Francisco da Costa Henriques nasceu em Vimioso, cerca de 1623, filho de António da Costa e Beatriz Lopes. Tinha meia dúzia de irmãos e quantidade de tios paternos e maternos, muitos dos quais assentaram morada em Castela. Sim, que à época os dois reinos ibéricos estavam unidos pela coroa dos reis Filipes e as rotas comerciais de Vimioso e do Nordeste trasmontano se dirigiam especialmente para aquelas bandas. Aliás, as cidades então capitais da Ibéria (Valhadolid e Madrid) eram mais próximas que Lisboa.
Também Francisco cedo começaria a viajar com mercadorias para Castela, certamente acompanhando seu pai. Não sabemos que géneros de mercadorias levavam e traziam, mas pegariam a tudo o que aparecia, como era normal entre os da etnia. Das andanças por Castela, Francisco dirá que assistiu em Toledo e Valhadolid.
Teria uns 15 anos quando foi viver para a cidade do Porto, parecendo haver coincidência com idêntico movimento de seu tio materno, António Henriques da Costa, mercador, natural de Vimioso que, depois de viver 15 anos em Castela, (1) regressou ao reino para casar em Vila Franca de Lampaças, com Isabel Cardosa e ali viver por 9 anos, posto o que a família se mudou para o Porto. Eles seriam os sogros de Francisco, que, por 1648, casou com Leonor Henriques, filha única do casal, nascida em Vila Franca, por 1630.
Não sabemos onde e como viveria Francisco Henriques no Porto antes de casar. Viveria já em casa do tio e com ele trabalharia, como viveu e trabalhou depois de casado, “porque viviam na mesma casa e tratavam de tudo misticamente”, como ele próprio declarou?
Ao Porto foram ter com Francisco seus dois irmãos mais novos, Manuel e João da Costa (2) que, por 1656 se embarcaram para Pernambuco, Brasil, onde vivia Bento Cardoso, natural de Lampaças, tio materno de Leonor Henriques da Costa.
Adivinha-se a existência de uma rede familiar de negócios, baseada na importação de açúcar do Brasil e sua distribuição a partir do Porto, não apenas em Portugal mas também para Castela e principalmente para os países do Norte da Europa. De contrário, receberiam e fazendas e manufaturas que seriam enviadas para o Brasil. Isso não impedia Francisco de fazer constantes viagens de negócio, nomeadamente a Lisboa, Trás-os-Montes e terras da raia de Espanha onde, nem a guerra da Restauração impedia as transações comerciais.
Floresciam os negócios de Francisco da Costa Henriques e podemos com certeza afirmar que ele integrava a elite da burguesia mercantil da cidade, a avaliar pelo seu relacionamento com outros poderosos mercadores da época. Esta classe viria a ser completamente arrasada pela inquisição que, ao início do verão de 1658, lançou uma terrível operação de limpeza, que levaria à prisão mais de uma centena de pessoas. E muitos mais fugiam, conforme as informações dos familiares do santo ofício que chegavam a Coimbra dizendo:
- A gente da nação desta cidade anda de alevanto para se ausentar da mesma (…) lembro em termo de 6 dias não fica aqui cristão-novo algum… (3)
Logo na primeira vaga de prisões seguiu o nosso biografado, assim como o sogro, António da Costa. Dias depois, levaram também a mulher, Leonor Henriques da Costa. (4) No Porto ficaram 2 filhos e 2 filhas do casal, o mais velho contando apenas 9 anos. Quando o prenderam, Francisco trazia 4 dobrões de ouro que valiam 28. 800 réis, “cosidos no gibão” e mais 150 réis em prata.
No inventário dos seus bens móveis ressaltam 4 cofres, mobiliário de escritório, e mobiliário de casa feito de madeira de castanho, jacarandá, pau-preto ou pau-Brasil… tudo peças marchetadas de marfim, assim como bufetes, cadeiras e tamboretes de couro do Brasil, painéis e espelhos com boas molduras… reveladoras de um ambiente burguês.
Porém, o que verdadeiramente importa do mesmo inventário, são as janelas que se abrem sobre o mundo empresarial deste homem de 35 anos. Vejamos, antes de mais, as mercadorias que estavam embarcadas.
No porto de Viana do Castelo, chegadas no navio do mestre Cosme Vaz Carneiro, à responsabilidade de Heitor Tinoco, tinha 2 caixas de açúcar branco, pesando 47 arrobas.
