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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Quatro manueis (conto)

Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Vinte anos antes da sangria dos anos sessenta tinha havido outra pequena leva que iria ajudar a erguer uma europa desfeita pela guerra. De balfrades abalaram pelo menos três rumo à frança. Um de que já não dou fé, o tato, de ouvir o meu pai falar, e o duro. Dos dois primeiros nunca mais se soube nada. Também, para que haveriam eles de voltar àquele fim do mundo de miséria e servidão? Por que cargas de água trocariam sapatos limpos nos pavês de paris por calejas de poeira, bostas e lama? Quanto ao outro sim, regressou muitas vezes e conheci-o bem. Recordo-o como se o estivesse a ver agora aqui. Pela frente tratavam-no por manuel, como a mim. A alcunha, o duro, essa vinha-lhe da dureza de ouvido, uma arrelienta herança de família que em idade precoce os deixava a todos surdos como portas.
Negando-se às cargas pesadas dos bâtiments ou até mesmo ao mais leve ofício de concierge, o tributo do duro para a reconstrução do hexágono revestia-se porém de suma importância: não sei por que ironia do destino, tinha-se feito sócio de uma casa de meninas no pigalle. E como a mais velha profissão, por responder a apelos profundos e urgentes no homem, retribui menos mal aos que a promovem, o duro, um dos mais necessitados antes de partir, fez-se rico em pouco tempo. Década e meia depois tudo nele se opunha já aos que nunca haviam saído e se arrastavam no rame-rame e no marasmo do costume, o tempo estagnado, o universo resumido àqueles dez quilómetros quadrados.
Trazia novidade e animação ao povo, é o que é, por isso habituámo-nos a esperar aquele homem todos os agostos. E com efeito aí por princípios do mês lá aparecia ele sem falta para a festa do quinze, empertigado ao volante de renaults e peugeots último modelo, novinhos em folha. Alto, forte, encafuado em trajos amaricados acabadinhos de comprar nos grands boulevards, voz rouca de corvo, aparelho cravado na numa das orelhas, irrequieta boina de cabedal. A extravagância maior residia contudo em duas fabulosas fiadas de dentes de ouro do melhor quilate que por si dariam ideias a qualquer cineasta de terror e deixavam a ganapada indecisa entre o medo e o fascínio.
Não mais que por isto a presença do duro já daria nas vistas de sobejo. Mas ele juntava-lhe aquele gargalhar de zombaria, estrondoso, metálico que sempre o anunciava e de bónus, ensaiado ao pormenor, oferecia ainda generosamente todo um espalhafato de pantomina com que entretinha quem dele se aproximava. Uma maneira muito própria de se evidenciar e fazer o manguito à antiga pobreza, ainda bem visível na maioria dos que se tinham deixado ficar na parvónia. 
A verdade é que ali naquele tempo a vida era ingrata. Ganhar o pão com o suor do rosto quase não passava por metáfora. A gente, pouco mais do que em farrapos, arrastava uma existência acabrunhada, a mourejar sob um sol desumano entre segadas, acarrejas, hortas, malhas. Mas ao olhar o ilustre e próspero filho da terra, em quem se remirava, podia levantar por breves instantes a cabeça sem estar a matutar no pesado jugo do cachaço. A sua figura dizia-lhes haver outros mundos para lá de alcaniças, do outro lado da serra, e fazia erguer a imaginação de ser possível um dia atirar com aquele castigo para trás das costas. 
Nessas escapadelas de verão nunca vinha sozinho. Fazia-se sempre acompanhar de uma das suas demoiselles, no princípio diferente de ano para ano, bem entendido, não tivesse ele muito onde escolher, e que ao lado das locais era como se tivessem acabado de chegar de outro planeta. Estas, cobertas dos pés à cabeça, tirando cara e mãos, indumentária invariavelmente a dar para o escuro não sendo viúvas e de negro carregado se o fossem. As francesas (oh as francesas!), o vivo retrato do inimigo! O menos mau era a língua bárbara em que se exprimiam, cheia de exclamações ateatradas e estranhos érres a vibrar desde o fundo da garganta.
Cores berrantes, calças justas à coxa (mulheres de calças, nossa senhora!...), amplos decotes, cabelos curtos, unhas e lábios espintarraçados de vermelho intenso. Como nunca nada é tão mau que não possa piorar, escândalo dos escândalos, as francines e as lucetes ousavam tomar banhos de sol nos lameiros da canal e banhar-se no poço fundo do ribeiro em trajos menores, quase como deus as trouxera ao mundo. Arrelia suprema: por mais que as pudicas mulheres de balfrades ripostassem referindo-se a elas com o nome das festas, o resultado era mais ou menos como pretender desconsiderar um trolha chamando-lhe trolha.
Se o duro se oferecia de bom grado como entretimento, nem por isso deixava de o apreciar. Além do mais, para quem se habituara à animação irrequieta e permanente da cidade-luz, um mês inteiro num buraco pasmado entre montes ressequidos onde nada de criativo acontecia consumia-o de tédio a ele e às concubinas, impondo-se por isso inventar maneiras de matar o tempo. 
Foi assim que um belo dia (e por bem anos que conte nunca o tempo seria capaz de apagar de mim esta memória), logo no princípio de mais uma descida ô porrrrrtiugal, o duro pegou em dois pacotes de caramelos de chocolate recheado envoltos em pratas de todas as cores, adquiridos na melhor confiserie de la madeleine. Veio subindo desde as casas de baixo, onde tinha construído vivenda à mãe e à irmã (dura velha e dura nova), e passou na pracica por casa do morais, o maior proprietário do sítio, de quem agora se achava igual.
— Á morais, anda daí se te queres rir!
O parceiro não apreciava pouco a pândega, e na companhia deste deu uma volta completa ao casario, guloseimas empunhadas no braço direito, erguido bem ao alto, anunciando no seu inconfundível falar de caverna: 
— Ulhai, garótos, binde cá que bus bou a dar arrebuçados do bôs que trouche de paris. Ópois num dígueis que num bus abijei. 
  Nós rebuçados não conhecíamos se não os que o tio manuel tantagão vendia na taberna, uma dúzia à croa: açúcar com corante verde dentro de papel baço esverdeado, rijos como cornos. A propaganda do emigrante e a vista das doçarias em tons de arco-íris trouxeram aos nossos olhos desconsolados mais brilho do que os invólucros delas, pelo que na ronda não lhe foi difícil juntar uma boa dúzia de miúdos, entre os quais eu. Desembocou o giro festivo no largo do mané, mais conhecido por barreiro, ao lado de um tanque em cantaria onde as bestas e as crias, dias inteiros pelo termo, vinham matar a sede. A bica corria sempre, formando um lamaçal em frente disperso por vários metros.
O duro começou então lentamente a abrir o primeiro embrulho. Galhofavam agora entre dentes ele e o morais. A arder em desejo, já víamos a mão alva e mimosa do proxeneta estendendo para nós os apetecidos lambiscos e estes a derreterem-se em prazer no fundo da boca. Bruticos, como se diz no palavrear de balfrades. Para nosso espanto, os primeiros dois ou três foram atirados diretamente bem lá para o meio do lodo, o mesmo acontecendo aos poucos com todos os outros, até não restar nem um único no fundo dos pacotes. Adivinha-se que para chegar aos pequenos e cobiçados troféus nos tenhamos engalfinhado como animais durante um bom quarto de hora e que no final fizéssemos figura de verdadeiros labregos. 
Junto com as de alguns outros mirones, as risadas alarves da dupla quase se podiam ouvir do Vimioso, a cinco léguas de distância e a cena, assim como o episódio completo, seria digna de uma daquelas fitas em que ettore scola expõe a mais crua realidade humana. Quanto a mim, entre cotoveladas e quedas de focinho lá apanhei um ou dois a custo, sem prejuízo de ter apanhado forte e feio da minha mãe quando cheguei a casa, o mesmo se dando com quase todos os outros.  

