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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

AS MANHAS DA TIA AFONSA

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Tia Afonsa era uma mulher escura de pele e de vestuário. Tinha cara de poucos amigos. Passava os dias a mastigar Padre Nossos e Avé-Marias. Estava desde cedo habituada a lidar sozinha e forjada na luta contra o tempo, o demónio e o poder. Desde que lhe morrera o Ti Aníbal Pomposo – ia já para catorze anos -, nunca mais largou o lenço preto na cabeça, o xaile pretos pelas costas, a saia e o avental preto, assim com as meias também pretas. Era a forneira da aldeia, por isso andava sempre com a cara e a roupa cheia de manchas brancas da farinha; era uma autêntica “ Andorinha do postigo “.
   Vivia no fundo de um canelho, entre as paredes do Ti Luís Carvalho, do Ti Peixeiro e do Ti Ernesto Salvador. Era uma casa pequenina, apenas com cozinha e quarto no primeiro andar e a loja nos baixos, onde guardava o jerico. Tinha um pequeno logradouro em frente aos quatro degraus que davam acesso à cozinha. Tirando a porta com o postigo, não havia, além da boeira, mais nenhuma abertura por onde entrasse o sol e o ar.
    Tia Afonsa cozia o pão de muita gente no forno da Quintã, a quem pagava a poia.
    Tinha na aldeia uma filha e quatro netas, todas pequenas ainda, que viviam na aldeia e uma outra filha no Brasil. Como era totalmente independente, não aceitava ajuda de quem quer que fosse. Sabia, como ninguém, quando o forno estava à temperatura ideal para receber a massa do pão. Metia para lá a lenha e, se a abóboda do forno ficasse escura, ainda não estava no ponto; só quando ficasse cinzento-claro. Sabia também quando o pão estava cozido na medida certa. Com a pá de madeira comprida, tirava um e batia com ele na pedra da entrada do forno, e pelo toque, voltava ou não novamente para dentro. Era como o Ti Manel Pataco da Cardanha com os melões que vendia nas feiras em Torre de Moncorvo e na Alfândega da Fé: dava um toque no melão e outro na ponta da bota e decidia assim, não só sobre o grau de amadurecimento, como também da qualidade do mesmo, conjugado com o peso.
     Tia Afonsa tinha duas peculiaridades: era meio fanhosa e meio surda ou surda total, quando lhe convinha. E ainda uma terceira: nunca amassava a massa, mas nunca ninguém metia um pão no forno que ela não aprovasse a consistência da massa. Aí, com a pá enfarinhada, para a massa não se pegar, metia um a um, geometricamente, de acordo com os seus cálculos, o pão no forno à temperatura ideal. Tapava a boca do forno com uma pedra de xisto e passado mais ou menos uma hora e quando o pão começava a “aloirar”, tirava um para análise. Também nessa altura, aproveitando o calor do forno e se houvesse espaço, se assavam batatas com sal, ou algum frango ou coelho, à “ boca do forno”. Como já se disse, não amassava e nem peneirava a massa, mas era ela quem decidia a quantidade de sal, de farinha, de fermento – que exigia que estivesse sempre fresco -, água morna e de azeite. E o pão saía do forno, embrulhado numa toalha na masseira, pronto a durar duas a três semanas sem apanhar bolor! Se guardado na arca, enterrado nos grãos de trigo ou centeio, durava até mais de um mês!
    Tia Afonsa estava habituada desde cedo e forjada na luta a lidar sozinha contra o tempo, o demónio e o poder. Munida de uma enxada e de uma foice, passava a vida pelos montes a cortar e a arrancar giestas e estevas para aquecer o forno. Ia frequentemente a Moncorvo, que ficava a cerca de seis quilómetros, de burro, pelos montes, vender o pão que lhe sobrava da poia e comprar fermento, azeite e sal, que sempre eram mais baratos do que na aldeia. Numa dessas idas, fazia uma linda manhã de Abril, eis que lhe aparece a Guarda Venatória, de dois elementos, perto da Quinta do Marmeleiro.
    - Bôs dias, minha senhora.
     - Bôs dias prós senhores tamãe.
     - Bai pra donde?
     - Sim, sim. `Stá um dia bonito. Por acaso ´stá!
     - A licença do burro.
     - A mnha Rita? Ah...a mnha Rita ´stá munto bem – respondeu com um sorriso.
     - No é isso – disse um deles. – A senhora tem a licença do burro?
    - A mnha Rita ´stá pró Brasil. `Stá munto bem, coa graça de Deus.
    - Nós só qu´remos ber a licença do burro.
      “ Carbalho sta cos´ós homes, qu´inda m´irão multar, cmo quera “ – pensava a Tia Afonsa com os seus botões, perante a insistência dos guardas.
     - ´Stá munto bem a mnha Rita. `Screbeu uma carta inda há poucos dias, quinté a tanho aqui. Querem-na ler?Oh...aqui ´stá – disse tirando um envelope de avião, com riscas verdes e amarelas.
      - Rais partá belha – disse um já incomodado, em tom baixo. – A licença do burro – insistia agora num tom mais alto.
    - Já tãe dois meninos. Por acaso inté tanho aqui o rertrato deles. Querem-no ber?
     - Não, mnha senhora. Só qu´remos ber a licença do burro – disse o outro já impaciente.
    - Olhem que dois catraios mais guapos ! – Disse mostrando a foto dos netos, sem ligar à interrupção.
     Os dois guardas olharam um para o outro, baixaram a guarda e deixaram-na seguir o seu caminho.

(A Tia Afonsa conta isto no forno, para gargalhada geral, inclusivé dela própria)

Fontes de Carvalho


Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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