Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Era princípio de tarde de um sábado do dia três de Maio de 1975. Ainda na ressaca das segundas comemorações em liberdade do primeiro de Maio na praça dos Leões pela FEC-ML, Ricardo seguia pela rua de Cedofeita na direcção da praça Carlos Alberto, quando se cruzou com o Ramiro do Peredo dos Castelhanos, que vinha em sentido contrário. - P´rondé que bais, ó ´spantalho? – perguntou-lhe o Ramiro no seu tom próprio de transmontano.
- Bou ó Bissau buber um cimbalino. E tu, ó bentas de labrego?
- Olhó cara de cú à paisana.
- Ora bejam só o taininhas…! ´Stás munto guitcho!
- Hum…hum, lampantinzote do Larinho.
- Frosquinhas do Predo.
- Ora bejam lá o penalbilhas! Bou ó cinema. Quers bir, ó prósmeiro?
Quando se encontravam e principalmente quando se despediam, havia sempre um ritual de mimos. Perdia aquele que já não soubesse mais ou que repetisse um que já tivesse sido dito. Às vezes prolongava-se a troca de galhardetes, porque já havia amigos de um lado e do outro que lhes traziam novos “piropos” para acrescentar à lista, tais como: lingrinhas, falmegas, arincum, rilha-fóis, doutor de lareira, pandilha, fidalgo da corte da palha, titliteiro, doutor da mula ruça, pantomineiro, fuinha, lambão, calaceiro, carneiro moncoso, fistor, basófias, larilas, canastrão, lafrau, sorrelfas, galifate, paspalho, coçá nalga, tchamberga, pilantra, flausino, berloso, tcholdreiro, aranhão-pentelhudo, calhorda, frosquinhas, tchotcho, pateta das luminárias, tchabasco, bebáuga, prosmeiro, cunenas, mulher de soalheiro, bentas largas, peideiro, enxalmo, penalbilhas, matchutcho, emplastro, sacrista, vagueiro, patarata, ´spantalho, tcheringalho, pamonha, cotchino, indromineiro, belfurinheiro, sorna, bardino, pisco, criqueiro, tinhoso, panasca, zarelho, alma do diabo, cara de cú à paisana, pascácio, tramblazana, matreiro, lazarento, carranhento, lapouço, birolho, surrão, canhão aério, calhau, mono, baboso, gabarrista, mimo da cantareira, rauteiro, gandulo, trombas de camioneta, lapouço, bacamarte…
O Ramiro tinha uma ladainha que todos os tripeiros, ou melhor, todos os não transmontanos – ou melhor ainda – todos os não transmontanos, mas incluindo alguns transmontanos (há sempre ovelhas ranhosas !), que se deliciavam com ela. Era mais ou menos isto:
”Abança p´ra Bragança, a entcher a pança, em casa da ti Constança, onde bai haber uma grande festança, qué o dia da matança e que nos bai ficar na lembrança inté à mortança. Todos fizemos uma aliança p´ra irmos com sigurança, porque já é assim desde criança e p´ra qu´ haja continuança, pelo menos é a nossa esperança. Bai toda a bezinhança e inté bem gente de França, que esses no ligam à poupança, pois têm munta finança e bibem n´abastança. E isso já é uma herança dábó da ti Constança, qué mãe da ti ´Sperança".
- Num me tchalda... Qual é o filme?
- Num no sei, mas atcho qu´é bom.
- Bô!! Atão já t´ólbidastes?! Hum…num no sei.
- O qué qu´adboga o filme qu´é ?! Bou com duas mulas.
- Bô?! E já têm matcho? – perguntou Ricardo com um sorriso maroto.
- Uma delas já. Sou eu.
- E atão tu atchas qu´eu posso ser o matcho da oitra?
- Por i, mas num me parece. No sei se terás cabresto qu´abonde p´ra ela, co esse focinho tcheio de moscardos…
- Atão num bou.
- Anda lá, ó tramblazana. Deixa-te lá de municancas. Bai tamãe a prima dela, que por sinal é bem guapa e inda no tem matcho.
