Tive, por bastantes anos, costume de desaparecer para as terras de Bragança para terminar meus livros. As montanhas, com vistas largas por sobre o “oceano megalítico”, trazem-me a impressão de reclusão, de regresso ao lado de dentro do Mundo, uma espécie de obrigatória descida ao chão que me convence de estar mais escutando a Natureza e, eventualmente, mais consciente. Desta vez, trabalhando para terminar um livro novo, não saio de casa e, certamente pela loucura crescente, imagino apenas como foi outrora fugir para aqueles lados. Como se lembrar já fosse voltar a fazê-lo.
Nas minhas deambulações, sobretudo quando ia ao centro para almoçar decentemente, ao invés de abrir latas de atum, espiolhava na biblioteca pequenas curiosidades sobre a região e ia pasmar para os lugares a ver se pressentia seus costumes, suas pessoas antigas, seus mistérios. Li algumas páginas do Abade de Baçal, que terá sido um homem admirável, capaz de entender a urgência de documentar, deixar testemunho e recolher tudo quanto pudesse favorecer o conhecimento dos povos que ali habitavam. Eu, que tive uma infância esquisita a brincar aos museus, guardando cacos velhos para imitar grandes achados arqueológicos, entrei no Museu do Abade de Baçal sempre convicto de que estava à distância de um século de um amigo.
Era o meu pai que, ainda nos anos de 1970, quando íamos em família a Bragança ver como era tudo lindo, me dizia que os animais esculpidos na pedra tinham sido castigados por comerem bagas venenosas. Ficavam assim. Serviam para dar exemplo aos outros. É-me impossível entrar no Museu do Abade de Baçal e não lembrar das nossas discussões ali, porque eu, com meus sete ou oito anos, já tinha a certeza de que castigo nenhum haveria de fazer dum bicho uma pedra de granito. Era como querer convencer-me que as Nossas Senhoras mais constritas, dobradas em sofrimento, eram feitas por escultores que queriam aproveitar troncos tortos.
A mim, no modo divertido que o meu pai tinha de levar as crianças a um museu, interessava encontrar o mistério para ser possível que um só homem pudesse ter a força de preservar tudo aquilo, legando aos seus e aos vindouros um acervo importantíssimo que justifica o orgulho de quem é daquelas terras.
Estou a escrever o meu novo livro sem sair de casa, mas invento que almoço as ementas do Óscar Geadas e estou de regresso à Bragança do Abade de Baçal, esse amigo desencontrado nos séculos. Tem sido meu modo de alinhar o que me resta de coisa cósmica, isso que me querem convencer de sermos partícula de um universo regido por sortes que respeitam translações, luas, lonjuras, alturas e funduras. Sem sair de casa, vou regressando ao Museu e escuto o riso que me ensinou a gostar do património dos povos, que é um modo de gostar dos povos. De lhes ter sempre saudade.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)
Sem comentários:
Enviar um comentário