"Fátima Carvalho faz parte da comunidade habitual dos museus e galerias. Deambula, observa, conversa, fotografa, arquiva as imagens captadas em exposições. É no Porto que a encontro, embora o seu arquivo seja hoje um repositório de imagens colhidas em numerosos lugares, dentro e fora de Portugal, nos espaços institucionais dos museus e dos centros de arte, nas galerias privadas e públicas, nos pequenos e nos grandes acontecimentos que geram os circuitos da arte contemporânea. Fez, entretanto, a opção que outros fotógrafos fizeram, a de passar de um registo documental, estruturado apenas na vontade, a um registo artístico, ancorado em intenção. Se tais fotografias não abandonam a sua categoria de testemunho, incorporam uma outra, a de imagens que interpelam a nossa condição de espectadores.
Escolheu um caminho de sobreposições: à experiência da arte, que classificaríamos de primeiro grau, acrescentou uma experiência de segunde grau, a dos que observam. Quanto a nós, espectadores da sua proposta, cumprimos uma experiência de terceiro grau. Na selecção das fotografias documentais que agora mostra, o observador transforma-se no observado, o visitante no visitado, o amador na coisa amada. E no olhar e pela câmara da fotógrafa que a transformação acontece. E como a presente exposição vem na sequência de uma anterior, o caminho das sobreposições adensa-se e já encontramos fotografias da autora onde o observador, apanhado em flagrante, dirige o seu olhar a uma obra que é, afinal, outra fotografia da mesma autora.
Encaradas na sua dimensão literal, as imagens permitem estabelecer uma tipologia dos visitantes de exposições: o fatigado, o perplexo, o solitário, o convivial, o explorador, o passivo, o activo, o tranquilo, o preguiçoso, o indiferente, o curioso, o participativo, o recreativo, o inquieto, o que precisa de mediação tecnológica, o que a ignora, o que passou por ali sem saber, o que está ali como se aquele fosse o seu lugar... Nas fotografias expostas articulam-se imagens e espectadores sempre que um gesto interage directamente com a representação numa tela; sempre que o espectador, reflectido na superfície de vidro ou no espelho de uma obra, a integra; sempre que o conteúdo de uma obra de arte se acorda com as características do visitante, a sua postura, o seu vestuário, os seus adereços; sempre que o carácter da obra e a natureza do observado se encontram, aquela replicando movimentos deste, este fazendo eco da representação. Este é um diálogo que muitos procuram diante de uma obra de arte ou dentro de uma instalação e que bem poderia resumir os aspectos iniciais da experiência da arte.
O discurso visual que nos é apresentado, apesar de tudo o que aconteceu à prática artística dos últimos 50 anos, centra-se na contemplação. Seria interessante perceber que imagens a fotografa colecionaria nas exposições em que as artes visuais já não dominam e em que o exame e a vivência da arte assentam noutros pressupostos, requerem outros mecanismos e mobilizam outros sentidos. As manifestações de realidade aumentada, todas as propostas de arte interactiva, os ambientes sonoros são apenas alguns exemplos que remetem para um domínio onde não há espectadores em sentido puro, mas utilizadores. O desafio que representam contém um outro que aqui se lança à fotógrafa.
O ritual de ver arte faz-se, não apenas com o olhar, mas com o corpo, pose, movimento, deslocação, aproximação, paragem. Faz-se com a inteligência em procura, focagem, direcionamento, atenção, compreensão, conhecimento. Faz-se com o coração, em expressão, gosto, desagrado, sorriso, descontracção, incómodo, comunhão, repulsa, descoberta, reconhecimento, agradecimento.
Texto de Laura Castro
in:noticiasdonordeste.pt
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