terça-feira, 4 de março de 2014

Torre de Moncorvo - Onde a pedra se veste com as flores

A viagem é desmesura de horizonte e terra áspera. À beira da serra do Reboredo, imenso maciço ferroso, encosta-se o concelho transmontano de Torre de Moncorvo. A terra é de vinhos com travo a Douro, de mesa posta com fartura e de excelente azeite e amêndoas. Um périplo primaveril por uma paisagem larga onde não nos escapam os pormenores como varandas de alpendres mimosos e campos pintados com brancas flores de amendoeira. Fora da sede de concelho, nas aldeias, o silêncio é revelador. Recorda-nos um dos dramas da interioridade, a desertificação humana.
As alturas da Serra da Gardunha, enorme dorso rochoso, avultam no horizonte. Em breve o Portugal dos relevos mansos que nos acompanha, há um par de horas, desde sul dará lugar às geografias abruptas da Beira Alta. A Gardunha não é, contudo, obstáculo. Os quilómetros de curvas que franqueiam as alturas foram substituídos por 1600 metros de estrada a prumo no âmago da serra. O horizonte confinado ao túnel abre-se, súbito, para um espanto cénico feito de natureza e de humano. Assome a desmesura da Cova da Beira, último recobro para os relevos antes do assalto à Estrela. A montanha sobe, no Inverno alcança as neves e, dias a fio, recolhe nas suas vertentes rebanhos de nuvens. Neste cenário, a Covilhã nos contrafortes das alturas, torna-se minúsculo testemunho erguido por mão humana. Apesar de nos tentar o tumulto em granito, a grande serra não passará desta vez de uma visão à distância. Apontamos caminho para Norte, ao longo da A23. O «x» marcado no mapa leva-nos a uma viagem longa, pela raia. A fronteira estará sempre a poucos passos.
Bem contados, passada a Guarda, são cerca de cem quilómetros até Trás-os-Montes. Torre de Moncorvo, o nosso destino, está longe mesmo para os parâmetros actuais de viagem e para uma geografia de distâncias modestas como é a portuguesa. Sucede-se uma paisagem de serranias de suster a respiração. Aos poucos acomodamo-nos à contemplação; a um certo hipnotismo de viagem. A rocha impera, embora com algumas concessões. Sobre as escarpas brota, frágil, a Primavera. As amendoeiras cobrem-se de delicadas flores, compondo um cenário que nos acompanha nos 18 quilómetros que medeiam entre as sedes de concelho de Foz Côa e de Torre de Moncorvo.
É numa curva apertada, sobre as alturas, que se revela o esplendor do Douro. Um rio de muitos e diversos humores serpenteando na paisagem impassível. Transpomos a barragem do Pocinho, próximo à confluência entre Douro e outro rio do Norte: o Sabor
Rio e serra. Está lançado o mote para a descoberta do concelho de Moncorvo.
Primeiras impressões:
Moncorvo começa a perceber-se nas curvas apertadas impostas pelos relevos próximos à serra do Reboredo. O casario, primeiro disperso, junta-se num aglomerado aconchegado nos contrafortes da serra. Há uma nota de modernidade em Torre de Moncorvo que contrasta com a paisagem intemporal. Não é, contudo, a Moncorvo da arquitectura contemporânea que nos instiga a visita. Queremos ir ao encontro de outras realidades; da terra das lendas, como a do lavrador Mendo e do seu tesouro guardado na torre.
Procuramos a Moncorvo da Igreja Matriz, templo desmesurada, o maior de Trás-os-Montes; dos labores artesanais; da amêndoa tratada com excelência; do azeite que se diz o melhor de Portugal, e, claro, da gastronomia e dos vinhos da região.
Primeiras impressões no centro histórico. Percebe-se o esforço de requalificação no casco urbano de origem medieval. Sobressai um troço da primitiva muralha do castelo mandado edificar por D. Dinis (séc. XIII-XIV). No casario sobressaem as varandas de alpendre, pequenas janelas de guilhotina, largos beirais; um misto entre o granito e paredes alvas. O centro histórico cresce em torno da imensa Igreja Matriz (século XVI), chamada de Nossa Senhora da Assunção. O templo é austero, maciço e de linhas severas. Dentro faz frio. Percebe-se na majestade da estrutura a ambição do tempo em que Moncorvo queria ser sede de diocese.
