não, não é. Desde o início, desde o primeiro riso, as primeiras palavras, fiquei completamente preso a ela. Julgava que depois de uma certa idade já não era possível uma paixão com tal intensidade.

— E aqui estamos nós os dois... apaixonados pela mesma mulher.

— Não tenho coragem de continuar a fazer-te o mal que temos andado a fazer. Até aqui achava que não sabias...

— Que era um corno feliz...?

— Não, nunca pensamos, pensei, em ti nesses termos. Eras apenas o outro que a impedia de vir para mim de vez.

— Agora não interessa mais, não vale a pena estarmos a discutir sobre isto.

— Que se passa? Zangaram-se? — Ricardo não conseguiu disfarçar a esperança.

As lágrimas corriam agora livremente pelo rosto de Fernando.

— Não, caro amigo, a Sandra teve um acidente de automóvel na noite passada, quando regressava de tua casa. Faleceu de madrugada no hospital... O funeral é às 9h de amanhã e o corpo encontra-se na capela do hospital. Se quiseres podes aparecer... todas as pessoas que a amavam são bem-vindas.

* Revisão de um conto de 2014 publicado no livro Terras de Xisto e Outras Histórias

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

NÃO HÁ NADA DE NOVO

Por: Humberto Pinho da Silva 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

O Eclesiastes, afirmou: “Não há nada de novo debaixo do Sol” – Ec1,9
Tudo se repete: a moda é disso exemplo. A própria História, confirma: tudo roda, como alcatruzes de nora.
O homem do século XXI, convenceu-se que não havia mal capaz de o atingir.
A ciência, encontrava-se de tal forma adiantada, que rapidamente se conseguia debelar qualquer calamidade. Puro engano…
Bastou um chinês, comprar no mercado um morcego vivo, e confecionar, com ele, iguaria – versão oficial, – para espalhar a peste, por todo o mundo.
Os mais competentes investigadores, os médicos mais experientes, os cientistas mais reputados, não foram capazes de dissipar o malefício do vírus, que nem vida tem, e se destrói com simples água e sabão! …
Na antiguidade houve, também, terríveis pestes, que vitimaram milhões de homens.
Uma, foi a que chegou a Lisboa, em 1568, vindo de Veneza. Rapidamente se alastrou, de tal modo, que muitos fugiram apavorados, para a província.
Conta Frei Luís de Sousa, que andava o bom Arcebispo de Braga a percorrer terras de Ponte do Lima, quando soube, que mulher se refugiara ali, vindo da cidade; mas já levava o mal.
Era cristã e queria confessar-se, mas não havia sacerdote, que a quisesse ouvir…
Soube o Arcebispo, pediu aos capelães, que iam na comitiva para a ouvir, mas estes recearam. Então, disse Frei Bartolomeu dos Mártires:
- Sou seu pastor, não há quem vá e eu sou obrigado a ir. Não posso deixar de ir, nem deixarei de ir. - “Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, Vol. II, Edição Sá da Costa – 1946.
No século transato, a humanidade foi desbastada pela pneumónica, que ceifou meu avô, poucos anos depois de ter casado.
O conhecidíssimo historiador, Fidelino Figueiredo, in: “ A Luta Pela Expressão” – 1º Cap., Lisboa 1960, assevera: “ No mundo moderno há nações a percorrer velhos caminhos abandonados há muito: despotismos ilustrados, ao século XVIII; intolerâncias religiosas, antissemitismos, demagogia negra, unificações espirituais à século XVI; economia estatista e corporações de mesteirais à século XII; invasões, crimes à solta, barbarização, à século V. “
Tudo isso, porque nada de novo há debaixo do Sol; e porque o homem ainda não compreendeu a doutrina de Cristo. O seu coração, continua endurecido…
A ciência avança…mas o homem é sempre o mesmo…
“O que foi, isso é o que há-de ser; e o que fez, isso se tornará a fazer: de novo que nada há novo debaixo do Sol” – Qohelet

Humberto Pinho da Silva
nasceu em Vila Nova de Gaia, Portugal, a 13 de Novembro de 1944. Frequentou o liceu Alexandre Herculano e o ICP (actual, Instituto Superior de Contabilidade e Administração). Em 1964 publicou, no semanário diocesano de Bragança, o primeiro conto, apadrinhado pelo Prof. Doutor Videira Pires. Tem colaboração espalhada pela imprensa portuguesa, brasileira, alemã, argentina, canadiana e USA. Foi redactor do jornal: “NG”. e é o coordenador do Blogue luso-brasileiro "PAZ".

“Em média cada município do interior perde um habitante por dia”

Foto: Rafael Neto
O professor universitário, Paulo Reis Mourão, publicou mais um livro, intitulado “A Economia do Esquecimento”, onde aborda o interior norte, que tem sido esquecido pelos sucessivos governos, com custos para todo o país. Deixa ainda pistas para seguirmos outro rumo, que nos ajude a sair do esquecimento, muitas vezes associado ao preconceito.

A Economia do Esquecimento: rasgando o Estreito de Magalhães”. Que livro é este? 

É um livro que reúne algumas ideias que tenho vindo a desenvolver ao longo dos anos, algumas delas publicadas no jornal A Voz de Trás-os-Montes, focando o desequilíbrio das regiões em Portugal. Foca ainda o esquecimento a que votamos os espaços, mas também muitas vezes as pessoas. É um livro em que o título é reflexivo daquilo que contém. 

O livro faz uma ligação com a primeira viagem de circum-navegação de Fernão Magalhães, em que passam 500 anos dessa grande epopeia. Por que motivo fez esta ligação com a atualidade?

A figura de Fernão Magalhães, que nós, transmontanos, dizemos tão nossa, procurou, devido às vicissitudes da época, esquecer as suas origens portuguesas. Foi procurar alternativas para patrocinar os seus projetos para alcançar a Índia, que conseguiu através de Espanha. Ele tentou esquecer a sua origem portuguesa, mas  a própria tradição portuguesa tentou apresentá-lo como alguém que não era um português de gema. No entanto, hoje percebemos que ele era tão português como os outros, em que tentou dar algo de concreto ao seu sonho, um pouco como fazem os emigrantes portugueses. Apesar de não lhe ter dado as condições que ele pretendia para concretizar o seu sonho, Portugal, na altura, acolheu diversas nacionalidades e patrocinou muitos projetos de capitães e almirantes de outros países. Portanto, quer Portugal, quer Fernão de Magalhães são exemplos do que é a economia do esquecimento. O mesmo se passa com realidades que estão próximas, nomeadamente o nosso interior, onde há escassez de investimento, mas também esquecimento de ruas e cidadãos das nossas cidades, que nós preferimos esquecer. Nós podemos esquecer muitas coisas involuntariamente, mas há realidades que esquecemos porque as consideramos como não prioritárias.   

O livro foca as assimetrias que continuam a existir entre o litoral e o interior. É um tema muito atual, mas não acha que já foi tudo dito e escrito e falta passar à ação? 

Essa ideia ajuda a que nos esqueçamos do interior. Para quem quer concentrar os investimentos no litoral, é muito mais interessante dizer que já tudo se fez pelo interior, mas isso não é verdade. Muitas vezes, também interessa fazer do interior um lugar de passagem, que é facilmente esquecido. Acontece isso também com o turismo de um dia ou dois, em que não nos interessa só os turistas, interessa que o turista vire investidor. Locais só de turismo são sempre locais temporários, que nós visitamos, tiramos umas fotos, ficamos com uns postais, mas depois vamos embora e não regressamos.

