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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Conto de Natal: Catana e Inácio. A história de um estranho amor

O amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente. Um contentamento descontente. Cantava um poeta. Outro, por sua pena, escreveu que ele, o amor, não é eterno porque é uma chama, mas é infinito enquanto dura.

Sei bem e conheço, ou pelo menos assim julgo, assim como conheço a história de um amor, que à primeira vista diria unicamente ser um estranho amor, ou pelo menos uma estranha forma de amar numa falta de jeito de viver.

O sentir de amor de que falo já não existe no completo, porque uma das suas partes morreu. O Inácio, a quem eu comummente dava uma cigarrilha a modos de dizer todos os sábados. Resta a Catana, lerda, mas ladina que nem a raposa do romance de Aquilino.

Ele aportou na minha aldeia já homem para cima dos trinta, depois de percorrer muitos descaminhos no Porto. Ela, é rapariga da minha criação, do meu ano como faz questão de dizer, é tida e havida como ser de menor condição num quotidiano de pouco mais que o rasar o chão.

Juntaram os trapos, os míseros teres e haveres. Amarraram-se no acordar, aconchegaram-se no que sempre se afigurou como um verdadeiro desaconchego. Quase jurava até que nunca se deram a um mimo, e que todo o tempo se tratavam com remoques.

No entanto até dado momento duvidei. Depois vi que me enganei no meu ajuizar injusto ao ponto de dar como certa a falta de capacidade de amar de um e de outro. Penitencio-me de mão no peito.

No momento em que o corpo sem vida do Inácio ia descer à fundura de sete palmos de terra, que é do tamanho do infinito porque nunca mais de volta, a Catana sofreu uma atroz e genuína dor. Foi a expressão máxima de um negro estado de alma transparente e só própria de quem nada tem a esconder.

Agora, há poucos dias, três depois do Natal, a Catana foi ao meu encontro no meu recanto. Queria pedir-me que tudo fizesse para que quando ela morrer a sepultem junto ao Inácio. No mesmíssimo chão e coberta com a mesmíssima terra. Os pais estão por perto, mas ela sente que o seu lugar é de novo junto dele. Pediu também que arranje maneira de colocar uma placa com o nome e a fotografia do Inácio sobre a sua última morada na terra.

Por mim tudo farei para que assim seja pois dá-me uma certa volta ao miolo esta estranha forma de bem-quer, depois de um quotidiano vivido num estranho amor onde sobravam maus modos, aconteceram facadas, e se fingiram ausências de aflições. O meu afecto por ambos fará o resto.

Nas inúmeras vezes que o Inácio ia dar ao hospital quase em coma alcoólico, porque o último copo lhe caía frequentemente mal, ela fingia despreocupação e dizia que era bem feito. Ele que morresse que pouco se lhe dava.

Numa outra vez, ele deu por si internado, porque numa fútil discussão entre ambos, ela tresloucada deu-lhe uma facada. Clinicamente foi dado como sem hipóteses, mas regressou, remoçou e continuou. Enquanto durou o internamento ela de todo inimputável, desinquieta sofreu, e não arredou pé da cabeceira dele enquanto pode.

Naquele dia em que foi ter comigo, pela hora do almoço, apareceu-me de novo agora para me levar couves da horta que granjeia. Um dos seus poucos tesouros. Adivinhando-lhe a fome, ou pelo menos a falta de comida de jeito, combinado com o meu pai com um mero olhar, convidei-a para se sentar connosco na mesa.

O repasto era de feijocas previamente confeccionadas e congeladas, pois confessadamente na cozinha sou da maior impreparação e com um ser capaz de fazer pouco acima do nada.

Agora, o que vou relatar até pode ser imaginação minha. Sucede que estou capaz de jurar que vi as figuras do presépio ainda na sala, a espreitar por entre a porta que dá para a cozinha a apreciar a cena.

Depois, as feijocas, sabiam-se a bacalhau e a couves. Mas isso seria do meu paladar. Mas o que juro, é que ouvi o Inácio perguntar-me se tinha lume para a cigarrilha que lhe iria dar. Dianho de homem.

Devem ser efeitos do Natal.



Manuel Igreja
in:diariodetrasosmontes.com

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