A amêndoa:
Procuramos o comércio. Percebemos que tem uma escala humana. Desperta-nos a atenção um espaço em particular, num edifício restaurado do Largo General Claudino. Na «Arte, Sabor e Douro» a pedra e a madeira dão ao ambiente um toque regional. Nas paredes expõem-se objectos de época ligados ao mundo rural, assim como gravuras. Estas trazem-nos um Moncorvo que dificilmente já encontramos. Por momentos afastamo-nos do presente. Fixa em imagens sépia está a paisagem rude, o rosto cavo das gentes, a singeleza das construções, as aldeias perdidas em recônditos. Marcas da dureza desta terra.
Detemo-nos nos produtos da região, passando os olhos pela selecção de vinhos, pelos enchidos, pelo azeite e pelas incontornáveis amêndoas não fosse Torre de Moncorvo um dos principais produtores nacionais. Estas amêndoas, cobertas, são um monumento às artes tradicionais. Queremos saber como se fazem. Visitamos Cândida Carvalho, uma «cobrideira». À conversa percebemos o trabalho de paciência que é a confecção destas amêndoas. A artesã labora frente a uma enorme caldeira em cobre. Sob esta um lume espicaça o calor. Mãos ágeis, obedecendo ao ritmo de braços que se agitam sem descanso, revolvem um punhado de amêndoas. Os dedos estão protegidos com dedais para minorar a dureza da tarefa. Perguntamos a Cândida Carvalho quanto tempo leva até compor as pérolas em açúcar com um coração de amêndoa. Responde-nos: «São oito horas por dia, durante um mês». Queremos saber mais: «primeiro é preciso descascar a amêndoa. Antes fazia-se com uma barra de ferro sobre a casca. Chamava-se a ´partidela` da amêndoa. Hoje é quase tudo mecânico. Depois, as amêndoas têm que ser peladas e torradas».
Sabores regionais:
Moncorvo faz boa mostra da doçaria regional com as Delícias, as Súplicas, os Económicos, os Biscoitos à Tia Patuleia, as cavacas. Surge, uma vez mais, a amêndoa, aqui servindo de recheio a alguns dos doces e combinando com outros ingredientes, como a chila, a canela e a noz.
O concelho também não esconde outras artes: os caretos, o ferro, as velas (com destaque para os cereeiros de Felgueiras), os tapetes e carpetes em lã de ovelha (da freguesia de Urros), as cestas de renda (de Carviçais).
Uma prova de resistência em torno dos doces não abate a vontade para uma refeição a pedir mesa larga. Chega um almoço que faz justiça à cozinha da região, desde as entradas até ao remate. Inaugura-se a mesa com uma alheira e um chouriço de carne assado. O prato principal fica por conta da carne de javali. Pelo meio deixa lembrança um queijo terrincho.
Mais tarde havemos de provar a Posta Mirandesa e uns peixinhos do rio fritos. Para outras visitas a Moncorvo fica, no rol dos apetites regionais, as favas guisadas com chouriço, as sopas de bacalhau, a caldeirada de cabrito, o cozido à transmontana, as linguiças, os chouriços azedos, os salpicões de cozer e de assar, os peixinhos assados e as migas de peixe. Perdoe-se a omissão, com consciência de tudo o mais que há a provar e que não coube nestas linhas.
Uma palavra ao vinho, não estivesse Moncorvo na Região Demarcada do Vinho do Porto. Queremos conhecer um pouco melhor a tradição vinícola no concelho. Visitamos a Oficina Vinária a funcionar num antigo lagar recuperado, bem próximo à Igreja Matriz. A epopeia dos vinhos durienses é, aqui, narrada através dos
instrumentos que fazem a sua história: as tesouras para podar as vinhas, as enxadas, o serrote para as cepas grossas, as panelas e malgas para servir o rancho, os cestos, os pulverizadores para a cura das vinhas, a máquina para pisar e esmagar uva, entre muitos outros objectos. A mostra completa-se com imagens ilustrando a actividade vinícola.
O ferro:
Ainda hoje é crença, entre as populações do concelho, que a Serra do Reboredo atrai as trovoadas. Há um fundo de verdade na convicção popular. Na serra repousa um dos maiores jazigos de minério de ferro da Europa, operando como um magneto para os relâmpagos. Calcula-se que sob a superfície repousem qualquer coisa como 670 milhões de toneladas de minério.
