sexta-feira, 4 de março de 2022

“À saída do correio”: a poesia como arma contra a censura


– Donde vem a carta,
senhora Maria?
– Vem da capital
é da Companhia.

(A Maria Pêdra
tem um ar de pedra
onde nem deixaram
crescer uma erva).

– E que diz a carta,
senhora Maria?
– Que no Douro o sol
nasce ao meio-dia.

(A Maria Pêdra
fala como quem
entra numa igreja
e não vê ninguém).

– É sobre o seu filho,
senhora Maria?
– Tivesse eu dinheiro
que nada haveria.

(A Maria Pêdra
tem no pensamento
um velho estandarte
flutuando ao vento).

– Mas que diz a carta,
senhora Maria?
– Pudesse eu falar
contra a Companhia!…

(A Maria Pêdra
é como o poeta
que mete os poemas
dentro da gaveta).

O poema “À saída do correio” foi originalmente publicado em Os homens cantam a Nordeste (1967). Francisco Fanhais musicou-o e inclui-o no álbum Canções da cidade nova (1970), considerado um disco de combate à ditadura de Salazar. Poema e canção vieram mais tarde a ser incluídos na Antologia dos poemas durienses (1999) e no álbum de Fanhais ‘Dedicatória’ (1998).


Durante este período não eram só as palavras dos escritores e/ou dos opositores ao regime que eram violadas e esquartejadas. Mesmo em situações mais quotidianas, como a correspondência de cada português, era notória a interferência da censura já que havia uma primeira leitura que não era a do seu destinatário.

Paula Morais in Portugal sob a égide da ditadura (2005)

António Cabral (1931-2007) foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa. Nascido em Castedo do Douro, Portugal, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária aos 19 anos com a publicação do livro de poesia Sonhos do meu anjo. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, e dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas.

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