Durante sessenta anos o Natal era o tempo que menos me custava passar. A safra era tão absorvente que nos sonegava até o conceito de tempo, daquele que se mede em horas e dias e que fora do tempo de Natal se fazia ronceiro, demasiadamente vagaroso para o gosto da juventude que comigo se entregava de coração à confecção de Bolo-rei e outras especialidades relacionadas com época tão especial.
Mas o tempo futuro pode ser previsto, mas jamais com certeza, pois é unânime que esta Pandemia que nos inquieta, surgiu do nada que, como num golpe de mágica se tornou em pesadelo.
Cada família tem os seus rituais para que quando se fragmenta, seja por razões imperativas ou simplesmente porque os seus membros decidem afastar-se, no tempo próprio que a antiquíssima tradição cristã designa como a do nascimento de Jesus, vulgo, Natal, a tendência é para ser nesse tempo repetido que a casa principal se prepare para os receber.
Este Natal será previsivelmente pouco favorável a reuniões familiares e por isso é melhor precavermo-nos para não sermos apanhados desprevenidos.
Talvez não seja descabido relembrar o tempo passado e fazer uma resenha, mesmo que tosca, dos Natais a que me refiro atrás para dar um pouco de cor e luz a estas memórias que o confinamento nos traz. Esse era o tempo da "safra do Bolo Rei”.
Estive até aos quinze anos na Pastelaria Ribeiro e sempre nesse tempo se fez Bolo-rei. A qualidade era boa, pois o Snr Ribeiro tinha um receituário digno, que segundo ele era o da Confeitaria Cunha do Porto, onde foi interno desde pequeno até à idade adulta.
As quantidades produzidas não eram ainda muito grandes pois havia uma parte da clientela que estava habituada a comprar no Pousa, no Sousa, no Miranda Braga, no Chico Machado e até no Verbo, que o importavam do Porto. Era Bolo-Rei feito nas Confeitarias Costa Moreira, Paupério, Cunha, Brasileira e que era despachado atempadamente, o que lhe retirava alguma da sua frescura, sendo este pormenor a razão porque lentamente as pessoas passaram a preferir o Bolo Rei fresco da Pastelaria Ribeiro em vez do que vinha da Cidade invicta.
O processo de fabrico era ainda do tempo da Padeira de Aljubarrota pois as massas eram amassadas à mão e cozidas em forno de lenha, cuja lenha estava ao encargo de ser fornecida pelas mulheres que viviam na Boavista e que tinham nisso parte do seu ganha pão, pois queimavam-se umas toneladas de estevas e outros arbustos que eram armazenados até estarem suficientemente secos para serem queimados. Assim a Tia Carrachela, a Delovina, a Tia Gibóia e a Senhora Balbina eram as mais frequentes nesta tarefa, havendo algumas mais que não recordo ou tenho receio de incluir por não ser nítida a minha memória. Autênticas heroínas que deram aos filhos o pão húmido do seu suor, mas saboroso e dado com o amor maior do mundo, o que só as mães sabem dar!
Aqueles que hoje me lêem, eventualmente, não terão noção da diferença dos métodos de fabrico se compararmos esse tempo com o actual. As fábricas não estavam mecanizadas e o ambiente no seu interior variava conforme o forno estivesse quente ou frio. Este pormenor influía no levedar das massas muito particularmente quando se usava o método de misturar a fruta picada logo depois de amassar. A fruta era misturada fria, o que ia interferir com o processo de levedação.
Anos depois, ainda eu estava no Poças, uma equipa de pasteleiros vindos de Lisboa e representando a Fábrica de Fermentos e Leveduras, além de outras coisas ensinou-nos a deixar levedar a massa suficientemente e só depois misturar a fruta picada e as nozes, amêndoas, uvas passas e pinhão. Este método em termos de levedação veio acabar com a dificuldade até ali sentida e por consequência facilitar uma tarefa que era nos dias frios de Dezembro uma obstrução à rapidez de fabrico.
Até ao final de 1980 mantivemos este sistema que depois passamos a usar só quando o frio era muito e se tornava mais fácil levedar sem fruta. É verdade de que a fruta fica distribuída mais uniformemente processando-a no final da amassadura e deixando a massa levedar já com ela incorporada.
Quando vim da tropa, passei a trabalhar no Poças e aí e tomando em conta as facilidades relativas em relação ao uso de máquinas era já um avanço em termos de mecanização assinalável, passando o espaço para produção a ser exíguo para a safra do Bolo-Rei.
E aqui o Zé Poças que, tenho-o afirmado repetidas vezes, era homem de acção e inteligente, após conversar com o Snr Toneco conseguiu que utilizássemos a Padaria da casa do Dr. Conceição que naquele tempo estava parada pois haviam construído a fábrica nova onde hoje está o edifício da Farmácia Atlântico na Avenida Abade de Baçal. (Seria interessante fazer um registo histórico deste sector da Padaria/Pastelaria na Cidade).
Entenda-se esta descrição assumindo que em todos os anos a produção aumentava e vou mais longe, melhorava em termos de qualidade e aspecto.
Não me alongarei na apreciação do progresso conseguido com todo o esforço e capitais apostados por alguns na busca de melhoria da Pastelaria em Bragança mas devo mencionar aqueles que lhes dedicaram tempo e dinheiro e foram responsáveis pelo entusiasmo de outros que se lhes seguiram, foram: Zacarias Ribeiro, Zé Poças e Álvaro Carvalho Vaz.
Ao começar esta crónica passaram na minha mente uma miríade de imagens desses tempos de labuta, descoberta e de encantamento pois tudo parecia novo e esperando apenas pela minha geração, para mudar e se tornar mais generoso para connosco que saímos das entranhas do povo e foi-nos, por algum tempo, concedido vermos a luz da fraternidade que se pressentia no ar e nos fazia vivos, alegres e trabalhadores.
E esse tempo de advento para os crentes que rejubilavam com a Boa nova dos céus e nós outros, com as do céu e as da terra. Passava o Natal e a vida continuava sem retrocessos ou Pandemias.
(Amanhã contarei mais, S D Q.)