Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Vi por duas ou três vezes na national geographic um programa chamado os Irwins. Nele uma voluntariosa família australiana corre o país em operações de resgate de animais feridos ou em perigo, que inclui centros de acolhimento, tratamentos, cirurgias e restituição ao meio natural sempre que possível. Tudo devidamente acompanhado por apaixonados beijos e abraços aos bichos por parte dos Irwins. Não duvido das boas intenções, porém delas está o inferno cheio e a mim aquilo parece-me ser o resultado de consciência pesada pelas patifarias que per saecula saeculorum lhes temos andado a fazer.
É justo sentir culpa quando fundamentada: uma das bases da nossa civilização reside na convicção da superioridade do homem relativamente aos outros animais, meros objetos para nosso usufruto. Juízos em causa própria que têm servido de justificação para os matarmos a fim de lhes comermos a carne, vestirmos a pele e os considerarmos fonte de inúmeras matérias-primas, os tirarmos aos montes, domesticando-os, para nos protegerem e servirem, os escravizarmos nos trabalhos mais pesados, os cruzarmos entre si, criando raças que satisfazem os nossos caprichos, os enjaularmos e exibirmos como objetos de diversão, os usarmos para descarregar neles ódios e frustrações, os submetermos a torturas indescritíveis na pesquisa científica, os privarmos mesmo do direito à existência provocando a extinção de espécies inteiras.
Muitos povos, partindo do princípio da sacralidade e da dignidade de todos os seres vivos sem exceção, desconhecem aquela hierarquia. O caso mais conhecido são os hindus, mas há outros. Em certas culturas tradicionais, de cada vez que se mata um animal para alimentação ainda se faz uma cerimónia em que se lhe pede desculpa por esse ato repleto de cinismo (como lhe chamou o filósofo edgar morin) que consiste em tirar a vida a um ser para a dar a outro. Nós consideramo-los um estorvo à expansão e à loucura humanas, enclausuramo-los em campos de concentração a que chamamos jardins para os protegermos da sua única ameaça, nós próprios, e em nome da ciência fazemos com eles muitas coisas que têm a marca da arrogância e do preconceito antigo. Inclusive, as relações na aparência mais benignas exibem aquela atitude preconceituosa básica. Passará pela cabeça da malta do pan que a expressão “animais de companhia” assume que o papel deles é satisfazer uma necessidade humana sem que alguma vez a sua vontade seja tida em conta? Por mais que os apapariquem, ocorrer-lhes-á que obrigá-los a vegetar em apartamentos significa negar-lhes o direito à liberdade no seio da natureza e de acordo com as suas leis? Quais serão os seus sentimentos sobre isso? O que nos diriam se os pudessem exprimir?
Tal como muitos outros, os Irwins são sem dúvida sinais de civilização, mostras de que a consciência e o desejo de proteger estão a despontar. É melhor que nada, e por este andar talvez um dia se venha a pedir perdão à bicharada por tanto abuso, como agora se faz com os descendentes dos escravos. Mas eles parecem-me fazer parte de uma vaga de gente citadina “ambientalista” que não consegue abrir mão de nenhum conforto material, coleciona sempre mais e mais objetos inúteis, venera as mil bugigangas oferecidas pela tecnologia moderna e disfarça através do “protecionismo” extremista o remorso de precisar de três planetas para sustentar o estilo de vida que leva.
Também tenho muito respeito pelos animais e sinto um enorme peso por ainda não ter conseguido deixar de os comer. Tirando esse pecado, sou dos que param na estrada para enxotar uma lebre que se me atravesse à frente do carro (o que já aconteceu várias vezes) e incapaz de fazer mal a seja o que for que mexa, até mesmo a uma mosca exasperante. Mas acho que eles passam bem sem declarações de amor piegas e dispensam absolutamente ser tratados como pessoas. Aliás a nossa ação só os pode prejudicar. Tirando os que são um produto do nosso egoísmo e não sobreviveriam sozinhos, os que ainda são livres só precisam de nós para que os deixemos em paz. E isso pode começar, por exemplo, por recusar o dogma segundo o qual a população humana deve aumentar de forma desregulada como tem vindo a acontecer. É a maneira mais eficaz de não invadir os seus ecossistemas e de os deixar lá sossegados com a menor intervenção possível da nossa parte.
