A arte pastoril, expressão grande da arte popular, é o transporte em que embarcamos para esta viagem. Constituída por objetos do quotidiano, feitos e decorados pelos pastores, nas horas vagas do pastoreio. Preenche-se a solidão. “Quem não tem que fazer, faz colheres”! Num tempo lento, sem as pressas e as tensões urbanas, o fio da navalha vai dando forma e materialidade ao objeto. Concebe-o o pensamento tanto quanto o coração! Faz-se uso dos materiais que estão à mão, aguça-se o engenho e o espírito. Miniaturas, brinquedos, instrumentos musicais, artefactos de uso doméstico, ofertas para o patrão ou para a patroa, para a “conversada” ou “prometida”, associam função, criatividade e propósito, síntese entre artesão, artista e poeta. Porque muitos destes objetos contêm na sua aparente simplicidade, uma componente formal e técnica e uma riqueza estética e simbólica surpreendentes.
A propósito do lançamento do livro O Criado do Pastor, no Museu do Abade de Baçal, percorremos a Coleção de Etnografia, selecionámos um conjunto de objetos: rocas, fusos, canhões de fazer meias e flautas, executadas em madeira pelos pastores da região de Miranda do Douro, nos finais do século XIX / 1º metade do século XX.
Profusamente ornamentados, numa combinação de composições geometrizadas, vegetalistas, figuras humanas, animais … incisos e, em alguns casos, incrustados, vão-lhe preenchendo o corpo. O cabo, no caso da roca. Rapazes e raparigas, cavaleiros de espada erguida, cruzes e corações frechados, misturam-se com pavões, galos, pombas, raposas, lobos, serpentes, lagartos, ramos, espigas, flores, candelabros. No topo, dando continuidade ao roquil (que prende a lã para ser fiada) ergue-se a torre rendilhada de janelas e arcadas como um altivo castelo ou catedral! Um universo de símbolos arreigados à vida.
Carregam na sua historicidade (ou na sua fantasia), a narrativa de um quotidiano milenar que olhamos nesta perspetiva de proximidade, também de registo e permanência no imaginário de quem não fruiu a experiência na primeira pessoa.
Georgina Pinto Pessoa
Sem comentários:
Enviar um comentário