quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Olhares que se emprestam

Da janela de minha casa vejo tudo. Vejo os carros que passam cruzando as ruas. Vejo pessoas que carregam vidas. Vejo cães a farejar os dias. Vejo uma pega, nervosa, das matas arredia, pousando nos arbustos urbanos pulverizados pelos tubos de escape. Vejo casas. Muitas casas. Com vidas dentro delas e com histórias de alegrias e tristezas, comemorando o passar dos anos mas também chorando as despedidas. Tudo acontece dentro das casas que vejo da minha janela. Não que eu as espreite mas porque as sinto próximas, como se estivesse no seu interior. Como se testemunhasse a sua construção. Como se lamentasse o seu declínio que o devir do tempo, tirano, vais esculpindo devagar.
Em pequeno, gostava de ver construir casas, acompanhar todo o processo, desde as fundações para os alicerces até aos acabamentos. Da janela da minha infância vivia o quotidiano das construções. O martelar compassado, o rodar engenhoso das betoneiras, o sobe e desce das gruas que tornam leves as cargas, o trabalho articulado, conjunto, hierarquizado mas harmonioso, a operacionalidade, o saber fazer a obra que nascia e crescia pouco a pouco. Adorava assistir ao frenesim ocupado dos dias em se “botavam” as placas e a mobilização dos homens que, unindo força e engenho, acrescentava, esculpia a obra. Nesses dias, enredava-me no trabalho das betoneiras que não paravam. Areia, cimento e água nas medidas certas. Mãos calejadas, certeiras, arremessavam a areia, depois o cimento e por fim a água. Os olhos fixavam-se no movimento hipnotizador, circular da boca da betoneira que girava, girava…
Transportava-me para a vida que estava por vir, tentando entender o fascínio que a evolução das construções exercia em mim. Não, não sou engenheiro. Ensinaram-me a construir conhecimento. Uso muitas ferramentas porque as obras que levo a cabo são muito exigentes. Exigem que me adapte, que me recicle e que contorne as contingências. Exigem que me organize. Que conheça as medidas certas da pedagogia e do conhecimento. Que saiba lidar com todos, respeitando os seus espaços e sabedoria. Ajudo a construir pessoas. Ensino-as a ler e dou-lhe uma ferramenta para toda a vida. Ensino-as a observar, a mexer, a partilhar, a respeitar e a ser. Com elas, construo-me. Juntos lemos, observamos, mexemos, partilhamos, respeitamos e somos. Juntos. Empresto-lhes o meu olhar. Aquele que via as casas crescer. Também vejo pelos olhos dos outros. É uma belíssima experiência usar o olhar alheio. Experimentar outras perspetivas. Por vezes, basta ver diferente para que a obra evolua. 
Há também o lado triste das casas que se desmoronam. As paredes que se empalidecem. Os muros que se fragilizam, desnudando os alicerces, debilitados também. Os telhados que ruem destapando interiores e segredos, expondo vícios privados. E quanto orgulho nas construções que se reclassificam! Estoicamente hirtas. Vigorosas. Renovadas. Aquelas que enganam o tempo. Dignas por tempo indeterminado! Sentimentos construídos de antagonismos. 
As longas horas que passei a ver construir casas, foram afinal a projeção do que viria mais à frente. Deve haver algum ramo do conhecimento que explique isto. Para mim são somente metáforas de vida. E já não é pouco.





Rui Machado

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