Conceição não tinha medo. Não tinha tempo para ter medo. Corria o ano de 1950, numa pequeníssima aldeia de Trás-os-Montes.
Cinco filhos, o homem e todo o trabalho da casa, do campo e os animais que criava, eram mais do que suficientes para a manter ocupada, sem tempo para respirar.
O marido, carpinteiro de profissão, não nutria grande amor pelas tarefas agrícolas e agarrava-se a todos os trabalhos que lhe apareciam, dedicando-lhes grande parte do seu tempo.
Apenas em determinados períodos do ano guardava as ferramentas e ajudava a mulher e os filhos mais velhos na dura lida das terras. O facto é que era necessário ganhar dinheiro já que as despesas eram muitas e diversas.
Os filhos mais velhos, rapazolas, frequentaram a escola até à terceira classe, que mais não havia. Os três mais novos já usufruíam da possibilidade de fazer a quarta classe e a rapariga ia estudar para Bragança.
Desde que os dois mais velhos começaram a ajudar a mãe as coisas haviam melhorado significativamente.
Era uma casa de muita lida. Conceição não tinha senão que orientar os filhos e trabalhar com eles.
André e Pedro, dezanove e dezasseis anos, eram a força e a energia daquela casa. Manuel e Alberto, com treze e dez anos trabalhavam com os irmãos e a mãe, como gente grande, e via-se o fruto do esforço de todos. A menina, Ana, com quatro anos, era a alegria da casa e o ai jesus dos pais e irmãos, que não se cansavam de lhe fazer as vontades.
Era uma família normal, se a normalidade pode ser um exemplo de boa educação, trabalho, esforço e respeito por todos e por si próprios. A família era referida como um exemplo a seguir, não sem uma pontinha de inveja.
Os tempos da pouca sorte eram uma recordação má, embora distante. Agora tudo fluía como um rio, que serenamente corre para o mar. Não havia descanso nem momentos de ociosidade. Era necessário desbravar os montes e das pedras fazer terra boa. Não havia desculpas para a preguiça. Não havia desculpas para a inércia.
Joaquim, pai orgulhoso e austero, não permitia leviandades e fazia jus ao nome que havia herdado dos antepassados. Tinham sido donos de muitas terras e algum património e, embora tivessem sofrido reveses impossíveis de prever, mantinham o orgulho e a inteligência de não desistir de lutar. Incutia na prole o valor da honra e da justiça, o orgulho do nome e a certeza de que as coisas só poderiam melhorar.
Aos poucos, foi comprando o que tinha sido obrigado a vender ao longo dos anos. Sabia que muito desse desígnio se devia à mulher e aos filhos. A sua arte, embora rendesse, não era o suficiente.
Começava a respirar com algum desafogo e podia pensar em dar um curso à sua única filha. Os rapazes, infelizmente, teriam de se contentar com o que o trabalho árduo do campo lhes pudesse facultar. Inteligentes e trabalhadores como eram, não tardariam a arranjar forma de continuarem a aumentar o património da família.
Sabia que tinha casado com uma mulher que, embora franzina e frágil, era dona da mais profunda e inabalável tenacidade que aliava a uma imensa inteligência. Ninguém a superava. Ninguém se atrevia a desobedecer às suas ordens que mais pareciam carícias. Ninguém ficava indiferente à sua educação e bom senso.
Filha mais nova de uma das melhores famílias de Cidões, fora educada para o trabalho que, naquele tempo, só os muito ricos podiam estudar.
Depois do casamento, acompanhou o marido. Foi acolhida com desconfiança pelas outras mulheres. Não se deu ao trabalho de pensar no assunto. Meteu-se na sua vida, lutou por ela.
Trabalhou até ao dia em que foi mãe pela primeira vez. Não foi um parto difícil pois ela não o permitiu. A parteira não lhe ouviu um ai. Sofreu o momento com a esperança de dias melhores a brilhar-lhe no azul acinzentado do olhar. Sabia que viriam e a essa expectativa se agarrou. Continuou a trabalhar todos os dias depois de um brevíssimo repouso. Durante esse período contou com o apoio da mãe e da tia Clemência que vieram propositadamente para cuidar dela e do bebé.
As duas mulheres impressionaram-se com a pobreza que grassava naquela casa. O essencial era uma miragem. O mínimo indispensável não existia. Vieram munidas do que entenderam necessário e ainda bem que o fizeram. Perguntavam-se como pudera Conceição, ter-se adaptado àquela vida de tantos sacrifícios… como seria a partir de agora? E a criança?
Joaquim, habituado a uma vida confortável, entristecia pela sorte aziaga que os perseguia desde que se haviam casado e arrenegava aquele povo da sua aldeia que não trabalhava e nem fazia nada para melhorar a sua situação.
Não tinha mais a quem recorrer e não se sentia capaz de incomodar o sogro novamente. Devia-lhe o dinheiro da parelha de vacas que lhe haviam morrido sem que ninguém conseguisse entender o porquê. Sabia que não há mal que sempre dure e ansiava por dias melhores. O menino era saudável, Graças a Deus, Nosso Senhor, embora franzino. Tinha de arranjar maneira de alimentar convenientemente a mulher para que pudesse amamentar o filho.
O curto período de repouso pós-parto acabou. Recebeu a visita do pai, orgulhoso do neto a quem haviam dado o seu nome e trouxe com ele a herança da filha. Mais valia dar-lha agora que a precisava, do que quando já não lhe fizesse falta.
Ao saber disso, o jovem casal viveu um corrupio de emoções desencontradas. Apetecia-lhe chorar, ao mesmo tempo que se riam. Sentavam-se e levantavam-se como se impulsionados por uma mola. Queriam agradecer mas faltavam as palavras e abundavam as lágrimas.
O senhor André Pires teve, então, a certeza de haver tomado a decisão correta. Aquela sua menina, era a luz dos seus olhos, a sua preferida, embora não o admitisse. Sabia do seu valor, da sua força e coragem, da sua audácia. Tinha a convicção de que saberia rentabilizar o dinheiro e que o multiplicaria. Ali começava o seu futuro e o futuro dos filhos que viesse a ter.
O genro era bom rapaz, de boas famílias, muito sofrido e maltratado pela vida. Tinha sido dono de uma boa fortuna que outros haviam desbaratado. Ficara órfão de pai e mãe muito cedo e os tutores fizeram seus os haveres que lhe pertenciam por direito.
Depois de André, os outros filhos, sequencialmente, de três em três anos. Só a menina se fez esperar mais e quando chegou, invadiu-lhe a vida como se de um sol radioso se tratasse.
Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.pt
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quinta-feira, 15 de maio de 2014
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