- Oh... `Stás na galhofa – disse Ricardo já entusiasmado, com o sorriso aumentado.
- No ´stou nada na paródia. A sério. É mesmo bonita! É brasileira.
- Bai-te quilhar. É lá´gora! E mais a mais, no tanho dinheiro. Ando c´más putas na Quaresma.
- Bô?!! Olha qu´abantaje!! Um pelintra como tu anda sempre mais liso do q´um seixo do Sabor! Anda lá, ó cotroso. Eu pago.
(Quando a amizade é grande e pura, não há obstáculo algum que a impeça).
- Num no sei…
- Inda por cima que no tães ninguém, qu´és um tristi feio
- OH...eu bem le boto o inzol, mas no apanho nada….!
- Que le querias tu?! Tamãe co essas trombas de camioneta que tens, quem tá-de pegar? Tães qu´arranjar oitro isco mais milhor.
- E a ti, co essa cara de diarreia? Por i lá arranjastes alguma besga dum olho, ou alguma manca…
- Bá... no t´armes em sacripanta, que tu nem uma birolha arranjas.
O Ramiro estudava no terceiro ano da Faculdade de Letras. Usava pera e bigode, de um preto retinto, tal como o cabelo que lhe caía pelos ombros, a condizer com os olhos. Era mesmo muito engraçado. Todos lhe achavam graça, principalmente quando falava à transmontano. Além do sotaque eram as expressões faciais que mais os fazia rir. Retorcia a boca e os queixos e revirava os olhos de tal mameira esquisita, acompanhados pelos gestos patéticos das mãos que fazia rir o mais "certinho".
Foram apanhar o eléctrico à Boavista. Subiram até à praça da República e depois até à Antero de Quental, na Constituição. Quando chegaram ao café Piscina, já lá estavam as duas primas. Ricardo foi apresentado e ficou embasbacado com a beleza da Mariana e principalmente com o seu sorriso: generoso, fácil e espontâneo. Notou logo a beleza dos olhos negros, rasgados, alegres. O contraste entre o negro antracite da íris e o alvo de neve do cristalino era profundamente harmonioso e encantador. Era morena e só muito mais tarde concluiu que não era do sol brasileiro, mas sim da mãe, assim como os olhos.
Apanharam novamente o eléctrico de volta à praça da República e desceram a pé a rua do Almada até ao cinema Trindade.
Era um filme leve, alegre, de Verão, com uma história romântica. O cinema ficava no primeiro andar e no intervalo ficaram à janela, a conversar e a fumar. A Mariana e o Ramiro não fumavam. Depois do filme foram logo levá-las a casa, porque a Ilda – rapariga linda, com um cabelo preto forte, uns olhos e uns lábios encantadores, apenas o nariz um pouco comprido para ser perfeita – tinha hora marcada e, pelos vistos, os pais eram inflexíveis. Combinaram novo encontro para o dia seguinte, no domingo. Ramiro e a Ilda tinham vinte e um anos, Ricardo tinha vinte e a Mariana dezassete. A Mariana morava num lar de freiras na Cedofeita, junto ao café Latino, que ficava na esquina da rua dos Bragas, onde era a Faculdade de Engenharia. Por sinal, Ricardo vivia logo acima da Faculdade, na “Hospedaria Bom Sonho.” Mariana tinha ido passar esse fim-de-semana a casa da prima. Ambas eram filhas únicas!
Os pais dela tinham vindo do Brasil definitivamente para o Peredo dos Castelhanos. Era o fim de um sonho e o princípio de outro. A nossa vida é saltarmos de sonho em sonho, pensando que é sempre o último, mas ainda bem que não é. Há sempre sonhos para vivermos. Só depois da morte é que não sabemos se sonhamos. Parece que o pai tinha sociedade num negócio de transportes com um familiar.
- Atão, ó inxalmo. Gostastes da “minina”? No é bonita? Olha que se no t´atiras tu, atiro-m´eu, caratchos.
