Há mais de um século que as pessoas procuram a Arca de Noé, que sobreviveu ao dilúvio bíblico. Os arqueólogos dizem que é uma caça aos gambuzinos.
A Arca de Noé é uma das histórias mais conhecidas e cativantes do Antigo Testamento. Depois de criar os seres humanos, Deus ficou tão desagradado com eles que lançou uma cheia global sobre a Terra para os eliminar - com uma excepção digna de nota, capaz de fazer ao mar: o patriarca bíblico e a sua família, acompanhados por casais de cada um dos animais do planeta, que navegaram sobre as águas do dilúvio num enorme navio de madeira.
Para quem aceita o texto religioso como um relato historicamente fidedigno dos acontecimentos reais, a busca de evidências arqueológicas da arca é igualmente cativante, inspirando alguns crentes intrépidos a vasculharem as encostas do Monte Ararat, em busca de vestígios do navio de madeira.
Em 1876, por exemplo, o advogado e político britânico James Bryce subiu ao Monte Ararat, onde, segundo os relatos bíblicos, a arca repousa, e afirmou que um pedaço de madeira que “cumpre todos os requisitos do caso” era, na verdade, um pedaço do navio. “Descobertas” mais modernas da arca ocorrem regularmente, desde o relato de um optometrista que afirma tê-la visto numa formação rochosa no alto da montanha na década de 1940 à afirmação de uns pastores evangélicos que dizem ter encontrado madeira petrificada no pico no início da década de 2000.
No entanto, as buscas pela arca despertam todo o tipo de reacções, desde o desespero ao desdém de arqueólogos académicos e especialistas bíblicos. “Nenhum arqueólogo legítimo se aventura nisto”, afirma Jodi Magness, exploradora da National Geographic e arqueóloga da universidade da Carolina do Norte, em Chappel Hill, sobre as expedições modernas em busca de evidências relacionadas com Noé.
“A arqueologia não é uma caça ao tesouro”, acrescenta. “Não é sobre encontrar um objecto específico. É uma ciência em que somos confrontados com perguntas de investigação para as quais esperamos encontrar resposta através das escavações”.
Cheia ou ficção?
Histórias sobre cheias devastadoras e aqueles que lhes sobreviveram podem anteceder a bíblia hebraica, cujas partes mais antigas se pensa terem sido escritas no século VIII a.C. Lendas sobre um dilúvio ordenado por uma divindade sobrenatural que destrói a civilização podem ser encontradas em diversos textos mesopotâmicos, desde a Epopeia de Gilgamesh, composta por volta do início do segundo milénio a.C, a uma tabuinha cuneiforme babilónica recentemente decifrada datada de cerca de 1750 a.C. descrevendo como a arca foi construída.
Poderão estas cheias mitológicas basear-se em factos? “Parecem, de facto, existir evidências geológicas de que houve uma grande cheia na região do Mar Negro há cerca de 7.500 anos”, diz Eric Cline, explorador da National Geographic e arqueólogo na universidade George Washington. Contudo, os cientistas discordam sobre a dimensão desse evento, da mesma forma que os historiadores daquela época divergem quanto à possibilidade de essas histórias sobre um dilúvio terem sido inspiradas na vida real. Parece mais provável que as cheias tenham simplesmente ocorrido em locais diferentes e em alturas diferentes – e que esses eventos tenham, naturalmente, chegado ao folclore oral e escrito do mundo.
Para complicar ainda mais a questão, os especialistas divergem quanto à localização exata da Arca de Noé segundo a bíblia hebraica. No Livro do Génesis, a arca atracou “nas montanhas de Ararat”, localizadas no reino ancestral de Urartu, uma zona que inclui actualmente a Arménia e partes da Turquia ocidental e do Irão - não apenas o pico icónico actualmente conhecido por este nome.
“Não há como determinar o local exacto onde isto ocorreu no Próximo Oriente”, diz Magness.
Tanto Cline como Magness dizem que, mesmo que artefactos da arca tenham sido, ou venham a ser encontrados, nunca poderão ser ligados a acontecimentos históricos de forma conclusiva.