Há esse problema, em que queremos colar que tudo já foi dito, já fizemos tudo por aquele espaço, quando efetivamente está associado a uma agenda que pretende canalizar os fundos para determinados locais, que pretende concentrar os meios de comunicação social em determinados espaços, esquecendo os outros, onde há necessidade de saúde pública. Por exemplo, este ano de pandemia, o interior de Portugal tem uma taxa de mortalidade derivada da Covid-19 que é o dobro da taxa nacional. Será que é por escassez de recursos ou de resposta às necessidades do interior? Ou será que há um esquecimento das pessoas do interior? De qualquer forma está a acontecer  e as mortes são o dobro da taxa nacional.  

Se não tivesse nascido no interior, acha que conseguiria escrever este livro?

Aquilo que fazemos é um acumulado não só da genética, mas também da experiência. Se tivesse nascido noutro espaço, em outra família não teria escrito este livro como foi escrito. Tanto mais que também falo das razões para nós esquecermos é o nosso preconceito. Nós gostamos de esquecer rapidamente aquelas decisões preconceituosas que fizemos. E muitas vezes temos preconceito do interior. Quando falo com colegas de outras paragens ou com os meus alunos e lhe digo que o interior não é aquele espaço empobrecido, é um local onde há oportunidades de desenvolvimento, eles ficam surpreendidos, porque têm um preconceito associado a um determinado espaço aprioristicamente de derrota, prejuízo, perda, escassez de desenvolvimento e esse tipo de imagem ajuda a que o esqueçamos. Porque nós gostamos de nos lembrar de algo que nos cativou, mas não gostamos de algo que é sujo, empobrecido e, por vezes, o preconceito ajuda a não visitar aquele local sobre o qual não temos uma boa imagem.  

No livro prova que as regiões esquecidas não esquecem o país. Afirma que por cada euro concedido como empréstimo da região, a mesma deposita dois euros, sobrando um euro para auxiliar no financiamento das restantes regiões. Como pode ser invertido?

O interior não consegue ser independente por si só. Esse é um indicador de retenção bancária que nos mostra que a região poupa metade do dinheiro que recebe, a outra metade vai gastando. Essa metade que poupa vai ser canalizada para outras regiões mais dinâmicas e mais desenvolvidas, através do sistema bancário, que faz empréstimos. Isso poderia ser revertido se tivéssemos um empreendedorismo regional que nos levasse a pedir empréstimos aos bancos para investir forte na região.  

Dentro do interior, há concelhos mais esquecidos do que outros. Há também que olhar para esta realidade de forma mais atenta?

É um problema muito preocupante, porque em média cada município perde um habitante por dia. Um município com 50 mil habitantes está mais dias para perder a totalidade da população. Já um município com quatro ou cinco mil habitantes terá menos dias para ficar extinto. Daqui a 40 anos ou a 50 anos, não seremos 10 milhões, mas talvez oito milhões de pessoas, devido à redução da taxa de natalidade. No entanto, aquilo que se observa é que o interior está a perder população a um ritmo mais elevado do que outros espaços. Há efetivamente uma desigualdade dentro do interior, mas mesmo os espaços que aparentemente não perdem tanta população neste momento, e considerando as previsões, em 2021 receio bem que não haja um único município que tenha ganho população, entre 2011 e 2021. Poderá haver algumas freguesias que possam ter ganho alguma população, agora municípios no interior norte não me parece. Há ainda a agravante de que aqueles que perderam menos, não ficaram mais fortes, o que obriga as elites locais e organizações políticas a ter uma abordagem diferente daquilo que têm, que é a perda de capitalidades. Já todos nós percebemos que não temos um sentimento de capitalidade nos espaços principais do nosso interior como tínhamos há 30 ou 40 anos. Aquele sentimento de uma certa capitalidade, em que as pessoas têm as suas necessidades satisfeitas, atualmente, em 2020, não existe essa capitalidade tão reforçada no interior como já houve. E isso tem implicações não só no ciclo de investimento atual e futuro, mas também na reorganização administrativa. 

Portanto, defende a regionalização?

Sim, se for bem feita. E tem o condão de não ter sido experimentada. Sou um defensor da regionalização, que não seja centrada no Porto, mas sim uma regionalização que dê capitalidade às regiões. 

Existe um preconceito latente nos políticos, que dizem como é que vou colocar alguém em determinado Ministério que é conotado com uma determinada região, quando essa região só me fornece um ou dois por cento dos votos? Ou como e se vou colocar um determinado investimento nessa região? É notória a desigualdade que existe entre a quantidade de governantes a leste da Estrada Nacional 2. Quando olhamos para o vizinho do lado, Madrid é uma capital do interior, assim como outras cidades espanholas que ficam no interior, que rivalizam com as nossas maiores cidades. 

Porque acha que isso acontece em Portugal? 

Por três fatores, um deles o preconceito. Somos muito preconceituosos e temos o condão de não ser tão preconceituosos para quem vem de fora. Aliás, a própria região é um exemplo belíssimo de acolhimento do estrangeiro, desde judeus no séc. XVI até aos galegos no séc. XIX, com muitos a virem para o Douro, devido à crise. Nos finais do séc. XVIII, o Douro foi considerada a principal região agrícola do mundo, onde a produtividade era mais alta, era uma espécie de ‘silicon valley’, que atraiu trabalhadores de outros países, que contribuíram para construir os famosos socalcos.  

Outro fator é o padrão da educação, na medida em que olhamos para os manuais de português, quando comparamos com os nossos manuais em que havia histórias, fábulas, localizadas em ambiente rural, agora não existem. Por exemplo, o Plano Nacional de Leitura há parcas oportunidades para contactar com descrições que se passem a leste da EN2 para quem vive em Lisboa ou Porto. E nós não podemos amar aquilo que desconhecemos.

O terceiro fator está nas decisões tomadas pelos sucessivos governos, com a concentração das indústrias em determinados espaços, ou a reafectação de fundos comunitários, que acabam por ser repetitivos em favor dos mesmos. Há ainda um certo ciclo vicioso em alocar investimentos em determinados espaços do litoral, com outros indicadores, outro volume de negócios, em detrimento do interior. Tudo isto concorre para o esquecimento do interior. 

Quais são os caminhos apontados para o futuro próspero do interior?

O reforço dos meios de comunicação social. Quando há uma comunicação social justa, equitativa, distribuída pelo território, que fala tanto do que acontece num determinado espaço, como acontece noutro. E isso passará por uma vontade política. Quando um espaço fica esquecido, traz prejuízos não só para este espaço, mas para todo o conjunto, como acontece com os fogos florestais, que se vai traduzir em custos para todo o país e não só para as regiões que ficam esquecidas.  

E como se combate o preconceito? Com base na presença. Não temos tempo para conhecer o outro e, por isso, acredito naquilo que me dizem do outro. Portanto, temos de contrariar o preconceito, termos políticas, apoiadas por políticos que lutem pela região, que tratem todas as regiões por igual e que sejam honestos nas métricas e indicadores na alocação de investimento, porque muitas vezes não o são. 

Outro fator é a educação, em que temos de ter uma política educativa que valorize todo o espaço por igual. 

Nas conclusões fala de prémios (Alvão, Marão, Corgo, Larouco, Douro, Pinhão). Que prémios são estes?