XXXXX

Aí por meados da década de oitenta, mais coisa menos coisa, após mais uma dessas vacances em balfrades o duro regressava ao seu país de adoção. Nos anos de velhice por fim fiel à mesma, levava ao lado a sua madame. Entre Valladolid e burgos o mais certo é que o sono ou o cansaço o tenham traído. Saiu da estrada e foram cair aos trambolhões nuns barrancos esconsos cercados de mato espesso.
O último embate projetou-os com violência para fora do carro, pondo um fim abrupto e triste aos seus dias neste mundo. Alguém que andava por perto se deu conta, certamente a mesma pessoa que duas horas depois ligou para a esquadra próxima. Passou tempo ainda antes que as autoridades dessem com eles. Quando por fim um dos guardilhas avistou o corpo inanimado de um homem prostrado sobre arbustos alertou à distância os companheiros:  
— Aquí, aquí está el hombre!
Aproximou-se um pouco mais e passados segundos não conteve o espanto:
— Pero que le paso a este que no tiene ni un solo diente?
Levaram-nos. Os cadáveres estiveram dois dias depositados na morgue de Palência sem que ninguém viesse reclamá-los, enquanto decorriam averiguações. Entre pormenores técnicos de circunstância podia ler-se no relatório do médico legista relativo ao corpo do duro: “todos los dientes extraídos post mortem, probablemente con la ayuda de un objeto tipo tenazas”.

Manuel Eduardo Pires

Manuel Eduardo Pires
. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.

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