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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 18 de março de 2014

Porque sou um australiano transmontano

Ao longo dos anos que vivi em Bragança todos se habituaram a este australiano que falava português, sem saberem mais sobre os meus antecedentes genéticos. Nem eu os tinha descoberto quanto mais os outros. Foi preciso aprender a ler nas entrelinhas enquanto se coligiam os dados para o Cancioneiro Transmontano editado em Junho de 2005 pela Santa Casa da Misericórdia de Bragança. 

Foi nessa época, enquanto lia testemunhos, lendas e contarelos de pessoas de díade avançada que redescobri essa origem transmontana que me andava arredada. Sempre soubera que a parte materna da minha família era dessa enorme ilha chamada Trás-os-Montes encravada no oceano dos sargaços e algas enleantes e viscosas chamada Portugal. 

Depois foi revisitar o baú das memórias e recriar os passos dados quarenta anos antes por aldeias, vilas, lugares e lugarejos perdidos na memória de tempos idos. Visitei-os a todos e raras vezes encontrei os coevos desses percursos da minha infância: a desertificação humana maciça e a longevidade haviam aniquilado as hipóteses de poder reconstruir essas memórias para além de um determinado ponto.

Poucos, dentre os mais velhos, existiam ainda para me falarem desses tempos e foi nalguns mais novos que reencontrei menções aos meus avós maternos. As aldeias pujantes e vibrantes de vida escrava nesse semi-feudalismo que era a Trás-os-Montes dos anos 60 do século passado haviam progredido: havia mais casas e maiores, mas as velhas casas estavam abandonadas, desertas e em ruínas. Das gentes sumira-se-lhes o rasto, perdidas na voragem consumista das grandes urbes no litoral. Desapareceram as e os velhos cafés tipo taberna que existiram, nalguns casos substituídas por lojas mais modernas e cafés mais higiénicos, mas noutros casos nem cafés havia já. Os poucos habitantes, todos septuagenários ou mais idosos, reuniam-se no adro das igrejas agora desertas e sem serviços dominicais, as escolas foram ocupadas por outros espaços com outras utilidades ou definhavam por entre a vegetação que se reapoderava dos seus terrenos.

Quis explicar à minha família como era a vida naqueles tempos idas na memória e no tempo e não havia como. A própria casa de meus avós estava abandonada e arruinada, e como ela tantas outras. Tive sonhos de a recuperar, de lhe fazer obras modernizando o interior e os confortos sem perder a traça original e a sua fachada oitocentista, mas apercebi-me que custava menos construir uma casa nova de raiz do que recuperar aquela. Além disso havia sempre o velho problema das partilhas familiares que se arrastam por décadas, pois todos querem sempre sacar mais uns míseros tostões aos vinténs que já têm. Assisti, com pesar, ao desmantelar dos velhos e senhoriais móveis da sala de jantar cobiçados por primos e primas das grandes cidades e ao atque da sobre tudo o que pudesse ser velho ou ter algum valor. 

Entretanto a vida tem de ser trabalhada onde existe trabalho e não onde as memorias e o respeito pelos antigos no-lo mandam. Dum dia para o outro deixei os sonhos de parte e embarquei para fora dessa ilha transmontana e fui desembarcar no meio do Oceano Atlântico. Mas guardei um discurso muito sentido que escrevi aquando do lançamento desse livro (de que tanto me orgulho) que é o Cancioneiro Transmontano 2005, lançado na Feira do Livro de 2005, faz agora dois anos. Creio que as palavras então proferidas foram sentidas até ao âmago e foi nessa altura que me senti transmontano dos quatro costados, apesar do pouco tempo contabilizado a viver na região, mas como alguém me ensinou a nossa pátria não é o lugar onde nascemos mas o lugar onde o nosso coração habita.

Os aborígenes australianos sobreviveram aos últimos 60 mil anos sem terem escrita própria, mas a sua cultura foi mantida até aos dias de hoje, pois assentava na transmissão via oral de lendas e tradições. Este é um dos exemplos mais notáveis de propagação das características culturais de um povo que nunca foi nação. 

Uma das coisas mais importantes que a Austrália me ensinou foi a tolerância pelas diferenças étnicas e culturais, e o facto de ter aprendido a conviver e a viver com a diferença. Sem aceitarmos estas diferenças jamais poderemos progredir, pois que só da convivência com outras etnias e culturas poderemos aspirar a manter viva a nossa.

Bragança é ainda hoje um distrito possuidor de um enorme acervo de peculiaridades étnicas e culturais, que o seu isolamento permitiu preservar e que derivam da influência de todas as suas colonizações. Esta antiga Cidade de origem neolítica, foi posteriormente um importante centro romano localizado na zona actual da Sé. Às invasões bárbaras sucederam-se as guerras entre mouros e cristãos que tantas tradições orais deixaram como podemos apreciar neste volume, e posteriormente a enorme influência marrana.