Em um navio acostado na Foz do rio Douro, que havia de seguir para Hamburgo, tinha, carregadas, 10 caixas de açúcar “e um feito de mascavado” vendidas a Fernando Álvares e António Correia da Mesquita, ali moradores. Na margem do processo aparece desenhado o sinal identificativo destas caixas. Desenho diferente também, para identificar 3 caixas de açúcar branco que iam destinadas a António Henriques do Vale, mercador em Hamburgo. No mesmo navio estavam embarcadas mais 12 caixas de açúcar branco e 10 de mascavado, cujo destinatário não aparece identificado, sendo apenas a terça parte de Francisco, pertencendo as outras duas a Jorge Garcia de Leão.
Imperador Octaviano era o nome de um navio, dirigido pelo mestre João Bernardo, vindo de Hamburgo e atracado no rio Douro, com fazendas dali remetidas por Duarte e José de Lemos a ele e ao sogro e antecipadamente “vendidas” a Domingos Lopes Pereira, filho de Francisco Vaz Artur, mercador no Porto, natural de Segóvia, Castela, significando isso que o nosso biografado era um verdadeiro importador / exportador, ganhando nisso a sua comissão.
Pena que não tenhamos o preço das mercadorias para avaliar a grandeza dos negócios. De contrário, sabemos que ele devia “perto de 200 mil réis” à firma de António Rodrigues Mogadouro, (5) com sede em Lisboa, na Rua das Mudas, se bem que as contas do ano ainda não estivessem apuradas, significando isso que eram parceiros comerciais, não se antevendo o tipo de mercadorias fornecidas. De contrário, devia 20 mil réis a Diogo Lopes Dias, estabelecido na ilha Terceira, Açores, respeitantes a despesas havidas com o embarque de uma caixa de açúcar. Também ao mestre de navios, Manuel Álvares dos Santos, devia 7 mil réis que gastou com o embarque de uma caixa de açúcar. De tudo isto e mais dívidas se acharia registo concreto e preciso no seu “livro da razão” e no “livro que tem do recebimento das caixas que vêm do Brasil”.
Se as dívidas passivas são poucas e quase exclusivamente relativas a embarque ou transporte de açúcar, já as dívidas ativas são mais e de natureza diversa, mostrando que o nosso biografado vendia mercadorias tão diversas como sedas a um mercador portuense morador à Ponte de S. Domingos ou madeiras a um tanoeiro de Aveiro, certamente para a construção naval. E agora, veja-se um estranho tipo de negócio, contado nas próprias palavras de Francisco da Costa Henriques:
- Comprou ele de uns homens de junto a Bragança, cujo nome não se lembra, a herança do padre Amaro Martins que faleceu na Baía, estando no Brasil, do qual padre ficaram testamenteiros Miguel Carneiro e Pedro Vargas Carneiro, da Baía, e remeteram já a ele declarante o que lhe tocava; mas ainda lhe está devendo, da dita herança um Francisco Nunes da Mota, morador no Rio de S. Francisco, do mesmo estado, uma dívida grande, não sabe a quantia ao certo, e era procedida de gados, de que pertence a metade aos herdeiros do dito padre, conforme o contrato que fizeram; e todos os papéis tocantes à compra e cobrança desta herança tinha ele declarante no seu escritório.
Não vamos analisar o processo de Francisco Henriques que logo começou a confessar as suas culpas e a denunciar familiares e amigos, particularmente trasmontanos e marranos, tal como fizeram a sua mulher e o seu sogro. E foi a partir das suas denúncias que a inquisição lançou em terras de Vimioso e Carção uma grande operação contra a heresia judaica, na qual foram parar ao tribunal de Coimbra umas 7 dezenas de pessoas.
Notas:
1-Em Espanha, António Henriques da Costa viveu 2 anos em Medina de Rio Seco; 7 em Ávila dos Cavaleiros e 5 em Segóvia. Tinha 2 irmãs, uma em Castela e outra em Livorno e um irmão, também morador em Castela, na cidade de Sevilha.
2-João da Costa faleceu em 1657, ainda solteiro, em pleno mar, em viagem de regresso ao Porto. Manuel da Costa continuava no Brasil em 1658 e Bento Cardoso morreu, na tomada de Pernambuco aos Holandeses, em 1654, conforme informação da sobrinha, Leonor Cardosa.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 4603, de Vasco Fernandes Campos, mercador, natural de Vila Flor, morador no Porto, assistente em Lisboa.
4-IDEM, inq. Coimbra, pº 280, de Francisco da Costa Henriques; pº 2256, de António Henriques da Costa; pº 7102, de Leonor Henriques da Costa.
5-ANDRADE e GUIMARÃES – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, Ed. Vega, Lisboa, 2009.
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com
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