Convido todos a refletir sobre esses prémios. É uma forma de dar reconhecimento por aqueles que ficam, lutam e que contribuem para que a região não fique tão esquecida como outros querem que ela fique. Falo de prémios para a imprensa regional, empreendedores, que não devem ser esquecidos, e isso começa em nós, em que, por vezes, damos o reconhecimento aos heróis nacionais e esquecemos os locais. 

Se este esquecimento não é benéfico para o país, por que motivo continua a existir?

Esse é um problema típico. Os custos não são percebidos. Alguém que rouba, pensa que vai correr bem, mas quando é apanhado, ele vê que não compensou. Enquanto ninguém nos mostrar que a pedra do esquecimento está a causar mais custos que benefícios, vamos continuar a esquecer-nos. 

2021 está aí e tudo indica que não será um ano fácil, devido aos efeitos da pandemia. Como economista, o que prevê para o novo ano?

Esperamos que 2021 possa mostrar algum reajuste da economia. A recuperação económica não deverá ocorrer tão depressa como gostaríamos, porque ainda não está bem definida a ultrapassagem das vagas da pandemia, em que não dá para perceber o que vai acontecer. Tudo vai depender da capacidade dos próprios agentes voltarem a sentir confiança para pôr a economia a andar. Parece-me que vai mais ser uma recuperação em U, no sentido de que caímos e depois vamos demorar cerca de dois ou três anos a recuperar o ritmo de crescimento que tínhamos em 2019. 

Há quem fale em W, em que vai haver quebras abruptas e depois recuperações relativamente rápidas em vagas sucessivas. 

Acho que 2021 deverá ser um ano em que devemos esperar confiança com responsabilidade. Na nossa região, temos de ser exigentes, é um ano que nos vai trazer exigências, desafios, ciclos eleitorais, é um ano em que a região vai ter de cobrar dos seus políticos para serem melhores.

Por: Márcia Fernandes

Dois jovens identificados pela GNR por furtarem estabelecimento no concelho de Mirandela

 Dois jovens, de 18 anos, foram identificados, ontem, por furto de um estabelecimento na localidade de Passos, no concelho de Mirandela.
O proprietário alertou a GNR que estaria a ser furtado e as autoridades deslocaram-se ao local, identificaram os autores do crime e recuperaram os produtos furtados. Ao todo, mais 30 maços de tabaco, quase 130 euros em dinheiro e um telemóvel. 

Os dois suspeitos já eram referenciados pela prática de furtos de veículo no distrito de Bragança. Foram constituídos arguidos e os factos foram remetidos ao Tribunal Judicial de Mirandela.

Escrito por Brigantia

Julgamento da morte de Giovani Rodrigues começa a 10 de Fevereiro

 Já há data prevista para o julgamento do caso de Giovani Rodrigues.
Dia 10 de Fevereiro, mais de um ano depois da morte do jovem cabo-verdiano, começa o julgamento dos sete homens que estão acusados de homicídio qualificado na forma tentada. Os suspeitos têm idades entre os 24 e os 31 anos. 

O jovem, aluno do IPB, terá sido espancado, a 21 de Dezembro, em Bragança, quando saía de um bar. Foi levado para o Hospital de Santo António, no Porto, onde acabou por falecer 10 dias depois.

Escrito por Brigantia

Associação de Defesa Animal do Nordeste distribuiu alimento a 50 animais de famílias carenciadas

 A Associação de Defesa Animal do Nordeste, sediada em Mirandela, distribuiu 20 cabazes de alimento para animais, doado nos hipermercados.
Segundo o presidente da instituição, Tito Resende, conseguiram apoiar cerca de 20 gatos e 30 cães de famílias mais carenciadas do concelho de Mirandela.

“Quando falamos em apoio estamos a fazer de ração para cão ou para gato e comida húmida. Desta vez como era época natalícia, decidimos fazer uma campanha maior”, disse.

A Associação foi criada há cerca de dois anos e tem vindo a prestar apoio a outras instituições, nomeadamente ao canil intermunicipal da Terra Quente, na esterilização de gatos.

Tito Resende adiantou ainda que grande parte do orçamento da ADAN é utilizado para apoiar famílias nas despesas do veterinário.

“Quase todo o nosso orçamento é gasto em clínicas, com animais de pessoas que não têm situação económica que permita que gastem, por exemplo 50 euros no tratamento de um animal”.

A Associação de Defesa Animal do Nordeste foi criada há dois anos. Presta apoio a animais de famílias carenciadas e a instituições.

Escrito por Brigantia
Jornalista: Ângela Pais

Livro “Máscaras Rituais de Portugal – Mascaradas Vinhaenses” retrata festas de inverno de Vinhais

 A essência das festas de inverno com mascarados, no concelho de Vinhais, está agora retratada no livro “Máscaras Rituais de Portugal – Mascaradas Vinhaenses”.
A publicação resulta de uma itinerância permanente, desde 2017, da colecção particular de máscaras de Roberto Afonso.

O livro dá a conhecer a Festa da Cabra e do Canhoto, em Cidões, as Festas de Santo Estêvão, em Ousilhão, Rebordelo, Travanca e Vale das Fontes, o Entrudo, em Lagarelhos, Vila Boa e Vinhais, o Dia da Morte, em Edrosa, e o Dia dos Diabos, em Vinhais.

“Esta é a primeira edição que reúne todas as festas do concelho de vinhais. Há ali uma descrição que eu fiz da minha participação e de assistir também a estas festas na qual retrato os passos todos da festa e as pessoas que leiam este livro vão ficar a conhecer exactamente as festas que acontecem em Vinhais entre o dia 31 de Outubro e a Quarta-feira de Cinzas”, explicou Roberto Afonso, coleccionador e presidente da assembleia geral da Academia Ibérica da Máscara.

A publicação é também uma forma de homenagear os artesãos, sendo que, nos últimos tempos, houve cada vez mais a dedicarem-se à construção de máscaras.

A exposição, que deu origem ao livro, dá a conhecer festas de outros concelhos e está patente no Centro Cultural Solar dos Condes de Vinhais até ao final do dia de hoje.

O livro foi editado pelo município de Vinhais e foi apresentado publicamente na terça-feira.

Escrito por Brigantia
Jornalista: Carina Alves

Alexandre Herculano: "O Castelo de Faria" - (LENDA DE 1373)

A breve distância da vila de Barcelos, nas faldas do Franqueira, alveja ao longe  um convento de Franciscanos. Aprazível é o sítio, sombreado de velhas  árvores. Sentem-se ali o murmurar das águas e a bafagem suave do vento,  harmonia da natureza, que quebra o silêncio daquela solidão, a qual, para nos  servirmos de uma expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a saudade dos  seus horizontes parece encaminhar e chamar o espírito à contemplação das  coisas celestes.

O monte que se alevanta ao pé do humilde convento é formoso, mas áspero e  severo, como quase todos os montes do Minho. Da sua coroa descobre-se ao  longe o mar, semelhante a mancha azul entornada na face da terra. O  espectador colocado no cimo daquela eminência volta-se para um e outro  lado, e as povoações e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os pinhais  apresentam-lhe o panorama variadíssimo que se descobre de qualquer ponto  elevado da província de Entre-Douro-e-Minho.

Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado de sangue: já  sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de  habitações incendiadas, sibilar de setas e estrondo de máquinas de guerra.  Claros sinais de que ali viveram homens: porque é com estas balizas que eles  costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra.  

