domingo, 20 de agosto de 2023

O meu tipo inesquecível

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Nos finais da década de 1950 surgiu na minha rua uma família de gente d'ó p' raí abaixo com três elementos: Uma filha da qual esqueci o nome, uma Senhora, sua mãe e o pai que era um pouco mais velho do que a mãe.
Chegaram de malas na mão um tanto acabrunhadas e foram instalar-se na casa que após eles partirem foi ocupada pelo Snr. Garrido e família.
Estávamos no Pontão e foi para nós grande surpresa, pois o aspecto dessa gente era mais cuidado que o nosso que éramos pobres e só em certas ocasiões, muito raramente, vestíamos fatiota nova.
A família instalou-se e concluímos que era quase uma honra tê-los como vizinhos. A Senhora falava com todos nós e a filha que era um pouco mais velha do que eu era também simpática e comunicativa, o que ocasionou que depressa eles estivessem à vontade e nós os víssemos como gente de bem e bons vizinhos.
O pai trabalhava no Palácio onde estavam instaladas as Corporações e Previdência, dizia-se que por ordem do Ministério que o castigou com a mudança de domicílio para o fim do mundo. Era um homem de muita educação e um fumador inveterado. Sempre de fato e gravata vestia camisa branca e tinha um andar como que desarticulado, pois os seus movimentos eram lentos e como que geométricos. Era para nós uma surpresa que ele andasse na rua com o braço direito sempre afastado alguns centímetros do torso. A mão aberta e os dedos separados e com um movimento que fazia crer que ele tinha um mecanismo que o obrigava a caminhar assim. De fato e gravata e sempre com o cigarro na mão, com a dificuldade em controlá-la, era uma figura digna de um retrato que eu desejava possuir pois era algo que eu não estava habituado a ver.
Não era um homem como os outros da minha rua. Era sim um gentleman que nos dava os bons-dias ou as boas-noites com ar afável e conciliador. Era patente que este homem sofria de qualquer doença física que o condicionava e o estava a tornar dependente. O seu esforço e o seu porte e a dignidade do seu rosto mostravam que era homem de sofrimento mas sempre disposto a conversar com quem o interpelasse e com um discurso fluido e culto era para mim alguém que tinha sido marcado pelas vicissitudes que aniquilam os homens e por arrasto também as famílias.
A verdade é que dada a sua idade e o que levou à família a regressar às origens foi mais que provável que tivesse cumprido o seu tempo. 
Para mim o Snr. CAPELA, era este o seu nome, foi um homem do seu tempo que deixou marcas na minha educação, já que sem ordem específica, com a sua calma e dignidade me transmitiu ideias que têm sobrevivido todo este grande espaço de tempo que medeia entre a minha meninice e a minha velhice. Creio até que partilho com ele o mesmo tipo de doença, Parkinson Desease, que tento debelar e me trouxe à lembrança do meu tempo de Caleja do Forte.
Da esposa e da filha nunca mais soube onde foram viver, dele soube que faleceu há já muito tempo.
Foi uma boa recordação que hoje relembrei e que dedico aos demais caleijenses que se recordem de uma Senhora dos seus 45/50, aquele tempo, de sua filha, aluna da Escola Industrial que teria 15/ 17 anos naquele tempo e que vestiam igual, ou semelhante, à tia Cândida Mirandela bem assim como à Mãe dos Louceiros que nunca deixou de usar aquela roupa garrida das mulheres do Minho.



Bragança, 20 de Agosto de 2023
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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