- Cala mas é a morca, ó caga e foge. Amanhê precuras à Ilda s´ela dicho alguma cousa sobre a minha própria pessoa, de mim mesmo.
- Bô?! Só se fosse p´ra le decer que no te lebe mais, p´ra te ´sporteirar. Atão tu atchas que tães alguma impóteze c´uma beldade daquelas, ó ranhoso?!
- E tu, ó feiarrão da calçada. No fales munto qu´a tua no le fica atrás!
- Catantchos, ó Ricardo! É berdade, caralhitchos. Arranjemos cá duas beldades quinté nos fazem cair o ranho por o natcho abaixo! Carbalho nos recontracosa si as no habemos de papar…
- Inté te cegas c´más pitas na nebe!
- Ora bejam lá o santo de pau caruntchoso! Tu é caté te pelas c´mó diabo por almas! Ó qu´andais andemos...
No domingo foram passear depois de almoço para o Palácio de Cristal. A Ilda e o Ramiro iam à frente e a Mariana e o Ricardo um pouco mais atrás. De vez em quando, à surrapa, o Ramiro fazia-lhe sinais “positivos” com as mãos. Soube que Mariana ia todas as noites ao Latino tomar café depois de jantar e que a hora de entrada no lar era até às dez. E soube também que estudava no Carolina Michaelis e que as aulas acabavam às seis da tarde.
Ricardo passou os dias seguintes a pensar na Mariana. Aqueles olhos magnéticos e os lábios polpudos não lhe saíam da retina. Na quinta- feira saiu da hospedaria por volta das seis e vinte e cinco e desceu a rua dos Bragas devagar, devagarinho, para fazer tempo. Atravessou a Cedofeita para o outro passeio e pôs-se a andar com toda a calma, matreiro como uma raposa, em direcção à Boavista. Uma multidão de estudantes invadia a rua nessa hora. Quantos sonhos, quantas ilusões, mais tarde transformadas em desilusões e frustrações, inundavam a Cedofeita! Quanta inocência e alegria genuína e pura cobriam as pedras do passeio. Quanta beleza e juventude a extravasar energia por todos os poros! Ricardo ia de cara baixa, levantando os olhos de vez em quando, com arte ardilosa. Finalmente lobrigou-a ao longe a vir na sua direcção, ainda distante. Foi calculando o espaço e, tal com a hiena calcula o momento certo para atacar e quando, por um canto do olho, viu que se aproximava, levantou as garras, isto é, os olhos.
- Olá!!! Que coincidência!!! – Disse com ar artificial de admirado e inofensivo.
- Verdáje- disse ela. - Qui anda fazendo por aqui?
- Vou ter com uns amigos ali ó café Bissau. Então e tu, que fazes?
- Cê lembra qui estudo no Carolina? Saí agora das aulas e vou para o lar. Mi desculpa. Ti apresento minha colega di quarto, a Catarina.
- Muito prazer. Vou andando, Marianinha – disse inteligentemente o sexto sentido da colega.
- Qui é feito di você?
- Oh...Cá ando sempre na mesma – respondeu encolhendo os ombros, fazendo o ar do ser humano mais triste e infeliz do mundo.
A representação nunca fora o seu forte, mas ia dando para o gasto.
- Sempre esperei vê você no Latino.
Ouvir aquilo caiu-lhe tão bem! Foi música para os seus ouvidos. Fingindo que não tinha percebido e salvaguardando alguma espontaneidade da parte dela, fruto da sua inexperiência própria da juventude, respondeu-lhe com todo o fingimento:
- Para ser franco, ainda não apareci com receio de parecer abuso da minha parte.
A ingenuidade e a compaixão são sempre trunfos fortes da representação fora dos palcos.
- Ah…! Qui nada. Bobagem. Apareça, sim.
- Pode ser hoje?
- Mas é claro qui poje. Ti espero, tá?