O castelo de Faria, com as suas torres e ameias, com a sua barbacã e fosso,  com os seus postigos e alçapões ferrados, campeou aí como dominador dos  vales vizinhos. Castelo real da Idade Média, a sua origem some-se nas trevas  dos tempos que já lá vão há muito: mas a febre lenta que costuma devorar os  gigantes de mármore e de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e o  antigo alcácer das eras dos reis de Leão desmoronou-se e caiu. Ainda no  século dezessete parte da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas: no  século seguinte já nenhuns vestígios dele restavam, segundo o testemunho de  um historiador nosso. Um eremitério, fundado pelo célebre Egas Moniz, era o  único eco do passado que aí restava. Na ermida servia de altar uma pedra  trazida  de Ceuta pelo primeiro Duque de Bragança, D. Afonso. Era esta lájea  a mesa em que costumava comer Salat-ibn-Salat, último senhor de Ceuta. D.  Afonso, que seguira seu pai D. João I na conquista daquela cidade, trouxe esta  pedra entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a consigo para a vila de  Barcelos, cujo conde era. De mesa de banquetes mouriscos converteu-se essa  pedra em ara do cristianismo. Se ainda existe, quem sabe qual será o seu  futuro destino?

Serviram os fragmentos do castelo de Faria para se construir o convento  edificado ao sopé do monte. Assim se converteram em dormitórios as salas de  armas, as ameias das torres em bordas de sepulturas, os umbrais das  balhesteiras e postigos em janelas claustrais. O ruído dos combates calou no  alto do monte, e nas faldas dele alevantaram-se a harmonia dos salmos e o  sussurro das orações.

Este antigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos maiores, porém,  curavam mais de praticar façanhas do que de conservar os monumentos delas.  Deixaram, por isso, sem remorsos, sumir nas paredes de um claustro pedras  que foram testemunhas de um dos mais heroicos feitos de corações  portugueses.

Reinava entre nós D. Fernando. Este príncipe, que tanto degenerava dos seus  antepassados em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz com os   castelhanos, depois de uma guerra infeliz, intentada sem justificados motivos,  e em que se esgotaram inteiramente os tesouros do Estado. A condição  principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que D. Fernando  casasse com a filha d’el-rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu  de novo; porque D. Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe  importar o contrato de que dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu  por mulher, com afronta da princesa castelhana. Resolveu-se o pai a tomar  vingança da injúria, ao que o aconselhavam ainda outros motivos. Entrou em  Portugal com um exército e, recusando D. Fernando aceitar-lhe batalha, veio  sobre Lisboa e cercou-a. Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos  deste sítio, volveremos o fio do discurso para o que sucedeu no Minho.  

O Adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela província de  Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de gente de pé e de cavalo,  enquanto a maior parte do pequeno exército português trabalhava inutilmente  ou por defender ou por descercar Lisboa. Prendendo, matando e saqueando,  veio o Adiantado até as imediações de Barcelos, sem achar quem lhe atalhasse  o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique Manuel, conde de  Ceia e tio d’el-rei D. Fernando, com a gente que pôde juntar. Foi terrível o  conflito; mas, por fim, foram desbaratados os portugueses, caindo alguns nas  mãos dos adversários.

Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno  Gonçalves. Saíra este com alguns soldados para socorrer o conde de Ceia,  vindo, assim, a ser companheiro na comum desgraça. Cativo, o valoroso  alcaide pensava em como salvaria o castelo d’el-rei seu senhor das mãos dos  inimigos. Governava-o na sua ausência, um seu filho, e era de crer que, vendo  o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais  quando os meios de defensão escasseavam. Estas considerações sugeriram um  ardil a Nuno Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse conduzir ao pé  dos muros do castelo, porque ele, com as suas exortações, faria com que o  filho o entregasse, sem derramamento de sangue.

Um troço de besteiros e de homens d'armas subiu a encosta do monte da  Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O  Adiantado de Galiza seguia atrás com o grosso da hoste, e a costaneira ou ala   direita, capitaneada por João Rodrigues de Viedma, estendia-se, rodeando os  muros pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse do castelo de  Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.

De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povoação de Faria: mas  silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas enxergaram ao longe as  bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas ao vento, e viram o refulgir  cintilante das armas inimigas, abandonando os seus lares, foram acolher-se no  terreiro que se estendia entre os muros negros do castelo e a cerca exterior ou  barbacã.

Nas torres, os atalaias vigiavam atentamente a campanha, e os almocadens  corriam com a rolda(*) pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos  colocados nos ângulos das muralhas.

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[(*) Roldas e sobrerroldas eram os soldados e oficiais encarregados de rondarem os postos e atalaias.] ------

O terreiro onde se tinham acolhido os habitantes da povoação estava coberto  de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos, das  mulheres e das crianças, que ali se julgavam seguros da violência de inimigos  desapiedados.

Quando o troço dos homens d'armas que levavam preso Nuno Gonçalves  vinha já a pouca distância da barbacã, os besteiros que coroavam as ameias  encurvaram as bestas, e os homens dos engenhos prepararam-se para arrojar  sobre os contrários as suas quadrelas e virotões, enquanto o clamor e o choro  se alevantavam no terreiro, onde o povo inerme estava apinhado.

Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a  barbacã, todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas  converteu-se num silêncio profundo.

— "Moço alcaide, moço alcaide! — bradou o arauto — teu pai, cativo do  muito nobre Pedro Rodriguez Sarmento, Adiantado de Galiza pelo muito  excelente e temido D. Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu  castelo."

Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro e,  chegando à barbacã, disse ao arauto — "A Virgem proteja meu pai: dizei-lhe  que eu o espero."

O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e  depois de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao pé  dela, o velho guerreiro saiu dentre os seus guardadores, e falou com o filho:

"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo, que, segundo o regimento  de guerra, entreguei à tua guarda quando vim em socorro e ajuda do esforçado  conde de Ceia?"

— "É — respondeu Gonçalo Nunes — do nosso rei e senhor D.  Fernando de Portugal, a quem por ele fizeste preito e menagem." — "Sabes  tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por  nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das  ruínas dele?"

— "Sei, oh meu pai! — prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não  ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. — Mas não vês que  a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a  resistência?"

Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou  então: — "Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria!  Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora  em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu  cadáver."

— "Morra! — gritou o almocadem castelhano — morra o que nos  atraiçoou." — E Nuno Gonçalves caiu no chão atravessado de muitas espadas  e lanças.

— "Defende-te, alcaide!" — foram as últimas palavras que ele murmurou.

Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã, clamando vingança.  Uma nuvem de frechas partiu do alto dos muros; grande porção dos   assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue com o sangue do  homem leal ao seu juramento.

Os castelhanos acometeram o castelo; no primeiro dia de combate o terreiro  da barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos  reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez Sarmento tinha sacudido  com a ponta da sua longa chuça um colmeiro incendiado para dentro da cerca;  o vento suão soprava nesse dia com violência, e em breve os habitantes da  povoação, que tinham buscado o amparo do castelo, pereceram juntamente  com as suas frágeis moradas.

Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição do seu pai: lembrava-se de que  o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos os momentos  o último grito do bom Nuno Gonçalves — "Defende-te, alcaide!"

O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do  castelo de Faria. O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército  castelhano foi constrangido a levantar o cerco.

Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu brioso  procedimento e pelas façanhas que obrara na defensão da fortaleza cuja  guarda lhe fora encomendada pelo seu pai no último trance da vida. Mas a  lembrança do horrível sucesso estava sempre presente no espírito do moço  alcaide. Pedindo a el-rei o desonerasse do cargo que tão bem desempenhara, foi depor ao pé dos altares a cervilheira e o saio de cavaleiro, para se cobrir   com as vestes pacíficas do sacerdócio. Ministro do santuário, era com lágrimas  e preces que ele podia pagar ao seu pai o ter coberto de perpétua glória o  nome dos alcaides de Faria.

Mas esta glória, não há hoje ai uma única pedra que a ateste. As relações dos  historiadores foram mais duradouras que o mármore.

Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)  

ONDA LIVRE TV - Abonda D'i Um Cibinho de Lamas

PARA TODOS OS AMIGOS, COLABORADORES E SEGUIDORES DO BLOG!

BRINCANDO COM PAPAI

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS
São Paulo (Brasil)
(colaborador do Memórias...e outras coisas)

Fim do ano de 2020.  Ano da Pandemia do Covid-19. Talvez eu tenha ficado muito abalado coma notícia do falecimento de dois escritores transmontanos que eram colaboradores, assim como eu, do blog “Memórias e Outras Coisas”; não sei bem!

O fato é que hoje me lembrei de meu pai. E, lembrando dele, constato que muita coisa eu deveria ter dito a ele em vida; e não o disse! Até hoje acredito que Deus deveria ter deixado que ele convivesse mais com a família. Somos nove irmãos; éramos, melhor dito! Nesse dezembro de 2020, apenas seis ainda vivem. E eu já vivi dezoito anos mais que meu pai. Se eu pudesse falar com ele, diria hoje:
 
- Se um dia papai voltasse, eu tentaria viver com ele tudo aquilo que sempre quis e nunca aconteceu. Ah, se eu pudesse voltar o tempo! Papai iria brincar comigo, garanto! Ele não chegaria cansado, nem estressado, nem nervoso, nem dopado, nem triste. A luta, para seus filhos terem alguma coisa no futuro, não o deixou viver o presente, até seu dia derradeiro!.
 
Hoje ele é passado. Papai morreu quando eu tinha dezoito anos de idade; ele tinha à época, pouco mais de cinquenta. Ele nunca participou de minha adolescência e; menos ainda por Deus o ter levado tão cedo, da minha chegada à idade adulta.
 
Ah, se papai me abraçasse, ao menos uma única vez; eu diria a ele que o amava. Quem sabe assim ele e eu perdêssemos nossa timidez?
 
Se papai me abraçasse, eu lhe daria um presente fantástico: uma máquina do tempo!
 Ai então, eu ligaria meu «transformador de gente» e o faria ser menino de novo. Eu próprio entraria na máquina e nós dois, meninos; finalmente brincaríamos como só as crianças sabem brincar.
 
Cansados das reinações, eu o olharia embevecido, enquanto nova transformação ocorreria; eu e ele, aos poucos íamos ficando velhos! Fecharíamos nossos olhos, e nos elevaríamos acima dos telhados das casas, das ruas, das luzes, das cidades, do país e do mundo. Quem sabe, finalmente, eu veria a Europa, que tanta vontade tenho de conhecer e não pude; nem poderei.
 
Se um dia papai voltasse, e eu pudesse conviver com ele tudo aquilo que quis e que nunca aconteceu, eu o acompanharia até a presença do Pai Eterno.
 
Reclamaria Dele, da falta de tempo que papai teve, e do fato dele não me ver crescer. Ah, se eu pudesse voltar o tempo!
 
Se eu pudesse voltar o tempo, papai iria brincar comigo até o fim dos tempos. Eu, morto que estou, finalmente brincaria com papai.
 
Se um dia, você leitor, ouvir cantigas de roda, ruídos de quermesses, catiras batidas na mão e nos pés, ouvir sabiás cantando numa praça da cidade grande, ou ver um caipira lavrando a terra, saudado pela natureza; saiba leitor, serão eu e meu pai, nos divertindo na eternidade; visto que na vida pouco nos divertimos.
 
Vocês ainda nos virão nos sorrisos ocultos dos personagens das estátuas que contam a história da terra bandeirante, em cada praça onde quer elas estejam.
 
Vocês nos ouvirão nos gorjeios dos canários da terra, dos coleirinhas, dos curiós, dos pintassilgos, no farfalhar das folhas dos jequitibás, nas flores dos ipês que os tornam sagrados, nas algazarras das crianças, nos curumins e cunhãs do Mato Grosso, que apreciaram um texto desse velho escrevinhador que, se não deixou filhos, foi abençoado por Deus com o dom de ver e ouvir estrelas, apreciar a natureza e entendê-la e a amar sua querida Dirce, despudoradamente.
 
Foi uma pena, meu pai, que não houvéssemos brincado mais com a vida, de não ter ouvido mais música caipira, de ter sorrido mais, como os duendes, curupiras e sacis que me acordaram hoje, só para que eu pudesse escrever este texto que, provavelmente, será o último deste ano tão difícil.
 
- Até breve, meu pai! Não se perca de mim; não me desapareça. Se puder, mande-me uma foto pelo whatsapp, como aquelas crianças que mostrei na ilustração acima! Ah, meu pai, se puder; proteja-me e à minha esposa!

Antônio Carlos Affonso dos Santos
– ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de quatro outros publicados em antologias junto a outros escritores.
 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Restaurante Cura

