Sim, não sabia realmente nada do que ali se passava. Aquilo era de tal modo estapafúrdio, tão inverosímil que parecia de outro planeta... Pensando bem, divaguei, isto é outro planeta.
Muita lama, pneus a derrapar, a minha tia a dizer-me para cortar giestas para espalhar à frente dos pneus. Eu tinha, apenas, as minhas mãos nuas, geladas. Enterrava-me no lodo. Já não conseguia distinguir a cor das minhas botas. Não sabia que podia ser tão doloroso. Nunca me sentira tão desamparada. Finalmente, terreno seco, estrada quase caminho que nunca vira asfalto. Exímia condutora, a minha tia conseguia tirar partido da sua experiência.
"Estás triste? Foi complicado lá em cima. Desculpa! Magoaste as mãos? Quando chegarmos a casa vamos ver como estão. Vais ver que as coisas vão melhorar."
Anestesiada pelas incertezas que me invadiam o pensamento, cheguei a casa dos meus avós, acompanhada pela minha tia, noite escura, dezembro, quase janeiro, Natal, quase Ano Novo.
Tirámos as malas do carro, a minha vida em duas malas, que subimos com dificuldade pelas escadas rústicas de pedra, pedra mesmo, alisadas pelas muitas pessoas que por elas subiram e desceram ao longo dos muitos anos da sua existência enquanto degraus, que da sua outra vida nada sei e já não tenho quem me possa elucidar.
Ninguém me veio receber à porta por onde tremeluzia uma escassa luminosidade. "Ó de casa! Pai, mãe, já chegámos." Levei algum tempo a habituar-me à escuridão. Apercebi-me de que a pouca luz vinha de um pequeno objeto pendurado de um prego na lareira que, soube mais tarde, chama-se candeia. Apareceu a minha avó, magrinha, olhos azuis-acinzentados, lenço na cabeça, avental, vestida de inverno, sorriso tímido, olhar matreiro e doce...
Dela me falara o meu pai vezes sem conta, sempre com um orgulho indisfarçável na voz húmida e terna, imbuída de um amor sem reservas. Era, exatamente, como ele dizia, apenas mais velha.
"Então quem és tu, filha? Que saudades! Que alegria! Estás uma mulher! Bonita, bonita..." Tudo ao mesmo tempo, numa catadupa de emoções e abraços e beijos sem fim...
Vim a descobrir que a minha avó era uma mulher contida, reservada, serena como um outono sem vento. Tinha, também, um sentido de humor inteligente, uma inteligência ponderada e uma sabedoria que só o tempo pode dar, mesmo que já se tenha nascido sábio.
Pachorrento, desconfiado, apareceu o meu avô, cabelo branco, bigodinho no centro do lábio superior, olhos penetrantes, argutos... olhou para mim de lado, com um meio sorriso...
"Já cá estás? Chega-te ao lume que deves estar cheia de frio." Dei-lhe um beijo e um abraço, pegou-me no braço e arrastou-me com ele até ao lar onde crepitava uma valente lareira. "Senta-te naquele banquinho, quece-te."
Assim fiz, obedientemente. Só agora me havia apercebido da fogueira. Agradeci o calor. Olhei em volta e senti-me só. Tinha um enorme vazio no meu coração que nenhum calor conseguiria preencher. Faltavam-me os meus irmãos, o meu pai, a minha mãe... Faltava-me o meu mundo, o meu espaço... Teria feito bem?
Ficámos calados um breve momento, aconchegados pelo conforto do lume. Sentia todos os olhos pregados em mim a analisar-me como se me estivessem a ver pela primeira vez.
"Bem, vamos fazer o jantar. Haveis de estar cheias de fome."
"Não avó. "Não tenho fome nenhuma."
"Com fome ou sem fome, são horas de comer." Levantou-se e saiu do lar contornando o escano, acompanhada pela minha tia. Ficámos eu e o meu avô que me olhava insistentemente, inquisitivamente, como se eu fosse um fenómeno nunca visto. Não sei o que buscava em mim. Ouvi-me dizer que o meu pai mandava muitos abraços cheios de saudades e que agradecia por me receberem. Que sabia que cuidariam bem de mim.
"E os teus irmãos, são bons estudantes?"
"Sim, avô, muito bons."
"E tu, então, já és professora..."
Disse-lhe que sim, que agora era necessário tratar da equivalência para poder começar a trabalhar. Tinha trazido todos os documentos necessários para o fazer e queria que tudo se resolvesse rapidamente. Olhou-me com um ar desconfiado de quem tem algumas dúvidas.
"E a tua mãe? Tem andado boa? Na última carta que o teu pai mandou dizia que ela esta adoentada."
"Já está melhor. Tiraram-lhe a vesícula que estava cheia de cálculos e agora já nem parece a mesma."
"Melhor assim."
"Pai, ponha uma chouriça e umas alheiras na grelha. Vamos ver se a garota gosta."
"Gosto tia. No Brasil também comíamos alheiras. A minha mãe chegou a fazer algumas vezes com uma amiga portuguesa."
Apareceu com um pote que colocou ao lume. Bateram à porta e o meu avô, automaticamente: "Entre quem é!"
A porta, da mesma idade dos degraus de pedra, rangeu nas dobradiças, pesada como é. E rústica, muito rústica, de madeira maciça e negra como a noite onde apenas faiscavam as estrelas no céu. O ar que por ela entrou era cortante como lâminas.
"Graciano, és tu? Entra homem, entra e fecha a porta que está frio!"
"Vem aí a minha tia tio João."
No mesmo instante assomou à porta uma figura pequenina e magra, lenço azul na cabeça, um casaco maior do que o seu corpo necessitaria. Um sorriso desdentado mas doce como o mel e um ar de candura quase inacreditável. Soube que era a minha outra avô, mal olhei para ela.
"Entre tia Maria, entre que está frio."
Fui ter com ela e abracei-a. Dei-lhe um beijo e ela comeu-me com os seus. Senti as suas lágrimas quentes de alegria. Finalmente cumprimentei o primo da minha mãe e todos nos sentámos nos escanos da lareira, a minha avó agarrada a mim como se tivesse medo que eu fugisse.
A minha tia afadigava-se com as batatas e o meu avô ajeitava as brasas para colocar a grelha.
Muitas perguntas sobre os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai... Muitas respostas mal ouvidas. A minha avó era bastante surda mas entendia com o coração. O meu avô convidou-os para comerem connosco mas eles disseram que não. Já tinham comido. Ficaram mais um bocado e despediram-se, a minha avó com o coração no olhar que não desviava de mim. Abraçou-me mais uma vez e disse que voltaria "amanhã de manhã."
Saíram. Sentei-me no meu banquinho. Mente vazia e ao mesmo tempo repleta de pensamentos desconexos e emoções com as quais lidava com dificuldade. A minha avó Ana, sentada no seu tripé, observava-me. O meu avô sacava da sua Palaçoulo de bolso e cortava do lareiro duas alheiras e duas chouriças de carne. No pote ferviam as batatas...
Mara Cepeda
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(Henrique Martins)
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sexta-feira, 15 de novembro de 2013
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