É justo sentir culpa quando fundamentada: uma das bases da nossa civilização reside na convicção da superioridade do homem relativamente aos outros animais, meros objetos para nosso usufruto. Juízos em causa própria que têm servido de justificação para os matarmos a fim de lhes comermos a carne, vestirmos a pele e os considerarmos fonte de inúmeras matérias-primas, os tirarmos aos montes, domesticando-os, para nos protegerem e servirem, os escravizarmos nos trabalhos mais pesados, os cruzarmos entre si, criando raças que satisfazem os nossos caprichos, os enjaularmos e exibirmos como objetos de diversão, os usarmos para descarregar neles ódios e frustrações, os submetermos a torturas indescritíveis na pesquisa científica, os privarmos mesmo do direito à existência provocando a extinção de espécies inteiras.
Muitos povos, partindo do princípio da sacralidade e da dignidade de todos os seres vivos sem exceção, desconhecem aquela hierarquia. O caso mais conhecido são os hindus, mas há outros. Em certas culturas tradicionais, de cada vez que se mata um animal para alimentação ainda se faz uma cerimónia em que se lhe pede desculpa por esse ato repleto de cinismo (como lhe chamou o filósofo edgar morin) que consiste em tirar a vida a um ser para a dar a outro. Nós consideramo-los um estorvo à expansão e à loucura humanas, enclausuramo-los em campos de concentração a que chamamos jardins para os protegermos da sua única ameaça, nós próprios, e em nome da ciência fazemos com eles muitas coisas que têm a marca da arrogância e do preconceito antigo. Inclusive, as relações na aparência mais benignas exibem aquela atitude preconceituosa básica. Passará pela cabeça da malta do pan que a expressão “animais de companhia” assume que o papel deles é satisfazer uma necessidade humana sem que alguma vez a sua vontade seja tida em conta? Por mais que os apapariquem, ocorrer-lhes-á que obrigá-los a vegetar em apartamentos significa negar-lhes o direito à liberdade no seio da natureza e de acordo com as suas leis? Quais serão os seus sentimentos sobre isso? O que nos diriam se os pudessem exprimir?
Tal como muitos outros, os Irwins são sem dúvida sinais de civilização, mostras de que a consciência e o desejo de proteger estão a despontar. É melhor que nada, e por este andar talvez um dia se venha a pedir perdão à bicharada por tanto abuso, como agora se faz com os descendentes dos escravos. Mas eles parecem-me fazer parte de uma vaga de gente citadina “ambientalista” que não consegue abrir mão de nenhum conforto material, coleciona sempre mais e mais objetos inúteis, venera as mil bugigangas oferecidas pela tecnologia moderna e disfarça através do “protecionismo” extremista o remorso de precisar de três planetas para sustentar o estilo de vida que leva.
Também tenho muito respeito pelos animais e sinto um enorme peso por ainda não ter conseguido deixar de os comer. Tirando esse pecado, sou dos que param na estrada para enxotar uma lebre que se me atravesse à frente do carro (o que já aconteceu várias vezes) e incapaz de fazer mal a seja o que for que mexa, até mesmo a uma mosca exasperante. Mas acho que eles passam bem sem declarações de amor piegas e dispensam absolutamente ser tratados como pessoas. Aliás a nossa ação só os pode prejudicar. Tirando os que são um produto do nosso egoísmo e não sobreviveriam sozinhos, os que ainda são livres só precisam de nós para que os deixemos em paz. E isso pode começar, por exemplo, por recusar o dogma segundo o qual a população humana deve aumentar de forma desregulada como tem vindo a acontecer. É a maneira mais eficaz de não invadir os seus ecossistemas e de os deixar lá sossegados com a menor intervenção possível da nossa parte.
(Nordeste - set. 2020)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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