terça-feira, 2 de setembro de 2014

Entrevista a Silvia Ribeiro, investigadora do Grupo Lobo

O seu nome?
Silvia Ribeiro

A sua profissão?
Bióloga, Investigadora do Grupo Lobo

Está envolvida no Grupo Lobo há quanto tempo, qual a sua função concretamente?
Trabalho no Grupo Lobo desde 1996, tendo realizado a minha tese para conclusão da licenciatura em Biologia (Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa) no âmbito das linhas de investigação daquela ONG. A minha função tem sido ajudar a implementar e coordenar o Programa Cão de Gado, linha de acção desenvolvida pelo Grupo Lobo no âmbito da sua estratégia de Conservação do Lobo Ibérico em Portugal, desde o seu início em 1996. Este Programa visa recuperar e fomentar o uso de métodos de protecção dos animais domésticos, nomeadamente o uso dos Cães de Gado, como uma forma eficaz de diminuir os prejuízos económicos que os lobos causam nos rebanhos e assim aumentar a tolerância das comunidades rurais para com o lobo, contribuindo para a conservação deste predador, ameaçado de extinção no nosso País.

Diga-nos em traços gerais em que consiste a acção do Grupo Lobo, em particular na nossa região?
O Grupo Lobo é uma Organização Não Governamental de Ambiente, criada em 1985, que pretende contribuir para a conservação do lobo ibérico e do seu ecossistema em Portugal. Para cumprir estes objectivos definiu em 1987 o Programa Signatus, uma estratégia de conservação do lobo baseada em três linhas principais de actuação:

Investigação Aplicada – Promoção e realização de projectos e estudos técnico-científicos, no âmbito da biologia e antropologia, conducentes a um melhor conhecimento do lobo e das interacções Homem-Lobo;

Educação Ambiental – Divulgação de informação correcta acerca deste predador tão incompreendido e perseguido;

Promoção de medidas práticas de conservação – Contribuição para uma verdadeira política de conservação, não só deste canídeo mas também do Património Natural Português em geral. Neste âmbito destaca-se o Programa Cão de Gado (acima referido).

Todas estas linhas de acção estão a ser desenvolvidas na região de Vila Real, nomeadamente acções de monitorização da população lupina, estudos de avaliação dos impactes ambientais causados pela construção de grandes infra-estruturas, como sejam as auto-estradas, os parques eólicos e as barragens, e ainda acções pontuais de formação e sensibilização ambiental (palestras e actividades em escolas, passeios de ecoturismo, participação em reuniões científicas e outros eventos).

Também o Programa Cão de Gado decorre no Distrito de Vila Real desde 1996, tendo permitido a integração de cerca de 150 cães da raça Cão de Castro Laboreiro. No entanto, a área de intervenção do Programa é mais vasta, abrangendo ainda os Distritos do Porto, Braga, Viana do Castelo, Bragança, Aveiro, Viseu, Guarda e Castelo Branco. Após a integração de cerca de 300 cães, maioritariamente das raças Cão de Castro Laboreiro e Cão da Serra da Estrela (variedade de pelo curto e comprido), os resultados são bastante satisfatórios, pois verifica-se uma redução dos prejuízos económicos resultantes dos ataques dos lobos aos rebanhos ou manadas em cerca de 75% dos casos. Além disso, mais de 97% dos criadores de gado estão Satisfeitos-Muito Satisfeitos com os seus cães. Um grande problema, em virtude do grande número de riscos associados à sua função, tem sido a mortalidade bastante elevada destes cães, que ronda os 40%, maioritariamente devido ao veneno, que afecta também o lobo e outras espécies da fauna.

Foi galardoada com o 2ºprémio “Terre de Femmes”como se sentiu, que significado teve este prémio para si?
Foi uma grande honra ter recebido este prémio que reconhece o trabalho que venho desenvolvendo desde 1996, em prol da conservação do lobo, e o meu empenho no desenvolvimento do Programa Cão de Gado, iniciativa que tem tido bastante sucesso e servido de exemplo para acções similares noutros países Europeus, permitindo demonstrar que a coexistência com o lobo é, afinal, possível. Foi com grande orgulho que recebi esta distinção que premeia mulheres empreendedoras, de 15 países Europeus, que tenham desenvolvido projectos que contribuam para a sustentabilidade ambiental.

