Nos meses de Inverno, Manuel Fidalgo dos Santos, conhecido como «Manuel do Pau» ou Ti Mané, largava Folgosinho (Gouveia) com mais quatro homens a pé acompanhando um rebanho de mais de 200 cabras e ovelhas até ao Douro, Régua, Sabrosa, Alijó, Vila Real. Levava cinco a seis dias para lá e no final das invernias regressava. «Chegava a levar as crias, borreguitos pequenos, elas a parirem. Para cá, os borregos já vinham grandes». Uma rez com três a quatro anos já sabia o caminho de olhos fechados. «Tão bem como eu». Durante os 20 anos em que andou nessas andanças, o Ti Mané dormia à chuva e à neve, embrulhado na manta. «Agora, como podem dizer que a vida 'tá má? Nunca viram o qu' é mau? Querem é fados...»
Nas minhas caminhadas pelos buracos mais escondidos do país, tenho encontrado muitos Ti Manés, homens idosos, que viveram um tempo e uma crise cem vezes pior que a de hoje e que se riem quando lhes falo das dificuldades actuais. Alguns já se acostumaram a que os mais novos achem as suas histórias exageradas: «Dizem que estou a inventar».
Austero e empedernido como as pedras das arribas do Douro Internacional, Ângelo Arribas, mestre da gaita-de-foles, contou-me em Freixiosa, Miranda do Douro, como foi entre muitas dificuldades e pobreza que construiu a sua primeira gaita: «Éramos pastores, eu e os meus irmãos, andávamos aí ao frio, à neve. A música era a nossa única distracção. O meu primeiro tamboril foi feito com pele de coelho aparada com uma lâmina de barbear e os aros foram feitos a partir de uma lata de conservas. A minha primeira gaita-de-foles foi feita com palhetas de canas de centeio e pele de rato. Se não acredita pergunte aqui ao meu irmão...»
Em Abril deste ano, em Moimenta da Raia, Vinhais, foi-me apresentado um rijo e desassombrado ex-contrabandista, o Ti Fernando de Casares. O Ti Fernando falava sem pejo da realidade daquele tempo, de quando colocavam pedras no rabo dos burros para eles passarem a fronteira sem fazer barulho ou de quando (imagine-se) punham aguardente nos ouvidos dos porcos para eles não chiarem no caminho.
Passava fardos de 40 a 50 quilos entre o cair da noite e o raiar da aurora, tabaco, bacalhau, burros, porcos, cobre, numa época em que grande parte da população se dedicava ao contrabando.
No final de cada história, Fernando virava-se para a pessoa que mo tinha apresentado e comentava: «Agora, nós estarmos a falar do que era aquele tempo, esta gente nova não se acredita...»
Na Amareleja, a 80 quilómetros de Beja e 9 de Espanha, na terra onde os termómetros chegam no Verão aos 47 graus, os mais velhos encolhiam os ombros sempre que lhes falava em crise. A expressão usada era sempre a mesma: «Oh, nos tempos da miséria...». Entre jogatanas de dominó, xito (malha) na praça da Torre do Relógio à tarde, entre um copo de tinto e pedaços de porco preto espetados em palito de madeira, os idosos relembravam tempos muito mais duros.
«Dizem que a vida está má...e no nosso tempo?», perguntava José Cantarinho, ex-guardador de vacas, ex-empregado de café. «Fui à ceifa para aquelas barreiras de Bucelas que aqui era fraco». António José Ferreira, companheiro de dominó, fez podas, ceifas, labutou numa fábrica de automóveis em Amiens, na França e aguentou 16 abaixo de zero na Suíça a trabalhar em estufas. Agostinho Caetano, andou nas obras em Lisboa, na beterraba em França e jardinagem na Suíça. «Agora é tudo máquinas. Nos tempos da miséria, uh...»
Nas minhas caminhadas pelos buracos mais escondidos do país, tenho encontrado muitos Ti Manés, homens idosos, que viveram um tempo e uma crise cem vezes pior que a de hoje e que se riem quando lhes falo das dificuldades actuais. Alguns já se acostumaram a que os mais novos achem as suas histórias exageradas: «Dizem que estou a inventar».
Austero e empedernido como as pedras das arribas do Douro Internacional, Ângelo Arribas, mestre da gaita-de-foles, contou-me em Freixiosa, Miranda do Douro, como foi entre muitas dificuldades e pobreza que construiu a sua primeira gaita: «Éramos pastores, eu e os meus irmãos, andávamos aí ao frio, à neve. A música era a nossa única distracção. O meu primeiro tamboril foi feito com pele de coelho aparada com uma lâmina de barbear e os aros foram feitos a partir de uma lata de conservas. A minha primeira gaita-de-foles foi feita com palhetas de canas de centeio e pele de rato. Se não acredita pergunte aqui ao meu irmão...»
Em Abril deste ano, em Moimenta da Raia, Vinhais, foi-me apresentado um rijo e desassombrado ex-contrabandista, o Ti Fernando de Casares. O Ti Fernando falava sem pejo da realidade daquele tempo, de quando colocavam pedras no rabo dos burros para eles passarem a fronteira sem fazer barulho ou de quando (imagine-se) punham aguardente nos ouvidos dos porcos para eles não chiarem no caminho.
Passava fardos de 40 a 50 quilos entre o cair da noite e o raiar da aurora, tabaco, bacalhau, burros, porcos, cobre, numa época em que grande parte da população se dedicava ao contrabando.
No final de cada história, Fernando virava-se para a pessoa que mo tinha apresentado e comentava: «Agora, nós estarmos a falar do que era aquele tempo, esta gente nova não se acredita...»
Na Amareleja, a 80 quilómetros de Beja e 9 de Espanha, na terra onde os termómetros chegam no Verão aos 47 graus, os mais velhos encolhiam os ombros sempre que lhes falava em crise. A expressão usada era sempre a mesma: «Oh, nos tempos da miséria...». Entre jogatanas de dominó, xito (malha) na praça da Torre do Relógio à tarde, entre um copo de tinto e pedaços de porco preto espetados em palito de madeira, os idosos relembravam tempos muito mais duros.
«Dizem que a vida está má...e no nosso tempo?», perguntava José Cantarinho, ex-guardador de vacas, ex-empregado de café. «Fui à ceifa para aquelas barreiras de Bucelas que aqui era fraco». António José Ferreira, companheiro de dominó, fez podas, ceifas, labutou numa fábrica de automóveis em Amiens, na França e aguentou 16 abaixo de zero na Suíça a trabalhar em estufas. Agostinho Caetano, andou nas obras em Lisboa, na beterraba em França e jardinagem na Suíça. «Agora é tudo máquinas. Nos tempos da miséria, uh...»
(Nuno Ferreira)
in:cafeportugal.net
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