Todos nós – se calhar é abusivo dizer sem excepção – fazemos as coisas de uma maneira interesseira. Isto não significa que as façamos para tirar vantagem do ponto de vista material, profissional ou social, ou para prejudicar o outro. No limite, fazemo-las apenas para tirar partido do ponto de vista de satisfação pessoal e consciencial que, se calhar, é a forma mais egoísta de o fazer. O que dizemos, embora sem maldade, é sempre aquilo que na ocasião nos convém dizer ou o que pensamos que convém ouvir ao nosso interlocutor. Ai de nós se um dia desatássemos a dizer tudo o que nos vai na alma, tudo o que pensamos! Não sabemos se o resultado seria positivo ou negativo, mas garantidamente que as relações humanas sofreriam um grande abalo, até talvez telúrico. Possivelmente, pessoas que se amam odiar-se-iam e vice-versa. Quem sabe se aí haveria uma separação das águas: separar o trigo do joio. Essa seria, talvez, a mais benéfica revolução da humanidade! Como dizia Pascal: " Poucas amizades subsistiriam se cada um soubesse o que o amigo diz de nós nas nossas costas"!.
Ricardo viu nessa “permissão” algo mais do que uma simples simpatia social e de ocasião. Estava tão bonita, que mais parecia um anjo vindo do Céu, que Deus mandou para aliviar a sua tristeza. Vestia uma camisola branca, de meia gola e sem mangas, o que lhe realçava os rijos e apetitosos peitos – que mais pareciam duas rolinhas, como diria o Aquilino – e uma saia azul curta, deixando ver umas pernas fortes, bem torneadas, morenas, cilíndricas e firmes. Trocou logo o Bissau pelo Latino. Quatro dias depois saíram pela primeira vez dar uma volta. A partir daí assumiram o namoro. Se Ricardo já estudava pouco, passou a estudar ainda menos. Passava os dias suspenso naquela hora e meia de êxtase, que era quanto durava o breve encontro. A vida já vale a pena quando se luta e se espera por um momento de extrema felicidade. Infelizmente há muitos que nem isso têm como último refúgio. E Ricardo tinha e o que era para ele mais importante é que, pela primeira, vez sentia que amava verdadeiramente.
Normalmente iam namorar para um jardinzinho que havia em frente ao hospital de Santo António, onde havia uns bancos de pedra. Tratava - a como a um diamante frágil, preciosíssimo, sempre com mil cuidados. Tanto assim é que o primeiro beijo foi já depois do terceiro encontro. Notou que talvez nunca tivesse beijado ninguém, pela maneira tosca e atrapalhada como o beijou e pela dificuldade que lhe causou a posição do nariz. (Ricardo lembrou-se de uma cena “ Por quem os sinos dobram”, onde ela pergunta: “ E onde pomos o nariz quando beijamos?”). E ele, que era um passarão, já batido nessas andanças e nisso já era Doutor… (Mais tarde ela confessou-o e passaram a brincar com a situação). A paixão ia crescendo mutuamente, dia após dia, e o tempo passava com asas nos dias.
Porém, próximo do fim do ano lectivo, um dia Mariana apareceu chorosa, nervosa e triste. Tinha recebido uma carta dos pais a dizer que regressariam ao Brasil em Setembro. Algo correu mal na sociedade. E ela, claro, iria também. Ricardo ficou em estado de choque; não queria acreditar. Um amor tão intenso, tão imberbe que crescia dia a dia, queriam já matá-lo?! Era um amor que ainda não tinha tido tempo de ser contrariado e nem manchado por nada. Vivia ainda no estado puro, sem pecados, como Adão e Eva no paraíso. Choraram tanto os dois, inconsoláveis, abraçados um ao outro, como duas crianças a quem tivessem feito uma incompreensível maldade! Fizeram juras de amor eterno, que não seria o Atlântico que acabaria com um amor assim tão profundo e tão forte. Eram dois jovens desiludidos, desesperados, rebeldes, indefesos e revoltados a quem queriam roubar o único valor em que acreditavam: o amor. É nestes momentos de profunda desilusão que os nossos corações se enchem de ódio e nos falta a terra firme debaixo dos pés. E eis que pela primeira vez, Ricardo foi chamado a dar mostras de que fibra era feito. No meio deste desgosto chegaram as férias. Ela foi para o Peredo e ele para o Larinho. Escreviam - se diariamente.
