segunda-feira, 12 de agosto de 2019

A sensatez da pobreza


Lentamente, a aldeia despertava. Aos primeiros raios de luz, já Diamantina arrastava os tamancos pelas pedras torpes da Rua do Povo. Não se fazia velha na cama, acordava com as galinhas e não merecia a pena estar ali a dar voltas à cabeça “ a pôr-se maluca”. A vida era aquilo. Nascera para servir. Não dera para os estudos. Aprendera a ler e a contar à custa das palmatoadas da professora Irene. Na altura chorava-as todas, hoje agradece-as. Foi graças à insistência da mestra-escola que hoje podia ler as cartas da Segurança Social e da madrinha, que todos os anos, lá pelo Natal, escrevia da América. De leituras, estamos conversados. De contas, vai exercitando todos os meses ao esticar a reforma para os medicamentos e outras precisões.

Nunca casara. Não se lhe amanhou a coisa. Achava sempre que os pretendentes a não mereciam, ou porque bebiam demais, ou porque gostavam pouco de trabalhar, ou porque se iam embora ou porque, e essa era a verdadeira razão, não tinha tempo para namoros. Ainda Diamantina era moça quando a professora Irene foi falar com o Arlindo e Benedita, pais da catraia. Diamantina era a mais nova duma irmandade de nove. Em casa, fome não havia mas fartura também não. Caldo de couves e um cibo de pão aconchegavam o estômago. Fartura só no tempo dos figos, a caminho da escola enchia-se a barriga. Por vezes, o pai Arlindo pescava uns peixitos no ribeiro e lá se fritavam num óleo já queimado e requeimado mas que sabiam pela vida. Também no tempo deles, na caruma dos pinheiros se apanhavam cogumelos, durante muitos anos foi o que mais parecido com carne se comeu. E foi por este cenário, nem rico nem pobre que a professora Irene falou com os pais da Diamantina:
- A rapariga não aprende e anda eslaraitada. Vai lá para casa. Alimento-a, visto-a e educo-a. 
A mãe concordou logo, era menos uma boca, menos uma ralação. O pai custou-lhe mais. Era apegado à rapaza. Gostava dela. Era respondona e alegrava os serões lá de casa. Mas a mulher que decidisse. Encolheu os ombros e foi-se para a taberna jogar às cartas. E assim se traçou o destino da Diamantina. Passou a viver em casa da professora Irene que nunca tinha casado, não por falta de vontade mas porque não arranjara homens de rendimentos semelhantes, como exigia o Regime. Funcionários não os havia e lavradores ricos, muito menos. A aldeia era pobre, riqueza só de fragas. Os homens novos estavam todos para as franças. Os anos foram passando e Irene foi perdendo a ideia, foi ficando rude de modos e desmazelando o corpo e as vestes. Vivia para a escola. Todos os finais de tarde levava para casa quatro ou cinco alunos, os mais atrasados na cartilha. Os exames da 4.ª classe não tardavam e era necessário prepará-los. Para Diamantina, a escola durava todo o dia… precisasse ou não precisasse. Depois, ao fim do dia, esfalfava-se na lida da casa. A caridade da professora terminava quando era necessário limpar a casa, ir à água, esfregar o soalho, fabricar a horta e outras tarefas. Não restava tempo. Ao final do dia, enquanto a celibatária se deliciava com as radionovelas da telefonia, Diamantina fazia os trabalhos de casa ou estudava para a catequese. Os dias eram sempre iguais, as noites intermináveis. Uma vez por mês, a biblioteca itinerante trazia livros. Às escondidas da tutora e com a conivência do funcionário da Gulbenkian requisitava os romances de Corín Tellado, amores de cordel, cheios de peripécias e que tornavam as noites longas e frias, um pouco mais aprazíveis. Só em sonhos viveria histórias parecidas. Os benefícios do amor não estavam guardados para a Diamantina. Feita a 4.ª classe, ainda se pôs a possibilidade de continuar os estudos na vila. Ninguém fez grande questão, por ali continuou a servir.