Não se estranha, como tal, a vocação de Moncorvo para a exploração do ferro, actividade que remonta ao período romano (ou mesmo antes). Se os anos 50 do século XX assistiram ao auge da extracção do ferro, a década de 80, por antítese, viu o fenómeno morrer. Fica hoje, como memória, o espólio em mostra no Museu do Ferro e da Região de Moncorvo. Um percurso que conta a história do ferro na região através de inúmeros artefactos organizados por temas: forjas, ferreiros e ferrarias; geologia e minas, impacto da Revolução Industrial em Portugal, entre outros.
Percebemos melhor a dureza de uma actividade feita pelas mãos de homens, mulheres e crianças, e que envolveu trabalhadores de todos os pontos do país e do estrangeiro. O transporte, em vagões pela linha do Sabor, até ao Pocinho. Dai em carruagem pela linha do Douro até ao litoral.
Para lá da sede de concelho:
O passeio espraia-se para lá da sede de concelho. A direcção é a típica aldeia de Felgar. A meia dúzia de quilómetros faz-se nas alturas, no planalto rente à serra do Reboredo. A Primavera que se insinua na paisagem é contradita pelo tumulto de nuvens que se encosta à montanha. O cenário não desilude. Os céus azuis podem esperar. A dureza do granito conjura bem com o cinzento sólido que corre o firmamento. À margem da estrada pastam pequenos rebanhos de ovelhas da raça Terrincha (ou Churra). Os animais correm, agitando o pelo longo. O clima, por estas bandas, pede um aconchego especial para os longos invernos. Hoje o frio não aperta e os campos onde desponta a giesta a esteva e o zimbro, não ganham o fio de gelo que, por vezes, permanece vários dias. As faias e os castanheiros, por enquanto despidos de folhagem, contrastam com algumas manchas de sobreiro de copa pesada.
Em Felgar deparamo-nos com bons exemplares da arquitectura popular. Apeamo-nos e percorremos ruas estreitas, traçadas num tempo antes do motor. Há um silêncio revelador, um sossego que, se por um lado nos agrada porque nos afasta de todos os afãs, por outro nos desperta para um dos dramas da interioridade. Este é um silêncio de despovoamento. Um concelho com mais de 500 quilómetros quadrados conta com pouco mais de 10.000 habitantes, três mil dos quais na sede de município. Hoje, Torre de Moncorvo tem quase metade da população que contava nos anos 50 do século passado. Aqui mesmo, a freguesia de Felgar, não conta mais de 1000 habitantes. Há pior: Urros conta cerca de 300 habitantes, Castedo pouco mais de 270 e Peredo dos Castelhanos uns escassos 140.
O Vale da Vilariça:
De Felgar apontamos ao vale. A descida é de tirar a respiração. Entre muros erguidos com xisto há alguma vinha a ganhar folhagem viçosa. O estio trará um sol generoso. Com ele a uva e, depois, a vindima. Longe, no fundo do vale, corre um fio de água. Trata-se do rio Sabor. A paisagem encavalita pedras e oliveiras, algum laranjal e tufos de amendoeira.
Finalmente o rio. O fio de água à distância cresceu com a proximidade e, aqui, junto às margens corre com fulgor. A corrente límpida e fresca junta-se, alguns quilómetros à frente, ao gigante Douro.
Queremos ir à confluência entre os dois rios. Percorremos o fértil Vale de Vilariça (merece a subida ao Miradouro de São Gregório para uma panorâmica da região), bênção para estas terras duras. Os relevos descansam e, ao longo de 20 quilómetros, a paisagem plana desenha um xadrez de campos cultivados com fruta, hortícolas, cereais e vinha. A estrada espreguiça-se na língua de solo fértil, produto das “natas” de inundações passadas. As águas sobem quando o caudal do Douro, engrossado pelas chuvas, obriga o curso do Sabor a refluir para o vale. Chamam-lhes os locais a «Rebofa». Fazemos esta viagem de descoberta pelo Vale da Vilariça até ao limite, à localidade de Foz do Sabor, fronteira entre a terra e o rio Douro.
Na margem oposta desponta o Monte de Meão e a paisagem ganha jeitos de Douro Vinhateiro com as falésias cobrindo-se de patamares.

Fotos: Antunes Amor
in:cafeportugal.net

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