Ricardo tinha tido até então alguns - bastantes - namoricos fugazes, de “baile de finalistas”. Ricardo era um autêntico pinga-amor; ou andava apaixonado ou prestes a apaixonar-se. Por norma dava-se bem na arte do engate. (Mais adiante, em ambiente mais desanuviado, contaremos alguns métodos bizarros dos quais se socorria de maneira obscena para apanhar a "presa").
Com as saudades a apertar, um disse ao Zé Cortinhas:
- Ó Zé! Pago-te a gasolina e amanhã lebas-me ó Predo?
- Oh! Lubar eu lebo, mas... e se nos aparece a Guarda?
- No aparece nada. Bamos à tarde, por a hora do calor, qu´eles nessa hora no andam.
- ´Stá bem.
No dia seguinte, lá se meteram no velhinho Fiat 600D, cujas portas abriam para trás. Ricardo ia todo contente, porque ia fazer uma surpresa à Mariana. Nenhum deles tinha carta. O Zé tinha aprendido a conduzir sozinho, às voltas atrás da capela do Nosso Senhor dos Aflitos. Para poupar gasolina, nas descidas desligavam o motor.
Desceram a serra do Reboredo sempre com o carro desligado e tudo correu normalmente até quando chegaram ao Peredo. Numa rua a descer, disse o Zé muito atrapalhado:
- No temos trabões.
- O quê?!! Traba com força – pedia-lhe Ricardo.
- No sei o que se passa. No traba nada - dizia o Zé carregando com toda a força no pedal. – E agora?
- Antes que ganhe mais belocidade, biró contrá parede - aconselhou-o Ricardo.
Dito e feito. O Zé deu uma guinada com o volante para a esquerda e pum...contra a parede de uma casa! As pessoas que estavam por ali à sombra vieram logo a acudir. Saíram ilesos e o carro tinha apenas um pouco de chapa amolgada. (Os carros ainda eram feitos de chapa rija).Não conheciam ninguém. Ricardo estava envergonhadíssimo e com medo que aparecesse a Mariana ou alguém da família. Rezava a todos os Santos para que ela não aparecesse ou soubesse.
Decidiram vir embora, mas o carro não pegava e o para-choques do lado direito roçava na roda e não andava. Apareceu um senhor entendido e com um barrote de madeira, lá conseguiu endireitar o para- choques. Abriu o capô do motor, que ficava atrás, andou por lá a mexer nuns fios e conseguiu pôr o carro a andar.
- Bindes d´onde?
- Ali dos lados de Moncorbo.
Ricardo nem falava no Larinho, para que se não soubesse.
- Já percebi! E biestens co carro desligado?
- Nas descidas.
- Atão ´stá tudo intendido. Sabendes qu´a serra ´stá tcheia de ferro. A atracção do íman qu´ o ferro tem, co aquele magnetismo todo, afecta os trabões, mormentes s´o carro ´stiber desligado e atão foi por isso que ficástens sem trabões. Habendes de reparar qu´ó descer, inté parece qu´o carro no anda; parece que fica agarrado ó tchão. É o íman do ferro qui o puxa p´ra baixo, pró tchão.
Ricardo só queria sair dali o mais rápido possível.
- Ricardo!! É você Ricardo? Minha Nossa! Você si machucou?
Caiu-lhe tudo ao chão. Ficou sem pinga de sangue no corpo, por que fugiu todo para a cara. Ficou vermelho como um tomate. Aconteceu precisamente o que não desejava. Depois de a descansar, disse-lhe que voltaria no último domingo de agosto. Despediram-se e marcaram novo encontro para domingo da festa de Santa Luzia.
