(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
É sabido que o venerando Abade de Baçal, era um homem douto, mas de caráter simples, e dizem que tratava com todos de igual maneira, fosse o interlocutor homem ou mulher de posição, fossem eles simples gente do povo que pela sua rudeza e falta de letras ele porfiava por esclarecer com a sua capacidade pedagógica e humanista.
Sabemos que quando preparava as suas Memórias, teve que enfrentar a hostilidade de gente com poderes bastantes para o impedirem de o fazer, tendo ele, com o apoio dos que constituíam o Grupo dos Amigos de Bragança, ao enfrentar tais poderes retrógrados, abrido um precedente para o esclarecimento universal sobre a questão dos "marranos" e consequentemente dos Judeus no Nordeste Transmontano.
A Câmara Municipal há uns anos atrás mandou reeditar este autêntico monumento cultural e eu fui convidado a adquiri-lo, proporcionando-me assim ocasião de ler o prefácio ao V volume, que pese toda minha ignorância sobre o tema, me parece, ter sido das coisas mais esclarecedoras que eu li sobre o que é e o que contribuiu para a humanidade, a obra civilizacional do povo hebreu. A minha admiração pelo Abade de Baçal, que não conheci pessoalmente e o meu relacionamento, franco e respeitoso com o meu sogro, proporcionaram-me ocasiões várias que aproveitei para que a minha ideia, que era sobretudo de admiração cultural, se humanizasse e passasse a ver o Abade como o aldeão que era mas possuidor de uma capacidade de comunicação inequivocamente superior ao vulgar dos clérigos que mais das vezes não iam além duns padre-nossos na Igreja e umas quantas bacoquices cá fora. Cito alguns dos pormenores que hoje me recordo do meu sogro, que para quem não saiba se chamava Acácio de Barros e era pessoa benquista na cidade, sendo a sua "nomeada " de guerra, Cacinho Judeu.
Sapateiro de profissão era conhecido pelo seu bom feitio e por descender de antigos judeus que por força das circunstâncias se transformaram em cristãos-novos e por conseguinte se fizeram cripto judeus. Não negando a sua ascendência, casado e pai de filhos, deixou para a esposa, cristã-velha, a educação da prole no respeitante à vertente religiosa.
Afirmava ser ateu, o que não fazia convictamente, antes dando a impressão de uma verdadeira desilusão com a forma como em Bragança, sua terra há mais de quatrocentos anos, a questão da fé em um Deus que afinal era o mesmo para todos, era tratada, sendo a ignorância a primeira razão e a hipocrisia a mais evidente pois conhecendo ele as pessoas, sabia que a esmagadora maioria era descendente da mesma gente de onde provinha ele, apenas não assumindo se libertavam de um labéu que a ele não o diminuía, antes o honrava.
Em horas de conversa amena, que era uma das coisas que melhor o dispunham, abria-se um pouco mais comigo, contando- me algumas passagens da vida que fora sempre de contacto directo com o público e lhe havia proporcionado uma aprendizagem eclética e auto-didata não desprezível e sempre baseada num principio de igualdade entre toda a obra da criação.
Uma tarde de Verão ao acabarmos de jantar e naqueles momentos de relaxamento que ele apreciava tanto, falámos sobre o Abade de Baçal que conhecera suficientemente para se considerar numa escala justa de leigo para letrado, seu amigo. Era o Abade cliente assíduo do Soto do tio Dionísio, seu pai, onde o filho era oficial na arte de calçar e remendar o calçado de ricos e pobres. Disse-me que quando pela manhã bem cedo o Abade chegava ao cancelo do Soto, que invariavelmente estava encostado no trinco no inverno e escancarado no verão a sua presença era sempre de sorriso comedido e a sua saudação sempre jovial. Bons dias Irmãos semitas, dizia e todos os presentes respondiam, bons dias nos déia Deus.
Trago aqui umas botas que quero que lhes ponhais umas tombas, é que gosto tanto delas pois me dão um andar tão suave que nem por nada deste mundo me posso desfazer delas.
As botas normalmente já haviam sido reparadas algumas vezes antes e dizia- me o meu sogro já não tinham onde meter prego mas como davam um andar macio, que parece que ando no céu, dizia o Venerando Sábio, era mister procurar a melhor forma de dar bom andar a quem tantas léguas fazia para bem da humanidade. O Abade que era pessoa distinta sabia de coisas que o vulgar dos cidadãos nem sequer sonhava, bastava atentar na forma como os saudava de manhã : -Bons dias irmãos semitas, qual dos labregos dados a inteligentes que o ouviam sabiam o significado da palavra semita?
Num tempo de vida difícil e em que a mortalidade infantil era elevada aconteceu uma fatalidade mais no núcleo familiar do Cacinho Judeu, contou- me.
Após dois filhos pequenos haverem falecido de causas frequentes naquele tempo, garrotilho e tétano e passado já tempo bastante para a dor ser menor, eis que inesperadamente morre também já com nove anos feitos uma filha que ele tinha como a compensação dos dois perdidos e que ele tanto amava. Foi tempo de sofrimento atroz e também de questionamento que se lhe impunha dado o que ele considerava uma injustiça que o Ente Superior lhe impusera. Acontecera exatamente num dia de Consoada o que tornou o triste acontecimento mais dramático.
Era nesse Ente em quem ele colocava todo o seu ceticismo e constante culpabilização. Porque trata Ele, que dizem ser Pai, a uns como filhos e a outros como enteados?
Uma manhã em que estava já a trabalhar vê surgir na moldura da porta do Soto a figura modesta mas impositiva do Venerando Abade. Após a saudação costumada, o pai sofrido, enraivecido e cético, tomou coragem e dirigindo- se ao Abade pergunta e depois, quedando-se em pé com a obra na mão, espera pela resposta que acredita, será justificável para o acalmar:
- Porque trata Ele, que dizem ser Pai, a uns como filhos e a outros como enteados? O Abade demorou algum tempo a responder e quando sopesou o impacto que causariam as suas palavras disse: -- Quando Deus criou o Mundo, achou que faltava algo e cheio de boa vontade criou o homem e seguidamente deu-lhe a mulher. Multiplicaram-se e num certo tempo o Senhor notou que a maldade era muita que se estava tornando coisa intolerável para Si. Pensou então em castigar esta raça de ímpios e depravados que inadvertidamente se havia consubstanciado no oposto do que Ele idealizara. Não mandou chuva, nem raios nem coriscos.
Pensou então em fazer uma divisão invisível para nós e no topo fez um buraco que usou para "cagar" cá para baixo.
O impacto da resposta foi fulminante. O Cacinho sentou-se de novo e deixou de falar tendo-se remetido a um mutismo que lhe desse margem para compreender a metáfora que aos olhos e ouvidos de outros seria uma heresia. E concluiu:
1*) A resposta colocou a linha limite que se impõe à nossa intimidade com Ele.
2*) Quantos não sofreram mais do que tu estás sofrendo?
3*) O que Ele decide é imutável e nós jamais saberemos se em vez de um castigo não será uma recompensa que como humanos limitados jamais compreenderemos.
Resolvi hoje contar-vos esta história que me parece digna de uma análise de cada um de nós, no sentido de tentar compreender a razão que levou um Homem como o Abade a dar uma resposta tão contrária aos Cânones mas tão clara para estabelecer duas posições distintas entre duas condições inultrapassáveis. A d' Ele e a nossa. É caso para pensar em Apeles, quando respondeu:
- Não vá o sapateiro além da chinela.
Gaia, 18 de Agosto de 2019
A. O. dos Santos
(Bombadas)
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