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


O Restaurante Machado (O Cura) assim constava de um reclame que estava por cima da porta de entrada e afastado da parede suficientemente para poder ser visto e lido de ambos os lados da rua, era um estabelecimento de grande fama nos meus tempos de menino.
Tinha uma porta de entrada e um painel de vidro como uma montra cujo conteúdo era uma vista total sobre o salão do Restaurante e a janela de passagem da comida e louça da cozinha para o salão.
Nos meus anos de Escola, O Cura era de longe o Restaurante mais afreguesado da Cidade e tinha fama de ser lugar de boa comida e onde o acolhimento era sempre condimentado com votos de boas vindas. Eu não me recordo do Cura sem a Amelinha, no entanto sei que ela nem sempre foi a cabeça pensante do serviço de aprovisionamento, cozinha e sala. Recordo o Snr Machado como um homem corpulento, aliás como todos os seus irmãos, mas de uma bonomia contagiante.
Era no Cura que almoçavam as pessoas mais "finas” da Cidade, assim como a maioria dos viajantes que nesse tempo chegavam a Bragança às dezenas.
Eu particularmente tinha um fascínio por tudo o que conseguia ver da rua e era muito, da azáfama que ocorria quando as refeições estavam a decorrer e a Amelinha servia de “garçonete” e com o seu porte dava um encanto muito particular à sala. O cozinheiro era o Snr Teixeira, marido da Snra Adosinda, viviam no Bairro S. João de Deus e tinham filhos da minha idade.
As especialidades do Cura estavam num cardápio na porta do restaurante e dele constavam pratos saborosíssimos que o Snr Teixeira confecionava sob a supervisão do Snr Machado ou da Amelinha.
Sendo eu miúdo e da Caleja, a minha mente era nesse tempo mais dada a ficar maravilhada com determinados pormenores de etiqueta do que propriamente dos pratos suculentos e rescendentes. Encantava-me ver sentado na mesa perto da "montra" com o prato diante de si o treinador do Desportivo, Pagola, espanhol ou argentino que tinha sempre um babeiro ao pescoço para evitar sujar a camisa que usava sempre alva como a neve. Era um quadro para mim estranho porque me remetia para o babeiro dos bebés, coisa que na cultura caleijense era algo de diminutivo perante os meus pares e ao mesmo tempo uma novidade como uso diário do guardanapo sinal de bom gosto e higiene que só os estrangeiros usavam.
Era o Cura quem no salão que mais tarde fez na parte da casa que dava para a Rua Nova, mais banquetes para casamentos e batizados servia e a vida no Restaurante era um laborar constante onde o dia começava ao raiar da Aurora e terminava aos pregos da noite com o Snr Machado já sem força e a Amelinha que estava na força da vida ainda capaz de continuar pois parecia ter energia que jamais se esgotaria.
Recordo que o grupo que há alguns dias mencionei como fiéis do Chico Machado era ali que reunia e faziam as suas refeições de camaradagem que duravam um dia inteiro sentados à mesa com os melhores acepipes do mundo, onde se incluíam, bom salpicão e chouriça, cabrito assado de Montesinho, vitela mamona, perú estufado, leitão assado e outras maravilhas gastronómicas que só no Cura eram confeccionadas em quantidade e com qualidade que reconhecida por eles era um indicador para os outros.
Recordo-me que a minha mãe quando se arreliava com a garotada desabafava dizendo: -Não morrerdes todos que já estou farta de vós, se isso fosse ia ao Cura pedir uma chocolateira das grandes e fazia-a de café que me havia de consolar. Isto revela o conceito que as pessoas faziam da dimensão do Cura que era como um mito que se inventou para afagar o ego dos que gostavam da boa comida e iam lá para comerem do bom e do melhor.
A casa tinha assim dois gerentes distintos que se complementavam, o Snr Machado, O Cura e a Amelinha que tudo fazia e tudo controlava.
Pessoalmente fui algumas vezes ao Cura como convidado de casamentos ou batizados e umas pouquíssimas ao Restaurante como acompanhante de amigos ou conhecidos. Ia no entanto assiduamente levar Bolos de Noiva ou outras doçarias que nos encomendavam para os referidos banquetes.
Mas tudo na vida acaba e um dia soube da morte do Snr Machado e quando a equipa se fragmenta quase sempre a roda desanda. Prosseguiu a labuta a Amelinha, enfrentando já uma concorrência que crescia a olhos vistos, em 1958 abriu o Poças, em 1959 o Flórida e assim sucessivamente foram abrindo mais, Transmontano, Cruzeiro etc… e também a força da Amelinha dava já sinal de fraqueza.
Ainda perdurou uns anos e a própria Amelinha tentou uma segunda relação com o PVT Gama de Vinhais numa tentativa de apoio moral e de auxílio na compra de abastecimentos. Mas algo aconteceu e infelizmente aquele que foi o mais emblemático Restaurante da Cidade fechou portas e já nem sombra desse passado é visível.
A 16 de Janeiro de 1990 foi o meu pai sepultado e logo de madrugada os noticiários davam conta que tinha começado a 1ª Guerra do Golfo, (Bush Pai). O funeral do meu pai realizou-se às 03:00 da tarde. Havendo passado a noite a velá-lo na Igreja da Sé  e toda a manhã, aceitei o convite do meu compadre Sérgio para almoçar com ele no Cura. Ele comia lá diariamente. À mesa estavam esperando por nós o Snr Gama que era marido da Amelinha, o Senhor Major Tavares, Velho amigo da família, o meu compadre Sérgio e eu próprio. Sentados os quatro em amena cavaqueira surge a Amelinha com uma terrina fumegante de vapor, depositou-a na mesa e disse-me: -Para si que já não deve ter comido disto há muito tempo (eu vivia em Inglaterra) e disse mais: -Fiz esta massa, macarrão com bacalhau que deve estar uma delícia para afagar o estômago e consolar o espírito.
Era o cantar do cisne do mito O Cura, como o meu pai, acabou por essa altura a atividade do que foi o Restaurante brigantino mais famoso durante o século XX.
Despediu-se a Amelinha fazendo uma obra de arte culinária que me deliciou e ainda hoje pressinto no palato.
Nasceu o Restaurante Cura em um tempo, morreu o Restaurante Cura num outro na sequência da velha máxima de Lavoisier: -Nada nasce nem morre tudo se transforma.



Bragança, 22/12/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

Alexandre Herculano: "A Morte do Lidador" - (LENDA DO ANO DE 1170)

 — Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e vós dai-me o meu lorigão  de malha de ferro e a minha boa toledana. Senhores cavaleiros, hoje contam-se noventa e cinco anos que recebi o batismo, oitenta que visto armas, setenta  que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia fazendo entrada por terras da  frontaria dos mouros.

Isto dizia na sala de armas do castelo de Beja Gonçalo Mendes da Maia, a  quem, pelas muitas batalhas que pelejara e pelo seu valor indomável,  chamavam Lidador. Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz,  e feitas pazes com el-rei Leão, o nomeara carairo da cidade de Beja, de pouco  tempo conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas  Moniz, estavam com ele, e outro muitos cavaleiros afamados, entre os quais  D. Ligel de Flandres e Mem Moniz — que a festa dos vossos anos, Senhor  Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro que de capitão encanecido e  prudente. Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem a haverdes de  guardar, e não sei se arriscado é sair hoje à campanha, que dizem os escutas,  chegados ao romper d'alva, que o famoso Almoleimar correr por estes  arredores com dez vezes mais lanças do que todas as que estão encostadas nos  lanceiros desta sala de armas.

— Voto a Cristo — atalhou o Lidador — que não cria em que o senhor rei  me houvesse posto nesta torre de Beja para estar assentado à lareira da  chaminé, como velha dona, a espreitar de vez em quando por uma seteira se  cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã, para lhes cerrar as portas e  ladrar-lhes do cimo da torre da menagem, como usam os vilãos. Quem achar  que são duros de mais os arneses dos infiéis pode ficar-se aqui.

— Bem dito! Bem dito! — exclamarem, dando grandes risadas, os  cavaleiros mancebos.

— Por minha boa espada! — gritou Men Moniz, atirando o guante ferrado  às lájeas do pavimento — que mente pela gorja quem disser que eu ficarei  aqui, havendo dentro de dez léguas em redor lide com mouros. Senhor  Gonçalo Mendes, podeis montar no vosso ginete, e veremos qual das nossas  lanças bate primeiro em adarga mourisca.

— A cavalo! A cavalo! — gritou outra vez a chusma, com grande alarido.

Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros  descendo os degraus de mármore da torre de Beja e, passados alguns  instantes, soava só o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadiça das  fortificações exteriores que davam para a banda da campanha por onde  costumava aparecer a mourisma.

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Era um dia do mês de Julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em  grande silêncio dentro da cerca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiçadas  dos muros e torres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que  avizinhavam o teso sobre que a povoação está assentada, viam-se ondear as  searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores  cristãos. Regados por lágrimas de escravos tinham sido esses campos, quando  formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos  seriam outra vez humedecidos, quando, no mês de Julho, a paveia, cercada  pela fouce, pendesse sobre a mão do ceifeiro: choro de amargura havia aí,  como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje de  mouros vencidos. A cruz ateava-se outra vez sobre o crescente quebrado: os  coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do  almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida  por Deus.

Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos d'África e do Oriente, que  diziam, mostrando os alfanges: — "é nossa a terra de Espanha". — O dito  árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se. Pelaio  entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astúrias; a  última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros das suas bambardes,  nos panos das muralhas da formosa Granada: e esta escritura, estampada em  alcantis de montanhas, em campos de batalha, nos portais e torres dos  templos, nos bancos dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a  mão da Providência — "assim para todo o sempre!"

