Os pequenos elementos biográficos que conhecemos destes dois sacerdotes resultam do seguinte: o padre José Luís Cordeiro, escrivão interino do Juízo Apostólico em Bragança, natural de Alfândega da Fé, que faleceu em Calabor, Espanha, onde fora a banhos, a 12 de Agosto de 1900, tinha um manuscrito in-8.° pequeno, encadernado, que depois passou para Abílio de Lobão Soeiro, ao tempo secretário-geral do Governo Civil de Bragança, e deste para o actual possuidor (1 de Julho de 1921) doutor António Manuel Santiago, do concelho de Alfândega da Fé, cónego da Sé de Bragança e empregado do citado governo civil.
O dito manuscrito começa assim: «Este Caderno hera do Pe. António Nunes, de Frechas que me prestou seu sobrinho e depois de o ter por meu lhe juntei o retrato e a mais adição a folh. 62 tirada do original e as notas de March e Ferraris. José Manuel Villares Borges de Campos».
Este Caderno é paginado de frente e contém setenta e três fólios, não contando o índice. Até ao fólio 61, verso, prope fine, compreende um tratado de moral que aí termina e começa a parte verdadeiramente curiosa do manuscrito, que exara um Retrato ou Descrição de Si Mesmo, feita pelo reitor de Sambade, concelho de Alfândega da Fé, reverendo Joaquim Ferreira Portugal, que veio para reitor de Sambade em 1796 e aí faleceu a 11 de Dezembro de 1820, segundo se diz numa nota apensa do mesmo Retrato ou Descrição. Refere essa nota que o dito reitor – foi inimigo dos clérigos e morreu em o auge da intriga, que foi um famoso pregador, mui político, tinha porém génio fogoso, amigo de aplausos, elevado em autoridade. Jaz na sepultura 1.ª da parte da epístola onde se tinha sepultado o seu antecessor Francisco Lopes de Azevedo, o príncipe dos párocos, foi rijo, invenável, virtuoso, abominou a lisonja, amou a virtude.
O Retrato, conforme se lê no manuscrito, foi copiado do original em Lodões aos 27 de Maio de 1819 (pelo padre José Manuel Vilares Borges de Campos?). À margem encontram-se notas crítico-humorísticas tiradas de Cícero, Ferraris, Bocage e outros autores atinentes à estultícia das coisas humanas e à vaidade do dito reitor de Sambade, Joaquim Ferreira Portugal, autor do Retrato de Si Mesmo. A primeira nota, parafraseando a célebre sentença de Cícero, respeitante a não haver absurdo que os filósofos não tenham sustentado, diz: Miror an fieri possit ut aliquis ex rectoribus sit salvus.
Às prosápias do autor do Retrato dedicou um anónimo, que na cópia se diz ser o padre João de Lemos, de Sambade, acima referido, que «bem conhecia o autor e seus sistemas políticos», as seguintes décimas:
Do teu amigo a pintura
Vi, pelo mesmo pintada
De mil enfeites ornada
Desmentindo a figura
Toda a sua formosura,
Era engano formado
Era lobo disfarçado
Em pele d’ovelha metido
Era o homem fingido
O teu amigo pintado.
A tua cautela seja
Do rato com a doninha
Pois nem tudo é farinha
Quanto lá n’arca branqueja
Tu, cá de fora festeja,
Essa figura distinta
Dir-lhe-ás que bela tinta!
Gastou na sua pintura
Mas o corpo da figura
Não é tal como se pinta.
O autor do Retrato – continua o manuscrito – saiu com este soneto tirado adulterinamente de Bocage para invadir o amigo (a pedido de quem fez o Retrato) e o anónimo (o autor das duas décimas acima transcritas):
Não sou como tu vil Ascarino
Traidor, cruel, sacrílego, blasfemo
Um Deus adoro, a eternidade temo
Conheço que há vontade e não destino.
Ao saber e à virtude a fronte inclino
Se chora e geme o triste, eu choro eu gemo
Chamo à beneficência um dom supremo
Julgo a doce amizade um bem divino.
Amo a todos, amo as leis precisos laços
Que mantêm dos mortais a convivência
E não temo teus rudes ameaços.
Nutre embora tua voraz maledicência
Que eu folgo, eu durmo nos teus abraços
Amigo da razão, pura inocência.
Resposta do anónimo (padre João de Lemos):
Em vão se louva o fariseu ferino
De não ser cruel, nem blasfemo
De pagar a um Deus supremo
Décimas que requer o poder divino.
Chora o publicano de contínuo
Pequei, contra Deus, por isso gemo
A vista do juiz severo tremo
Qual será minha sorte, meu destino.
O soberbo levanta seus braços
A Deus quer tirar a proeminência
Sem temer os terríveis ameaços
O humilde faz dos crimes penitência
Das ninfas deixa enganosos regaços
Sem afectar pura inocência.
Segue um outro soneto de um segundo anónimo, que na cópia não se declara quem seja, e depois diz: «De Bocage ao A.»:
Tu maligno dragão, cruel harpia,
Monstro dos monstros, fúria dos infernos
Que em vil murmuração, ralhos eternos
Estragas sem descanso noite e dia.
Tu que nas horas em que o mocho pia,
Caluniaste meus suspiros ternos:
Sacode a carga de noventa invernos
Nas descarnadas mãos da morte fria.
Cai de chofre no báratro profundo
Cai nas entranhas da voraz fornalha
Deixa em sossego o miserável mundo,
E entre a maldita o réprobo canalha
Lá bem longe de nós, lá bem no fundo
Arde,murmura, amaldiçoa e ralha.
Há mais três décimas do primeiro anónimo, padre João de Lemos, que dizem:
Debruaste o teu retrato
Tão belo, tão excelente
Sem temer ouvir um mente
Sofrer um vil desacato
Foste um louco mentecapto
Fizeste uma grande asneira:
Querias pela dianteira
A todo o mundo iludir
E não pudeste encobrir
Os defeitos da traseira.
Borra esse teu retrato
Não penses é excelente
Causa riso a toda a gente
Tratam-te com desacato:
Chamam louco, mentecapto
Ao pintor de tal asneira:
Como caiu nesta tonteira
Isto é próprio de rapaz
Ser o diabo por trás
Anjo pela dianteira.
Se você ‘sô’ mentecapto
Por quatro vinténs comprasse
Um espelho em que mirasse
Da sua cabeça o caco:
Veria que o seu retrato
Era uma árvore sem pé,
Cozinha sem chaminé
Fidalgo sem ter brasão
Cavalheiro de leilão,
Sapato para todo o pé.
Toda esta altercação termina assim, no dito manuscrito: «Fim da contenda e analyse do homem que prevê futuros e que quer arrogar tanta espiritualidade que todos lhe denegam».
Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança
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