Quando aqui cheguei há 3 anos este foi um dos projectos que apresentei por entender que na cultura local, tal como em muitas outras regiões do país, falta o amor-próprio e o apreço à herança de cada um. Os movimentos populacionais exógenos e a atracção pelas grandes urbes levam ao menosprezo do que é mais peculiar e mais notório nesta região. Se houvesse uma verdadeira apreciação multicultural, pode ser que as gentes da terra tivessem maior orgulho no que lhes é único. 

Constatei com tristeza que das dezenas de cartas enviadas a responsáveis autárquicos pedindo apoio nas recolhas de material para o cancioneiro apenas tivesse recebido apoio do Sr. Presidente da Câmara de Bragança (Eng.º Jorge Nunes), do Sr. Presidente da Junta de Freguesia da Sé (Dr. Paulo Xavier) e do Sr. Provedor da Misericórdia (Dr Eleutério Alves). Foi com eles que parti para esta aventura que era a de compilar registos ainda existentes dos traços culturais autênticos da região.

Creio que a exemplo dos aborígenes australianos esta obra pode vir a perpetuar a cultura transmontana que hoje está em risco de desaparecer na voragem urbana progressista, no desagregamento da família dita tradicional e na importação de modas e hábitos estranhos.

A Bragança de hoje é irmã gémea da outra celta e romana, dela tendo herdado costumes, língua e artesanato, sempre marcados pela sua importância militar e estratégica mas sem jamais perder as suas raízes rurais.

Neste volume pretendemos fazer ouvir a nossa voz, através das memórias do passado para que não desapareçam as lendas e tradições que permitiram a Bragança ser uma terra onde se congregam esforços e iniciativas para manter viva a língua de todos nós, sob o perigo de soçobrarmos e passarmos a ser ainda mais irrelevantes neste curto percurso terreno. 

Quando aqui cheguei em 2003, sabia apenas que havia fortes laços de sangue que me prendiam a esta região. Com um avô materno Vimiosense há séculos, uma avó materna e uma mãe Alfandeguenses, recordava daqui as férias de infância passadas em terras da vetusta região de Bragança e Miranda. Havia primos e tios avós que contavam histórias de outros tempos, e tinham um falar diferente. 

Aprendi a liberdade de passear pelos campos até ao pôr-do-sol, montado numa burra ou num macho, sem peias nem fronteiras, por montes e vales, inspirando este ar puro, experimentando detalhes desconhecidos da natureza que a minha juventude urbana desconhecia. Em casa ainda não havia luz eléctrica que essa só chegaria depois do 25 de Abril, mas os campos já estavam plantados de postes de alta tensão. Das vindimas à apanha da amêndoa muitas foram as recordações que recuperei. 

Lembro-me de ver como no céu havia estrelas em número inaudito, estrelas que jamais se podiam observar nas poluídas abobadas das cidades portuguesas. Lembro-me do cheiro a feno na Eucísia, do chiar dos carros de bois no Azinhoso, dos cortejos pascais engalanados com as colchas penduradas nas pequenas janelas como seteiras abertas em paredes de grossa espessura. Lembro-me dos burricos e dos seus cântaros saltitantes a caminho da fonte, dos jantares à luz da vela e do sempre presente Petromax. As cavilhas na central telefónica do Sendim da Ribeira com doze números de telefones que se ligavam à loja ou venda onde tudo se comprava. E havia ainda as celebradas danças no salão dos bombeiros em Alfandega da Fé, e as festas típicas em honra do santo da aldeia, onde aprendi um povo que desconhecia. 

Na pequena e ora semi-despovoada aldeia da minha avó materna encontrei os rituais senhoriais ou feudais da família Gama (do engenheiro Camilo Mendonça) onde se ia prestar vassalagem quando ali chegávamos para férias, ansiosos de beber a fresca água da Grichinha, fonte milagreira em plena terra das feiticeiras. Revisito a imagem bucólica do Vale da Vilariça antes da barragem, quando da varanda de casa me deleitava com ela enquanto devorava os livros de Jules Verne. 

Vi rostos e tradições do tempo dos Cristãos Novos, ainda hoje envergonhados da sua herança marrana. Há cinquenta anos, ainda existia a vergonha de se dizer que se descendia dum abade, cónego ou padre, tão comum a tantas famílias da região, numa mescla de respeito, medo e veneração ao cristianismo que se impusera primeiro aos mouros da rica Alfandagh, para depois ser temporariamente substituído pelos judeus que fizeram desta uma zona bem rica, antes de sofrerem os efeitos da conversão forçada e a clandestinidade, quando não a morte, o exílio ou a Santa Inquisição.