“Não temos como situar Noé, saber se ele realmente existiu, nem a cheia, se realmente ocorreu, no tempo e no espaço”, diz Magness. “A única maneira de conseguirmos determinar isso seria termos uma inscrição antiga autêntica” – e, mesmo assim sublinha, tal inscrição poderia referir-se a outro Noé ou a outra cheia.
Tal não impediu a proliferação de pseudo-arqueologia que defende a Bíblia como uma verdade literal. As demandas infrutíferas estão frequentemente associadas a defensores do “criacionismo da Terra jovem”, crença segundo a qual, apesar de provas em contrário, a Terra só tem milhares de anos de idade.
As mesmas provas, conclusões muito diferentes
Estes grupos baseiam-se em evidências arqueológicas seculares para sustentar a sua interpretação literal das escrituras – e limitam-se a ignorar ou a tentar desacreditar evidências em contrário. No entanto, nem todos recorrem às mesmas tácticas. Answers in Genesis, um auto-denominado grupo apologético que se concentra em questões científicas e até gere um parque temático de diversões dedicado a Noé no Kentucky, reconhece a omnipresença de mitos relacionados com cheias para além da história sobre Noé incluída no Antigo Testamento e até admite que a arca poderá nunca ser encontrada.
“Não esperamos que a arca tenha sobrevivido e esteja disponível para ser encontrada passados 4.350 anos”, diz Andrew A. Snelling, geólogo e director de investigação da Answers in Genesis, que passou décadas a tentar provar a Juventude da Terra.
No entanto, Snelling diverge dos arqueólogos quanto à razão pela qual os vestígios do navio nunca serão encontrados. “Na ausência de árvores adultas para Noé e a sua família construírem abrigos depois de terem desembarcado da arca, temos todas as razões para crer que a tenham desmantelado (uma vez que já não precisavam dela) para usar a sua madeira”, afirma. Embora o grupo não descarte a possibilidade de um dia encontrar a arca, Snelling lamenta aquilo a que chama “afirmações questionáveis” feitas por pessoas que procuram a arca que “prejudicam o potencial impacto de uma verdadeira descoberta”.
Para Magness, que dirige atualmente escavações numa sinagoga da época romana tardia na Galileia, a busca pela arca não só confunde o público, como diminui o entusiasmo sobre descobertas arqueológicas concretas, incluindo as que sustentam narrativas bíblicas, como a existência da Casa de David.
“Sabemos muito sobre o mundo bíblico e isso é muito interessante”, afirma.
Esclarecendo a questão
Segundo Cline, parte do problema é o público ter expectativas irrealistas sobre a disciplina da arqueologia – e os meios populares de comunicação social realçarem a emoção da perseguição em vez da lenta acumulação de conhecimento arqueológico. “Não somos como o Indiana Jones”, diz ele. “É um processo científico. É moroso. Mas aquilo que nos entusiasma não entusiasma necessariamente as outras pessoas.”
Cline conta ter investido bastante tempo e energia a tentar refutar as alegadas provas bíblicas que encantam o público ano após ano quando era mais novo. Por fim, acabou por desistir e actualmente dedica-se às suas expedições e a traduzir o seu trabalho de investigação para aqueles dispostos a aceitar os resultados do processo científico. “As pessoas vão acreditar naquilo que quiserem acreditar”, diz suspirando.
Isso não deverá mudar tão cedo, por isso ele vai-se concentrando em desenterrar um palácio canaanita do século XVIII a.C em Tel Kabri, no actual norte de Israel. Após uma pausa no trabalho de campo relacionada com a pandemia, ele espera regressar no próximo Verão para continuar a escavar um chão estucado pintado no sítio da época do antigo testamento. “Para nós [este chão] é incrivelmente importante porque mostra a existência de relações internacionais e contactos há quase 4000 anos”, afirma.
“Não é a Arca de Noé, mas é um chão pintado”, diz o arqueólogo, “e isso é suficientemente bom para mim”.
Sem comentários:
Enviar um comentário