segunda-feira, 23 de abril de 2012

Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.


Pedro Afonso
Médico psiquiatra

Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no Público
Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.
Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas perturbações durante a vida.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência, urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das crianças e adolescentes. 
Neste redil de insanidade, vejo jovens infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem.
É natural que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos, criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100 casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa, deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de alimentos.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.
Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três anos.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual, tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês, enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à actividade da pilhagem do erário público...
Fito com assombro e complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando já há muito foram dizimados pela praga da miséria.
Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs deum povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.
E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente.

2 comentários:

  1. Reflexões de um homem que tem a experiência do estado da saúde mental deste país. Não é por acaso que a depressão é segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) a doença do séc. XXI.

    As expetativas goradas, a competitividade, e a precaridade do trabalho e as exigências que a sociedade dita moderna nos vai impondo são fatores que contribuem para a evolução negativa do nosso estado mental.

    Viemos biologicamente equipados para nos defender, pela fuga, do Tigre dente de sabre há milénios desaparecido, (reflexos incondicionados( mas não tivemos ainda tempo de fazer a adaptação à conta da luz, da água e de outras coisas que a sociedade nos vai apresentando!!!!. A adaptabilidade é algo de essencial para uma boa saúde mental.

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    1. O artigo do Psiquiatra Pedro Afonso é uma intervenção técnica e humanista exemplar quanto á gestão desumana, economicista, predadora, castradora que é realizada pelas élites económico-políticas que, actualmente, tomaram conta do nosso planeta azul. È evidente que 1984 de George Orwel, foi antecipado. José Saramago falou disto no seu discurso de entrega do Nobel. Obrigado, Dr. Pedro Afonso pelo seu testemunho. Era bom que os nossos governantes fossem humanistas e não corruptos, que as elites fossem humanistas e não gananciosas. A vida de milhões fosse mais importante que as agências de rating que são pertença dos maiores bancos internacionais.
      Em Portugal, a situação é a mesma, saíu-nos um Coelho depois de um Sócrates, e é o que se vê. Bastava taxar em
      20% as os 20/25 que mais têm no nosso país e Portugal sairia do embróglio em que os mesmos (élites político- económicas) nos lançaram, fomentando os empréstimos, o consumismo, tudo para eles enriquecerem. Economia de Casino!
      A democracia política deve ser económica e social.

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