A comunidade rural nortenha do Antigo Regime tem na aldeia ou lugar o seu quadro territorial e social por excelência de estruturação e definição. Por vezes pode mesmo definir-se ao nível do casal ou mesmo da quinta – como se verifica frequentemente na área do Douro vinhateiro e região brigantina – quando à sua volta se organiza o essencial da vida sócio-comunitária, em termos equivalentes aos de lugar ou aldeia.
Esta comunidade local, estrutura-se em primeiro lugar a partir de quadros agrários que criam laços de forte constrangimento social e comunitário das populações. Na base, essencialmente, está a economia do casal agrícola e também o direito que o suporta, em especial o direito enfitêutico mas também o costume agrário. O lugar, a aldeia, construiu-se muitas vezes na base de um só casal, outras vezes em mais casais fortemente interligados entre si por condicionalismos físicos, geográficos e jurídicos.
É frequente o casal e também a quinta darem origem muitas vezes a núcleos de povoamento muito dispersos, constituindo lugares muito isolados e separados. Nele se estrutura a partilha equilibrada de bens e recursos agrários que permitem o funcionamento da economia e autonomia do casal agrícola ou doméstico. E pela constituição de casais encabeçados que responsabilizam o cabeça de casal ou pessoeiro pelas obrigações dos consortes, estrutura-se um forte e coeso ordenamento jurídico-social.
Constrói-se assim uma unidade e corpo social-agrário fortemente estruturado no direito e na economia.
O casal é não só o fundamento do funcionamento da economia agrícola, como o é da ordem social comunitária. Com efeito a partir do casal agrícola e em relação com ele e com as suas partes, se organiza e divide a maior parte do património colectivo da comunidade, a saber, a propriedade dos montes baldios, das águas e servidões. Isto porque em regra se reservam sempre áreas para o livre uso e acesso da pobreza, e aos desapossados da terra.
Nos montes baldios estrutura-se um importante suporte desta economia e sociedade e também desta organização colectiva pelos matos, lenhas, pastos, águas, recursos florestais e minerais que fornecem. Os modos de apropriação e uso são muito variáveis, que podem estender-se por formas de apropriação privada já muito avançada (isto é, de repartição e agregação directa pelos casais e fazendas agrícolas) – ainda que sujeitas a constrangimentos e obrigações comuns –, como a formas mais extensas de uso comum e genérico a todos os membros da comunidade aldeã. Mas a propriedade e uso comum dos recursos estende-se também aos rios e ribeiros e também a algumas práticas de uso colectivo por sobre as propriedades privadas, dos campos e sobretudo das veigas, onde a livre pastagem, o compáscuo (a nossa «vaine pature»), se aplica em muitos casos, abrindo os campos, em regra, no fim das colheitas, à livre pastagem e circulação dos gados. Como estão ainda presentes em muitas terras direitos e usos comuns a certos espaços e produtos mais agrestes e silvestres (colheita de alguns frutos, como a castanha, usos e servidões como as das ervas dos valados).
Por sobre o casal ergue-se o edifício das instituições jurídico-sociais que o conformam: o direito enfitêutico e demais direito e costume agrário, as instituições (com ou sem regimentos), das organizações dos trabalhos agrícolas, da repartição das limas e regas, dos roços, das vezeiras, de outros equipamentos colectivos, como os fornos, os moinhos, os animais reprodutores… Este é um quadro social naturalmente dominado e construído pelos proprietários e de entre estes, pelos cabeceiros e pessoeiros, que no essencial regulam esta economia à sua medida, atentando na sobrevivência de caseiros, cabaneiros, jornaleiros, artistas, pastores, que são também a base e suporte desta pequena economia e sociedade.
Num plano de grande continuidade e contiguidade com este povoamento e sociedade, devem referir-se também as suas instituições de natureza religiosa, elementos essenciais a esta definição e constituição social e comunitária. A aldeia ou lugar, por regra, estrutura e organiza ainda as instituições, os equipamentos e as práticas de uma ordem religiosa própria com grande funcionamento e independência da paróquia, que por todo o lado se quer construir como quadro de vida sócio-religiosa local de referência. Ela está em geral presente na existência da capela para uso do lugar que é administrada em «padroado» comum aos moradores, com maior ou menor presença do pároco. Nela se venera um santo,
particular padroeiro do lugar. Nela se levam a cabo actos de culto, eventualmente missa dominical.
Nela se suporta a instalação das espécies consagradas para levar em viático aos moradores doentes e «in articulo mortis». A enorme profusão de capelas na nossa paisagem rural é naturalmente a expressão por excelência das formas de povoamento no lugar ou na aldeia e da sua constituição social e económica de base. À volta da capela do lugar se estruturarão ainda muitas vezes actos sociais importantes destas comunidades: a festa devota e festiva ao santo e outros actos festivos e religiosos ao longo do ano, as procissões, votos e romarias; a persistência no largo da capela, de comércio, feira e mercado e também a realização de certos actos de divertimento profano. O suporte económico e administrativo da capela e as práticas devocionais do lugar são obra colectiva dos moradores.
Esta organização e estrutura de base local tem que se bater ao longo dos tempos e em particular ao longo do século XVIII (e intensamente desde a 2.ª metade do século) por 2 movimentos que contribuirão para a sua desestruturação: as forças e tendências do individualismo agrário que corroerão as forças e os constrangimentos da economia do casal e «comunitarismo» do lugar; as forças e os desenvolvimentos da ordem paroquial que centrarão e concentrarão as forças e a unidade religiosa-social na freguesia. As forças do individualismo agrário concorrerão para a mais forte apropriação privada da terra, dos recursos e da renda agrícola. É um envolvimento e concorrência vinda do capitalismo comercial e da sociedade rentista que com o forte apoio das câmaras dos concelhos põem em causa esta sociedade e economia agrária, tradicional, de forte base social – comunitária. E sofre também a forte concorrência da organização eclesiástico-paroquial, que na freguesia e igreja matriz quer concentrar o essencial do funcionamento da vida social-paroquial à volta da igreja matriz e do pároco.
Conjugam-se para a sua sobrevivência e resistência, para além destes elementos de base «cultural» e «civilizacional» agrária, as dificuldades às comunicações que impõem fortes localismos e até em algumas áreas, relativa abundância de clero «rural» para serviço local.
Memórias Paroquiais 1758
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