Conheci capelas, vi santos milagreiros em altares cobertos de ouro, andei em procissões e fui a missas onde os importantes da terra tinham as suas cadeiras próprias reservadas em pleno altar. Tomei banho em tanques improvisados e provei frutas desconhecidas. Fiquei sempre com esta recordação destas terras e destas gentes e ela me acompanhou no périplo de mundos e na diáspora que me levou a passar metade da vida no Sudeste Asiático e na Australásia. Essas eram, aliás, as únicas recordações agradáveis que levava do país onde cresci. Eram tão importantes que as utilizei numa entrevista em 1989 para dizer na Rádio ABC da Austrália como era belo este país de bons vinhos e boas comidas, e paisagens variegadas. Lembrava-me dos fraguedos de Penas Roias (onde fora pela primeira vez em 1962), e da famosa arca do cura dessa aldeia esquecida, onde só regressaria no conforto do alcatrão em 2004. 

No Vimioso percorri as ruas onde o meu avô crescera, vi a casa onde a família habitara que permanecia altiva e brasonada. Em Alfândega da Fé revi os jardins e os parques e as memórias dum castelo que a minha mãe sempre referiu nos idos da memória. Recordei as viagens longas e inesquecíveis pelo Douro acima, em comboios que a estupidez do homem mandou retirar dos carris trocando-os por alcatrão. 

Recordo com emoção os jantares feitos à lareira, em tachos negros como a noite, e onde os sabores eram bem diferentes. Depois do jantar, sentados no escano, imaginávamos figuras misteriosas que o fogo e as sombras criavam, antes de nos confrontarmos com o medo de regressarmos aos quartos, atravessando enormes salões onde a chama bruxuleante da vela nos desenhava os demónios de que a catequese nos avisara. Mas, mais terríveis ainda eram as trovoadas em plena época das sezões, quando na Quinta da Bendada (hoje em ruínas e não mais pertença da família) nos anichávamos debaixo da cama, enrolados em cobertores de papa, a rezar a Santa Bárbara. 

Foi tudo isto que eu revi e revivi ao editar este maravilhoso Cancioneiro Transmontano 2005. Foi o facto de saber que não vivi em Portugal os anos suficientes para ter mais recordações de histórias e contos dos avós, e de que a minha mãe hoje com 82 anos é o último elo para tantas dessas histórias e lendas que as tias contavam e cantavam. 

Ao sentir que se podem perder esses registos fundamentais duma memória colectiva resolvi meter as mãos à obra e preservar em papel aquilo que tantos idosos nos deram. Sabemos que a língua e cultura dum povo se preservam sobremodo pela tradição oral, limitamo-nos a transcrever o que foi possível ainda recuperar, para que mais tarde, os vindouros saibam que aqui houve gentes que nos falavam de mouras encantadas oitocentos anos depois delas terem deixado de aqui viver. 

Lamenta-se que mais recolhas não nos tivessem chegado a tempo de as publicar. Estamos dispostos a guardá-las para uma próxima oportunidade se alguém as fizer chegar até nós. Mas para já deixo-vos cerca de duzentas e cinquenta páginas desta memória transmontana. 

Devo concluir agradecendo ao Dr. Eleutério Alves, Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Bragança, por ter tido a visão e a confiança para me deixar elaborar este Cancioneiro. É igualmente devido o nosso reconhecimento ao Dr. Eduardo Alves da SCMB, e a Sandra Rocha, (Estagiária do 5º ano Trabalho Social da UTAD – Pólo Miranda do Douro) o nosso muito apreço pelas recolhas efectuadas dentre os utentes da Santa Casa, bem como ao Professor Luís Canotilho que tão belamente nos ilustrou o livro e a Helena Canotilho que disponibilizou imagens relevantes como as da capa. Seria injusto não mencionar a m/ mulher Helena Chrystello que abdicou de horas importantes para fazer a revisão de toda a obra e que não parava de descobrir pequenos nadas que nos haviam escapado a todos. Embora o seu nome não apareça nesta obra foi também graças ao seu apoio que perseverei em compilar este volume.

Espero que todos tenham tanto prazer em lê-lo como eu tive a transformá-lo naquilo que aqui têm, e que possa servir para passar de geração em geração com a satisfação de todos os que podem dizer, comigo, TENHO ORGULHO DE SER TRANSMONTANO.

1 comentário:

  1. Parabéns. Excelente texto e importantíssimo trabalho. Pena é que a maior parte dos autarcas tenham respondido ao seu projeto apenas com o silêncio. Preservar a cultura de um povo tão sofrido como o transmontano é, não apenas uma questão de preservar a memória, mas uma obrigação de todos os que, em Trás-os-Montes, têm às suas origens. Lembra-me de, na minha infância em Angueira, ouvir referências a Cristelo ou Cristelas, não tenho bem a certeza se um se outro. Se bem me lembro, havia pessoas em Angueira com esse nome ou, então, com a alcunhas Cristelas.

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