Durante a viagem o Zé Cortinhas mencionou por várias vezes a beleza da Mariana. “Em Moncorbo no encontras tu outra tão guapa! Co mé que tu, co essa cara de motcho, arranjastes uma gaija assim?!”
Ricardo e o primo Orlando, da Cabeça Boa, fizeram uma noitada no sábado da festa de Santa Luzia, que era no último fim- de- semana de Agosto. Depois de dormirem um pouco atrás da estação do comboio e já depois do sol nascer, foram até ao cruzamento pedir boleia. Apanharam uma até ao cruzamento de Felgueiras, depois do Carvalhal. A seguir uma camioneta que transportava vacas e porcos levou-os até ao cruzamento de Maçores. Apanharam depois outra com um senhor que ia para Urros e deixou-os aí. Nessa altura e por essas bandas, era fácil; toda a gente dava boleia. De modo que quase em seguida veio uma Toyota de caixa aberta e lá foram para o Peredo dos Castelhanos. Deviam ser umas dez da manhã quando chegaram. Ricardo nem sabia sequer onde era a casa da Mariana! Chamaram um miúdo e perguntaram-lhe:
- Sabes onde mora uma moça chamada Mariana, que é brasileira?
- A Marianinha, a filha da senhora Marília?!
- Sim, essa mesma!
- Sei, mora ali já em baixo à squerda – respondeu cheio de orgulho.
- Eras capaz de ires lá dizer-lhe que está aqui o Ricardo?
Poucos minutos passados apareceu com a Ilda. Foram até a um terreno murado, com poço e latada, que pertencia a um tio delas. A Ilda tinha chegado na sexta anterior e fartou-se de gozar com o acidente. A ida para o Brasil era daí a duas semanas. Passaram o tempo todo de mãos dadas a dar carinhos e a reprimir uma ou outra lágrima que espreitava.
Ricardo era tão feliz! Mas a felicidade é tão relativa e tão efémera. Conseguimos ver a maior felicidade do mundo no sorriso de uma menina cigana, porque conseguiu que alguém lhe desse algum bolo para comer ou uma moedinha. Mas será que conseguiremos ver essa felicidade nos seus olhos? É fácil mostrarmos um sorriso de “felicidade”, mas é impossível enganar com os olhos.” Os olhos são o espelho da alma”. Que verdade mais incontestável!
Havia pouco tempo que a Ilda e o Ramiro tinham acabado o namoro. Por pressão dos pais dela tinham rompido, por que a queriam casar com um jornalista rico, quinze anos mais velho, já careca, de uma família amiga e tradicional da sociedade portuense. Mas a Ilda continuava a gostar do Ramiro, que nessa altura estava no Porto, a estudar para dois exames da segunda época, aos quais tinha reprovado.
O seu primo Orlando – um outro autêntico pinga amor – ficou fascinado com a imponente beleza da Ilda. Implorou-lhe que intercedesse junto dela. "Peço já a transferência para o Porto."- Disse brincando.
Em meados de Setembro, Ricardo foi despedir-se da Mariana a Moncorvo, na praça, em frente aos pais. Foi uma despedida breve, envergonhada e dolorosa. Dois corações jovens e puros, cheios de sonhos e de amor, verem-se assim separados, sabe-se lá se para sempre! Apenas um aperto de mão e os olhos tristes e longos disseram o resto. Ricardo foi chorar para trás da igreja com o coração apertado.
Mais ou menos três semanas depois recebeu a primeira carta. Uma carta longa, salpicada de sofrimentos e de juras de amor eterno. Embora uma carta de amor, não era ridícula – contrariando o Mestre. Mas as posteriores, de parte a parte sim, era ridículas por serem nuas, cruas, íntimas e verdadeiras. Ricardo tratava-a por “Manhã Tranquila” ela por “Corruptor de meninas indefesas e Homem das cavernas”
“ … Rua do Ouro Preto, Nº..., Bairro Assunção, S. Bernardo do Campo – São Paulo, Brasil…”
Fontes de Carvalho
(Início do romance " Nada morre duas vezes ", já publicado)
Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.