Sei que é um trabalho que exige muito empenho, falta de horários e esforço físico, este prémio foi o reconhecimento?
Trata-se, efectivamente, de um tipo de trabalho pouco usual que só consegue ser realizado por quem tem uma grande força de vontade e uma verdadeira paixão pela conservação da Natureza, pois implica um grande esforço (físico e psicológico), muitas vezes em detrimento de outros interesses mais pessoais ou familiares. Este Prémio foi um reconhecimento a nível institucional e com um impacto mais mediático, mas existem outras formas de reconhecimento mais imediatas, como sejam a satisfação dos criadores de gado com o bom desempenho dos seus cães e a compreensão pela comunidade científica e cada vez mais pelo público em geral, de que os cães de gado são uma forma ambientalmente sustentável de mitigar os conflitos ancestrais com o lobo, contribuindo de forma eficaz para aumentar a tolerância para com este predador ameaçado e para a sua conservação.

No acompanhamento que têm diário com os Cães de Gado passou por alguma situação mais delicadas, pode partilhar alguma connosco?
Como refere, o Programa Cão de Gado não se limita a entregar os cachorros, mas procede ao acompanhamento do seu desenvolvimento físico e comportamental, fornecendo algum apoio alimentar e veterinário aos cães, de modo a assegurar o seu desenvolvimento adequado e a sua eficiência em adultos. O acompanhamento é feito através de visitas regulares (geralmente mensais) desde a integração no rebanho até à idade adulta, por volta dos 18-24 meses de idade, realizando-se então a avaliação dos cães. Esse acompanhamento implica avaliar o estado físico e sanitário dos cães, prestando os necessários cuidados profiláticos e veterinários (no local ou transportando-os a um médico veterinário), bem como monitorizar o seu comportamento, corrigindo atempadamente eventuais problemas que possam surgir, e ainda as condições em que é criado, assegurando o seu bem-estar geral. As situações mais delicadas prendem-se com eventuais doenças e acidentes de maior gravidade, requerendo actuações veterinárias urgentes e qualificadas (p. ex. atropelamentos, envenenamentos). Felizmente a nossa capacidade de intervenção, quase imediata, e os meios técnicos e a experiência dos médicos veterinários com quem trabalhamos, têm permitido evitar a morte desses animais, que demonstram também uma extraordinária capacidade de adaptação e recuperação. Claro que a mortalidade acidental destes cães é sempre algo difícil de aceitar, pois forçosamente criamos laços com eles (e vice-versa), pelo facto de os conhecermos desde cachorritos e acompanharmos o seu desenvolvimento. Noutros casos, felizmente pouco frequentes, tem sido necessário retirar ou transferir alguns cães, por inadaptação ou alteração das condições da exploração pecuária. Nestas situações o bem-estar dos cães é o mais importante e procurarmos encontrar novos criadores de gado ou outros donos adequados, felizmente com bastante sucesso. As relações humanas são igualmente uma parte fundamental do trabalho que desenvolvemos — todos os dias contactamos com os criadores de gado e pastores, que têm visões diferentes do mundo e nem sempre estão de acordo connosco, mas com calma, respeito e tolerância tem sido possível ultrapassar todos os problemas.

Aqui na região transmontana, quais as principais raças de cães utilizadas para acompanhar os rebanhos?
Na região a norte do rio Douro, e em particular na região de Vila Real, privilegiámos o Cão de Castro Laboreiro, uma raça oriunda da região de Castro Laboreiro (Concelho de Melgaço).Na região a sul do rio Douro escolhemos o Cão da Serra da Estrela, por se encontrar mais perto da sua região de origem – a Serra da Estrela –, sendo frequente estes cães acompanharem os rebanhos transumantes até às planícies, planaltos e montanhas circundantes, desde a Serra de Montemuro até à região de Castelo Branco.

Porque se escolheram estas raças para esta região?
De todas as regiões de origem das restantes raças de cães de gado nacionais, o solar do Cão de Castro Laboreiro é a que apresenta mais semelhanças em termos ambientais (p. ex. orografia, meteorologia, vegetação, fauna e flora), com as cadeias montanhosas na qual a Serra do Alvão se insere, semelhanças que se reflectem ao nível da produção agrícola e pecuária, com a presença das mesmas raças de gado (cabra bravia, ovelha Bordaleira de Entre Douro e Minho) ou de outras similares (p. ex. Maronesa), e a utilização dos mesmos sistemas de pastoreio. A escolha desta raça baseou-se na assumpção de que a utilização de uma raça adaptada a condições semelhantes resultaria num maior sucesso.

Os pastores com quem também lida diariamente, colaboram e/ou englobam-se bem no projeto?
A abordagem inicial foi mais complicada, em virtude da desconfiança inicial para connosco, mas desde então têm-se criado laços de confiança e de trabalho, o que, juntamente com o sucesso atingido pelos cães integrados, tem permitido o reconhecimento do trabalho e a colaboração dos criadores de gado, igualmente responsáveis pelo êxito do Programa e também por grande parte da sua divulgação a outros criadores de gado interessados.