Nesta luta de vinte gerações andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo  mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam as serranias  do Algarve: de lá esperava ele salvação ou, ao menos, vingança; ao menos, um  dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga para pasto dos açores  bravios. A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas,  embora as aves de rapina tivessem, também, abundante ceva de cadáveres dos  seus irmãos! E este ameno dia de Julho devia ser um desses dias porque  suspirava o servo ismaelita.

Almoleimar descera com os seus cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas  mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos píncaros das serras  remotas, semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais acendem  as bruxas em noites dos seus folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas  bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger  das folhas secas, e o tinir a espaços de alfanje batendo em ferro de caneleira  ou de coxote. Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois  tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só,  aqui e ali, as searas calcadas davam rebate de que por aqueles sítios tinham  vagueados almogaures mouros, como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de  modorra, as habitações dos pastores além das encostas do Atlas.

No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho carairo de Beja, cumpria os  noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr o  campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha  fora pregada a mão num grosso sovereiro que sombreava uma fonte a pouco  mais de tiro de funda dos muros do castelo. Era que nesse dia deviam ir mais  longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos pajens o seu lorigão de malha  de ferro e a sua boa toledana.

Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea solta pelas campinas de Beja;  trinta, não mais, eram eles; mas orçavam por trezentos os homens d'armas,  escudeiros e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez  e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como  flocos de neve, sobre o peitoral da cota d'armas, e o terrível Lourenço Viegas,  a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro. Eram  formoso espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas, fora das suas fundas e  soltos ao vento, o cintilar das cervilheiras, as cores variegadas das cotas, e as  ondas de pó que se levantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se levanta  o bulcão de Deus, varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de  verão.

Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada em  demanda dos mouros; e no horizonte não se veem senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavaleiros  caminham. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao  longe sobre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos volteiam na frente da  linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos  matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais dos ribeiros;  aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas  se ouvem o trote compassado dos ginetes e o grito monótono da cigarra,  pousada nos raminhos da giesteira.

A terra que pisam é já dos mouros; é já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portugueses soubessem olhar para trás, indo em som de guerra, os  que para trás de si os volvessem a custo enxergariam Beja. Bastos pinhais  começavam já a cobrir mais crespo território, cujos outirinhos, aqui e ali, se  alteavam suaves, como seio de virgem em viço de mocidade. Pelas faces  tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor em bagas, e os ginetes  alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas d’Ouro que só defendiam. A  um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessário repousar, que o sol ia  no zénite e abrasava a terra; descavalgaram todos à sombra de um azinhal e,  sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma relva que crescia nas  bordas de um arroio vizinho.

Tinha passado meia hora: por mandado do velho carairo de Beja um  almogávar montou a cavalo e aproximou-se à rédea solta de uma selva extensa  que corria à mão direita: pouco, porém, correu; uma frecha despedida dos  bosques sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a frecha tinha-se  embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e ele, erguendo os braços ao ar,  com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o chão, e o ginete partiu  desenfreado através das veigas e desapareceu na selva. O almogávar dormia o  último sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros da frontaria de  Beja viram o seu transe do repousar eterno.

— A cavalo! A cavalo! — bradou a uma voz toda a lustrosa companhia do  Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos  ginetes, soou uníssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo; e  os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.

Grita medonha troou ao mesmo tempo, além do pinhal da direita. — "Alá!  Almoleimar!" — era o que dizia a grita.

Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros árabes saíram à rédea solta de trás  da escura selva que os encobria: o seu número excedia em cinco vezes o dos  soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza  das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por  grossas cotas de malha do mesmo metal: mas as lanças destes eram mais  robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas. A  rudeza e a força da raça gótico-romana ia, ainda mais uma vez, provar-se com  a destreza e com a perícia árabes.

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Como longa fita de muitas cores, recamada de fios d’Ouro e refletindo mil  acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía  na veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo. em frente deles, os  trinta cavaleiros portugueses, com trezentos homens d'armas, pajens e  escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltórios e lanças em riste, esperavam  o brado de acometer. Quem visse aquele punhado de cristãos, diante da cópia  d'infiéis que os esperavam, diria que, não com brios de cavaleiros, mas com  fervor de mártires, se ofereciam a desesperado transe. Porém, não pensava  assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a têmpera das  espadas e lanças portugueses e a rijeza dos braços que as meneavam. De um  contra dez devia ser o iminente combate; mas, se havia aí algum coração que  batesse descompassado, algumas faces descoradas, não era entre os  companheiros do Lidador, que tal coração batia ou que tais faces descoravam.

Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embrido  debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo se embebe a folha de papel  saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças iam  feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Alá soara num só grito por  toda a fileira mourisca.

Encontraram-se! Duas muralhas carairas, balouçadas por violento terramoto,  desabando, não fariam mais ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra,  do que este recontro de infiéis e cristãos. As lanças, topando em cheio nos  escudos, tiravam deles um som profundo, que se misturava com o estalar das  que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram  ao chão: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as  armas e traspassou o peito com o ferro da sua grossa lança. Deixando-a  depois cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador, que perto  dele estava:

— Senhor Gonçalo Mendes, ali tendes, no peito daquele perro, aberto a  seteira por onde eu, velha dona assentada à lareira, costumo vigiar a chegada  de inimigos, para lhes ladrar, como alcateia de vilãos, do cimo da torre de  menagem.

O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem Moniz proferia as últimas  palavras, ele topara em cheio com o terrível Almoleimar. As lanças dos dois  contendores tinham-se feito pedaços, e o alfanje do mouro cruzou-lhe com a  toledana do carairo de Beja.

Como duas torres de sete séculos, cujo cimento o tempo petrificou, os dois  capitães inimigos estavam um em frente do outro, firmes nos seus possantes  cavalos: as faces pálidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a  imobilidade que dá, nos grandes perigos, o hábito de os afrontar: mas no rosto  de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor colérico e impetuoso.  Cerrando os dentes com força, descarregou um golpe tremendo sobre o seu  adversário: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje se embebeu inteiro,  e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas a pancada  falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo  coxote do mouro, que já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação  dos dois cavaleiros inimigos.

— Brando é o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado é o metal do  meu arnês. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios deste  alfanje.

Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a cimitarra bateu no fundo do vale  penedo desconforme desprendido do píncaro da montanha.

O carairo vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes: a  espada ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse presa ao punho do cavaleiro  por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas, fugiu um bom  pedaço pela campanha, a todo o galope.

Mas o Lidador voltou a si: uma forte sofreada avisou o ginete de que o seu  senhor não morrera. À rédea solta, lá volta o carairo de Beja; escorre-lhe o  sangue, envolto em escuma, pelos cantos da boca: traz os olhos torvos de ira:  ai de Almoleimar!

Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes da Maia passou por entre os  cristãos e mouros: os dois contendores viram-se, e, como o leão e o tigre,  correram um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o golpe do Lidador  era simulado, e o ferro mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no  gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o dangue, saindo às  golfadas, cortou a última maldição do agareno.

Mas a espada deste também não errara o golpe: vibrada na ânsia, colhera pelo  ombro esquerdo o velho carairo e, rompendo a grossa malha do lorigão,  penetrara na carne até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre  sangue godo misturado com sangue árabe.

— Perro maldito! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cervilheira.