A vida era o que era. Não era do seu timbre lamentar-se. Feitas as contas e relevando os modos de vida de antanho, tinha aquele poucochinho de suficiente. Vivia ao ritmo das necessidades da tutora, aposentada entretanto. Além de criada, era uma espécie de dama de companhia. A velha mestra gostava de ouvir histórias de livros antigos que Diamantina lia repetidamente. Histórias de outros tempos, tempos de respeito como gostava de frisar a jubilada. Diamantina nem sempre concordava com as ideias conservadoras da professora Irene mas tinha de dizer que sim senhora, que tinha toda a razão. Diamantina, com a sua maneira servil, foi conquistando as boas graças da proprietária de muitos e bons prédios da aldeia de Pedreiral. Por esta altura, já estava habilitada como herdeira. Por vontade da tutora, a menina moça criada, herdaria o seu património que, não sendo de monta, lhe traria algum conforto pela vida fora. Assim estava previsto. Acontece que um dia, o Dr. Teodósio, Solicitador com escritório montado, tinha estado à conversa durante mais tempo que o habitual. Entrara em casa da professora afogueado e sairia mais abatido do que o habitual, recusando mesmo os bolinhos de coco e o porto licoroso que Diamantina oferecera. A professora ficara sozinha, ouvindo-se um choro soluçado e um renhir entre dentes quase impercetível. Diamantina não sabia o que se passara, mas coisa boa não seria pois nos dias seguintes, a patroa mantivera-se fechada no quarto não querendo sair, abrindo exceção para o terço radiofónico. Pouco tempo passado, morreu. Como todos os dias, às seis da tarde, ouvia o terço na Rádio Renascença. Finou-se com o rosário nas mãos.
Diamantina chorou a morte da tutora. A dor não era profunda pois sentia que as benfeitorias da professora Irene tinham sido pagas com a força do trabalho de longos anos. No dia seguinte, acordou proprietária. Antes de abrir os olhos, naquele lento voltar, pensou como seria o acordar dos ricos. Deixou-se ficar por uns momentos para perceber a diferença. Estranhamente, não sentiu especial alteração. Doíam-lhe na mesma as cruzes, as mãos adormeceram-lhe durante a noite e continuava pitosga pois, sem o auxílio dos óculos de massa, não vislumbrava as horas no despertador.
- Talvez não seja assim tão diferente ser rico! – Pensou.
Levantou-se. Não teve de aquecer água para o banho da senhora, nem esfregar-lhe as costas, nem cortar-lhe as unhas dos pés. Fazia-o por inerência de funções mas estava farta das rotinas de muitos anos. Estava cansada dos monólogos cheios de razão da patroa, das ideias conservadoras, dos tiques autoritários, das visitas de conveniência e da obrigação das orações. E também do trabalho dos campos, sempre às ordens da patroa e aos mandiletes do caseiro. Hoje a Diamantina proprietária não tinha de se preocupar com essas rotinas. Hoje seria ela a dar as ordens. Havia só um pequeno senão, não tinha a quem ordens dar. Para resolver a limitação do exercício do poder, mandou chamar uma das irmãs que casara com um contrabandista, ausente quase sempre e muito fugidiço por causa da Guarda. Não tinham filhos, dizia-se na aldeia que o homem era machorro e por isso a ausência de cria, muito conveniente para Diamantina. Depois de proprietária era agora patroa. À irmã, agora sua criada, destinou-lhe os seus antigos aposentos:
- Ficas bem aqui!
- Falavas tão mal do quarto, dizias que era frio e húmido. – Alvitrou a irmã.
- Impressão tua, abres as janelas e arejas isto todos os dias. Ficas bem. – Atirou a Diamantina patroa.
A irmã, agora criada, encolheu os ombros, e com pouca convicção acenou a cabeça em concordância.
Dadas as ordens do dia, sentou-se na poltrona da antiga patroa. Sentiu-se bem. Mandou vir um chá de hipericão e deitou uma olhadela à correspondência. Da meia dúzia de cartas, uma do Fonsecas & Burnay, chamou-lhe a atenção. Foi nessa que pegou. Abriu-a. Leu-a:
“ Informa-se Vossa Ex.ª de que fomos contactados pelo Senhor Alberto Santos, residente no Brasil, apresentando este, certidão de nascimento, certificando ser filho da falecida D. Irene Santos e de pai incógnito. Pela presente, fica Vossa Ex.ª desabilitada a poder movimentar as contas de D. Irene Santos.
Com os melhores cumprimentos
Cosme Vilarinho
(gerente) “
Dobrou de novo a carta e meteu-a no envelope. Levantou-se, dirigiu-se à cozinha e disse à irmã, efémera criada:
-Deixa estar, eu faço o chá.





Rui Machado

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