Sei que existem formas de as pessoas, em nome individual ou coletivo, ajudarem no projeto. Pode-nos dizer como?
A actividade do Grupo Lobo, e em particular do Programa Cão de Gado, tem sido possível graças ao apoio financeiro de entidades e de fundos nacionais e internacionais, bem como dos sócios e pais adoptivos. Assim, todo o apoio financeiro é bem vindo, pois irá permitir apoiar o Grupo Lobo em acções concretas de estudo e conservação do lobo. Além disso, é ainda possível colaborar como voluntário em algumas actividades. Para saber mais deverá consultar o Grupo Lobo (http://lobo.fc.ul.pt).

O principal objetivo é evitar a extinção do Lobo, esse objetivo tem vindo a ser alcançado, ou ainda há muito a fazer?
 O objectivo de evitar a extinção do lobo Ibérico em Portugal tem sido alcançado, pois foi possível parar a regressão da população lupina, que se tem mantido estável desde o primeiro censo nacional realizado em 1996/97. O último censo populacional, realizado em 2002-2003, confirma que a população se manteve mais ou menos estável, estimando-se a existência de cerca de 300 lobos.

Claro que ainda resta muito para fazer, pois continua a existir uma considerável mortalidade ilegal (veneno, laços, tiro), continuamos a assistir à destruição e fragmentação do habitat do lobo, o que, aliado à atitude predominantemente negativa do público em geral para com o lobo, fomentada por medos ancestrais e um desconhecimento ainda elevado sobre a biologia e ecologia do lobo, tem impactos bastante negativos sobre a população de lobos. A situação é mais grave no núcleo populacional a sul do rio Douro, cujas alcateias, isoladas da restante população ibérica, apresentam maior instabilidade, estando portanto mais ameaçadas. Assim, é importante que cada um de nós ajude a combater estas causas de ameaça, aprendendo mais sobre o lobo, transmitindo informação correcta sobre este predador ainda tão incompreendido, e agindo, colaborando em iniciativas que contribuam activamente para a sua conservação.

Acha que a maior ameaça do Lobo é o Homem? E os ecossistemas na região, será que ainda são propícios à habitabilidade dos lobos?
A acção do Homem tem sido responsável pela extinção de milhares de espécies a um ritmo muito acelerado, num fenómeno nunca antes observado na Natureza desde a extinção dos dinossáurios. Isto é verdade também no caso do lobo, extinto em cerca de 80% da sua área de distribuição original em Portugal. Mas no caso particular do lobo, para além da perseguição directa e da destruição e fragmentação do seu habitat (p. ex. incêndios, cortes florestais, construção de estradas e de barragens), da caça das suas presas naturais, como o corço e o veado, quase até à extinção, o lobo possui também uma imagem muito negativa em virtude da forte dimensão religiosa e mitológica que lhe é atribuída, a que se associam os prejuízos económicos que resultam da predação que este carnívoro faz sobre os animais domésticos. Sobreviver não tem sido fácil para o lobo. Mas trata-se de um predador com uma grande capacidade de adaptação, o que lhe permite sobreviver até em ambientes muito humanizados. Esta proximidade do Homem não é algo recente, mas que deve ter tido origem nos primórdios da pastorícia. Desta proximidade, da necessidade de proteger os animais domésticos dos ataques dos lobos, surgiu há milhares de anos o cão de gado, resultado da selecção realizada pelo Homem, e que constitui uma forma original, muito engenhosa e ambientalmente sustentável de diminuir os prejuízos, mas sem destruir o lobo.

As regiões serranas são os últimos redutos do lobo, o que demonstra que continuam a manter as condições necessárias à sua sobrevivência. Assim, desde que a protecção da espécie continue a ser assegurada pelo cumprimento da Lei do Lobo (Lei 90/88) e se mantenham algumas condições essenciais, como seja a disponibilidade de alimento (presas silvestres ou domésticas) e de refúgio, permitindo a sobrevivência dos indivíduos e a sua reprodução, a sobrevivência da espécie estará assegurada. Ao protegermos as presas e o habitat do lobo, estamos também a proteger toda uma miríade de espécies, muitas delas únicas, que partilham o seu habitat e que fazem parte do nosso património natural e cultural. Estamos ainda a proteger territórios e paisagens únicas que permitem a manutenção de actividades agrícolas e recreativas essenciais ao desenvolvimento das comunidades locais.

Trabalho realizado por Gina Teixeira

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