E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido; um dos seus homens de armas  voou a socorrê-lo; mas o último golpe d'Almoleimar fora o brado da sepultura  para o carairo de Beja: os ossos do ombro do bom velho estavam como  triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado  envoltas nas malhas descosidas do lorigão.

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Entretanto os mouros iam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes,  Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros daquela lustrosa companhia  tinham praticado maravilhosas façanhas. Mas, entre todos, tornava-se notável  o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos, coberto de pó, suor e  sangue, pelejava a pé; que o seu agigantado ginete caíra morto de muitos tiros  de frechas lançadas. De roda dele não se viam senão cadáveres e membros  destroncados, por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou  baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros árabes. Como um  promontório de escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel e  sobranceiro no meio do embate daquelas vagas de pelejadores que vinham  desfazer-se contra o terrível montante do filho de Egas Moniz.  

Quando o carairo caiu, o grosso dos mouros fugia já para além do pinhal; mas  os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu moribundo. O Lidador esse  tinha sido posto em cima de umas andas, feitas de troncos e franças de  árvores, e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que consigo  trouxera, o tinham transportado para a saga da cavalgada. O tinir dos golpes  era já muito frouxo e sumiam-se no som dos gemidos, pragas e lamentos que  soltavam os feridos derramados pela veiga ensanguentada. Se os mouros,  porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a vitória não saíra barata aos  portugueses. Viam perigosamente ferido o seu velho capitão, e tinham  perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte dos homens de armas,  escudeiros e pajens.

Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer uma nuvem de pó, que voava  rápida para o lugar da peleja. Mais perto, aquele turbilhão rareou vomitando  do seio basto esquadrão de árabes. Os mouros que fugiam deram volta e  gritaram: A Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta! Era,  com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que estava com o seu exército  sobre Mertola e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.  

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Cansados de largo combater, reduzidos a menos de metade em número e  cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o  sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem, que estava ao  pé das andas, que nova revolta era aquela.

— Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão — respondeu  tristemente o pajem. — A Virgem Maria nos acuda, que os senhores  cavaleiros parece recuarem já.

O Lidador cerrou os dentes com força e levou a mão à cinta. Buscava a sua  boa toledana.

— Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada?

— Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão quebrado de forças!...

— Silêncio! A espada, e um bom ginete.

O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que  andavam já sem dono. Quando voltou com ele, o Lidador, pálido e coberto de  sangue, estava em pé e dizia, falando consigo:

— Por Santiago que não morrerei como vilão da beetria onde entrou  cavalgada de mouros!

E o pajem ajudou-o a montar o cavalo.

Ei-lo o velho carairo de Beja! Semelhava um espectro erguido de pouco em  campo de finados: debaixo de muitos panos que lhe envolviam o braço e o  ombro esquerdo levava a própria morte; nos fios da espada, que a mão direita  mal sustinha, levava, porventura, ainda a morte de muitos outros!

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Para onde mais travada e acesa andava a peleja se encaminhou o Lidador. Os  cristãos afrouxavam diante daquela multidão de infiéis, entre os quais mal se  enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portugueses. Dois  cavaleiros, porém, com vulto feroz, os olhos turvados de cólera, e as  armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o peso da batalha. Eram estes o  Espadeiro e Mem Moniz. Quando o carairo assim os viu oferecidos a certa  morte algumas lágrimas lhe caíram pelas faces e, esporeando o ginete, com a  espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e cristãos e chegou aonde os  dois, cada um com o seu montante nas mãos, faziam larga praça no meio dos  inimigos.

— Bem-vindo, Gonçalo Mendes! — disse Mem Moniz. — Quiseste  assistir connosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feio, que estivesses  fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado lá na saga, enquanto  eu, velha dona, espreito os mouros com o meu sobrinho junto desta lareira...

— Implacáveis sois vós outros, cavaleiros de Riba-Douro, — respondeu o  Lidador em voz sumida — que não perdoais uma palavra sem malícia.

Lembra-te, Mem Moniz, de que bem depressa estaremos todos diante do  justo juiz.

Velho sois; bem o mostrais! — acudiu o Espadeiro. — Não cureis de vãs  porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que não ousam  chegar-se a nós. Avante, e Santiago!

— Avante, e Santiago! — responderam Gonçalo Mendes e Mem Moniz: e  os três cavaleiros deram rijamente nos mouros.

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Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de Julho de 1170 se  deram na veiga da caraira de Beja, notá-los-á de fábulas sonhadas; porque nós,  homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada,  medimos pelos nossos ânimos e forças, a força e o ânimo dos bons cavaleiros  portugueses do século XII; e todavia, esses golpes ainda soam, através das  eras, nas tradições e crónicas, tanto cristãs como agarenas.

Depois de deixar assinadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrara  pela última vez a espada e abrira o elmo e o crânio de um cavaleiro árabe. O  violento abalo que experimentou lhe fez rebentar em torrentes o sangue da  ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto  ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso Hermingues de Baião, que  com eles se juntara. Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de  oitenta anos de combates!

Já a este tempo cristãos e mouros se tinham descido dos cavalos e pelejavam a  pé. Traziam-se assim à vontade, e recrescia a crueza da batalha. Entre os  cavaleiros de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capitão, e não  houve ali olhos que ficassem enxutos. O despeito do próprio Mem Moniz deu  lugar à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluços:

— Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos quantos aqui somos, não  tardará que te sigamos; mas ao imenso, nem tu, nem nós ficaremos sem  vingança!

— Vingança! — bradou o Espadeiro com voz rouca, e rangendo os  dentes. Deu alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha  em céu proceloso.

Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o conhecera pelo timbre real do  morrião.

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Se já vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas vezes um  vulto negro que em linha diagonal corta os ares, sussurrando e gemendo.  Rápido, como um pensamento criminoso em alma honesta, ele chegou das  nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do seu nome. Se encontrou na  passagem ângulo de torre secular, o mármore converte-se em pó; se  atravessou, pelas ramas de árvore basta e frondosa, a folha mais virente e  frágil, o raminho mais tenro é dividido, como se, com cutelo sutilíssimo, mão  de homem lhe houvera cerceado atentamente uma parte; e, todavia, não é um  ferro açacalado: é um globo de ferro; é a bomba, que passa, como a maldição  de Deus. Depois, debaixo dela, o chão achata-se e a terra espadana aos ares; e,  como agitada, despedaçada por cem mil demônios, aquela máquina do inferno  estoura, e de roda dela há um zumbir sinistro: são mil fragmentos; são mil  mortes que se derramam ao longe. Então faz-se um grande silêncio vêem-se  corpos destroncados, poças de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o  gemer dos feridos e o estertor dos moribundos.

Tal desceu o montante do Espadeiro, roto dos milhares de golpes que o  cavaleiro tinha descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em  pedaços pelos ares, e o ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel, abriu-o até  os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.

— Lidador! Lidador! — disse Lourenço Viegas, com voz comprimida. As  lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue  do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais nada.

Tão espantoso golpe aterrou os mouros. Os portugueses seriam já apenas  sessenta, entre cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam como  desesperados e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos juncavam o campo,  de envolta com os cristãos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.

Os portugueses, senhores do campo, celebravam com gritos a vitória. Poucos  havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas falsadas e  rotas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada  tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja.  Após aquele tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um  sacerdote templário, que fora na cavalgada com a espada cheia de sangue  metida na bainha, salmodiava em voz baixa aquelas palavras do livro da  Sabedoria:

"Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum  mortis".

Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)