quinta-feira, 2 de maio de 2024

Amo(-te)

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


Amo.


Amo essa coisa fabulosa que escuto de nós nas páginas do livro que escrevemos juntos. O contorno dos dias que persistem amargos mas que não deixamos tremer porque, com os olhos húmidos de força, empurramo-los contra as paredes dos espaços e fragmentamo-los como cascas secas por cima das raízes que soltam as escuridões.

Amo os instantes espantosos que faltam ao coração do mundo e que, juntos, tornamos ambiciosos. Deles fazemos segundos, vestidos com a essência de um milagre. O que os outros desconhecem por nunca se terem descoberto no mergulho pleno das coisas simples.

Temos dedos que são ternura aconchegante na neve fria que o passado nos deixou.

Por que haveríamos de chorar se todos os abraços que damos aquecem o sangue dessa alma que nos pertence?

Por isso nos rimos, tantas vezes, nos dias de cor que são escuro vazio lá fora.

Amo esta franqueza cúmplice isenta de mágoas onde preferimos deitar-nos, com a proximidade compreensiva de quem já alcançou a lição superior da sabedoria.

E amo ainda o silêncio de uma tarde adormecida quando o fogo não arde no corpo. A sombra do mar a guardar conchas desertas sobre a palma das nossas mãos. Tão surdas de beleza! Mudas daqueles versos a que só o olhar consegue dar voz. Porque também há silêncios assim, ancorados no peito, nus, que nos respiram fundo, que nos levam longe, com os olhos inundados de gritos inconfessados.

Sabemo-nos e não julgamos: cada um tem em si um mundo inviolável e uma casa única feita de muitas páginas, que se arrastam no compasso do tempo.

Compreendemos e não precisamos de desvendar. Afinal, somos felizes agora com tudo o que nos beija os sonhos. 

Partilhamos o caminho descalço sobre os ombros da vida, na rejeição do tanto que não nos tenha sabor. Só para não corromper a definição delicada do que chamamos, hoje, de felicidade.

Sim, meu amor, amo a sedução da valsa que dançamos em uníssono como uma memória viva de um sol antigo que não entendemos.

Talvez o sorriso nos conte, um dia, que são apenas detalhes invisíveis de uma formidável repetição recriada pelo infinito e pela indelével fragrância que perdura além do impossível.

Amo-te.

Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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