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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

O Feliciano

 Era uma vez o Feliciano. Filho de um pequeno e perdido lugar nas arribas do alto Sabor, a casa onde nasceu era um buraco semiescuro – térreo, de telha-vã, de onde o fumo se escoava através de uma bueira que também deixava entrar: a chuva, o vento, a coada luz do dia e a neve.
Mal nasceu, o Feliciano foi embrulhado num avental esburacado de uma avó e posto num caixote de sabão, ao pé da lareira, ali ficando sozinho, durante largas horas, enquanto os pais vergavam ao peso do trabalho.
Alimentado a leite de cabra, papas de milho e rabos de sardinha, o Feliciano foi crescendo entre choros, rabugices, pontapés e lamentos; e assim crescendo, enquanto trabalhava, conseguiu concluir a instrução primária, à luz da candeia e do lampião, a assoprar o lume e a limpar as lágrimas por causa do fumo e de tanta tristeza.
De aspecto franzino e velada timidez, o Feliciano não passou despercebido ao casal Caldeira, o qual, de passagem por aquele lugar, se compadeceu do rapaz. Prometendo acolhê-lo como se fosse seu filho, acertou com os pais as necessárias diligências e levou-o consigo para a cidade.
Bem instalado, bem tratado e muito amado por quem o acolheu, o Feliciano cresceu, enrijou, aparou a barba cerrada, estabeleceu-se, casou e teve filhos.
Com uma habilidade inata para o negócio, aos trinta e cinco anos já era dono de empresas tão fortes que, um dia, resolveu ir à terra visitar o mausoléu dos pais e rezar por eles, a conversar com os amigos e rever lugares que tanta mágoa lhe causaram, mas de que nunca perdera a lembrança.
Senhor de uma imprevista, ingénua e impulsiva generosidade para com a sua terra, mandou arranjar a igreja e pintar o cemitério, financiando, além disso, uma estrada para a vila e a instalação de água canalizada e de electricidade em todas as casas.
Andava a gente muito admirada com tanta generosidade até que um dia, por sugestão de alguém, os responsáveis do lugar, depois de muito pensarem e depois de alguns debates, decidiram que, sendo o Feliciano filho da terra, não mais poderia abandoná-la.
Tendo chegado ao seu conhecimento, o Feliciano debalde tentou convencer os seus conterrâneos da má decisão que tomaram. Porém, e apesar de muito lutar, dali não mais conseguiu sair: perdeu a fortuna, perdeu a mulher, perdeu os filhos, perdeu os amigos, e perdeu a própria saúde.
A definhar de dia para dia, acabou por ver-se prostrado no miserável catre de um miserável casebre, sem ninguém que lhe chegasse um caldo!
E foi assim que, volvidos anos de privações, o Feliciano morreu, jazendo em campa rasa – incógnito para sempre!
Rememorando esta estória baseada num facto verídico, estória que construí a descansar na minha terra, à frescura da sombra de uma oliveira secular, enquanto ouvia o cantarolar do ribeiro e o gorjear do pintassilgo, não posso deixar de reflectir sobre as mais importantes decisões nela contidas para facilmente ser levado a concluir que, ao menos duas, marcaram o destino do Feliciano.
Até agora, e apesar de tantos anos passados, não consegui penetrar, tanto na mentalidade do Feliciano como na mentalidade dos decisores daquele lugar, os quais, por sua visível irresponsabilidade, acabaram por matar a galinha de ovos de ouro.

Manuel António Gouveia

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