segunda-feira, 9 de julho de 2018

A indústria em Bragança no século XIX

Bragança - Vista Geral

Vergílio Taborda, por 1930, escrevia que nos planaltos trasmontanos não havia qualquer indústria que merecesse “menção especial”, e que o quadro da atividade industrial tinha “quase só um interesse retrospetivo”.
Na verdade, para além das manufaturas domésticas, artesanais, dispersas pelo mundo rural e destinadas sobretudo ao consumo da família, mas também vendidas nas feiras e mercados, os tecidos de linho, os panos de estamenha e burel, que lentamente foram desaparecendo ao longo do século XIX, por força da concorrência dos produtos das grandes indústrias cada vez mais acessíveis graças ao caminho-de-ferro e ao estabelecimento de uma rede moderna de comunicações.
O linho, por exemplo, que tinha no Concelho de Bragança o mais importante produtor do Distrito, era fiado e tecido “toscamente” pelas mulheres nas próprias habitações, destinando-se ao consumo local. Contudo, nunca deu origem a uma unidade industrial propriamente dita. Pelo contrário, à medida que avançamos no século XIX, as manufaturas do linho vão-se extinguindo, a acompanhar justamente a redução das terras destinadas à sua cultura. Vergílio Taborda, já no século XX, irá referir que a cultura e fabrico do linho estavam já em “franca decadência”.
Fora deste quadro indiferenciado da indústria bragançana, típica do Antigo Regime mas que se manteve até ao século XX, importa, contudo, assinalar uma importantíssima exceção, a indústria das sedas, que ultrapassou largamente a dimensão do mercado local/regional e os reduzidos padrões de exigência atingidos pelas indústrias tradicionais locais, dando a esta Cidade do Nordeste Trasmontano prosperidade e notoriedade nacional e mesmo internacional.
Tendo em consideração o período cronológico que nos preocupa, iremos tratar das indústrias existentes no Município de Bragança, dando relevo, fundamentalmente, à indústria das sedas, a qual não pode ser vista desinseridamente das restantes indústrias existentes no Concelho, do contexto agropecuário da Terra Fria, nem do período cronológico que antecede aquela, uma vez que é a partir de finais de Setecentos que as sedas atingem o seu apogeu nesta Cidade. Mas como um dos autores desta obra já publicou numerosos trabalhos sobre a indústria das sedas em Trás-os-Montes, remetemos o leitor para os mesmos quanto a um maior desenvolvimento do tema.

A indústria das sedas em Bragança no dealbar do Liberalismo (1820-1834)

A instauração do liberalismo em Portugal, com a revolução de 1820, não veio criar um novo quadro institucional favorável à indústria das sedas em geral e à tradicional indústria das sedas de Bragança em particular, que gozou de uma época de notável prosperidade em finais de Setecentos. A perda do Brasil em 1822, principal mercado de Portugal, assim como a instabilidade política que se viveu com as guerras civis que se prolongaram até 1847, vieram a revelar-se altamente negativas para o desenvolvimento desta indústria.
É certo que a Comissão para o Melhoramento do Comércio da Cidade de Lisboa, em 1822, nos seus trabalhos relativos à indústria, defendia que os géneros de agricultura e indústria estrangeira “idênticos aos nossos” deviam ser onerados com “fortes e proibitivos direitos”, e que fosse abolido o exclusivo da Fábrica Nacional das Sedas do Rato, passando esta, como as outras fábricas que laboravam por conta do Estado, para as mãos de particulares.
E que a Comissão do Comércio da Praça do Porto, cujos trabalhos foram tornados públicos em 1823, pronunciou-se no mesmo sentido, defendendo as manufaturas portuguesas “livres de direitos por exportação”.
Tais medidas, porém, assumidas justamente em 1822, ano da independência do Brasil, eram tardias e contrárias às ideias liberais em voga, apesar de o Vintismo se ter caracterizado por uma política económica protecionista. No que diz respeito à indústria, não existiam condições para se desenvolver uma política industrial consistente, tendo o decreto de 22 de dezembro de 1821 levantado a proibição da importação de fazendas manufaturadas da Ásia.

Casula em seda bordada a ouro, em Bragança

Para compreendermos a posição das Cortes Constituintes e dos governos do primeiro triénio liberal (1820-1823), é preciso ter em consideração que a política de apoio e incentivo à indústria das sedas desenvolvida pelo Estado nas últimas décadas do século XVIII não era pacífica e que os resultados obtidos com tal política eram dececionantes. Vários economistas e políticos continuavam a manter a posição de que uma indústria de luxo num país pobre só artificialmente podia subsistir. E que, a existir, então que fosse por iniciativa de empresários particulares e não do Estado.
As nossas criações, como reconhece Acúrcio das Neves, ministravam apenas “alguma parte da seda” utilizada nas fábricas do Porto e Trás-os-Montes, já que os estabelecimentos de Lisboa consumiam “quase exclusivamente as tramas e os pêlos produzidos, fiados e torcidos em países estrangeiros”. Com efeito, Portugal não conseguia garantir o volume e a qualidade da matéria-prima necessária às fábricas da seda. Em 1820, importadas de Itália, entraram 1 007 fardos, estimando-se cada fardo num milhão de réis. O País despendia assim, só num ano, cerca de dois milhões e meio de cruzados.
A situação em que se encontravam as fábricas de sedas, comparticipadas pelo Estado em 1820-1821, também não era, na verdade, de molde a suscitar a simpatia do Soberano Congresso. Em geral, toda a indústria da seda, por 1820, atravessava grandes dificuldades, devido à concorrência dos tecidos estrangeiros, no Reino e no Brasil.
A Comissão de Comércio da Praça do Porto, na sequência do inquérito promovido pelas Cortes Constituintes em 1821, vai apresentar um retrato sombrio quanto à indústria das sedas em geral e de Trás-os-Montes em particular. A produção da seda em Portugal encontrava-se “ao maior abandono”, obrigando o País a importar grandes quantidades daquela matéria-prima. Com exceção das fiadeiras de seda fina de Trás-os-Montes, cujas fiações rivalizavam com as da Itália, as fiadeiras de seda comum, que constituía o “forte da produção”, trabalhavam sem o “vagar indispensável à perfeição”, fazendo “uma mistura inútil de seda com anafaia, surrião ou desperdício”, aumentando o peso das teias ou novelos, desacreditando a produção e baixando o seu valor. Os filatórios de organsins e tramas existentes em Bragança, se bem que em grande número, eram “imperfeitos e grosseiros”, e se a produção dos tecidos de seda lisa e lavrada, retrós, fitas, lenços, etc., constituía a principal ocupação de muitas famílias bragançanas, a verdade é que estas trabalhavam isoladas, fora de estabelecimentos protegidos, e portanto, sem obedecerem a métodos e técnicas adequadas a uma boa qualidade.
A Comissão, para reanimar a criação do bicho-da-seda e a fiação da seda, propunha o estabelecimento de escolas de fiação de seda, onde as fiadeiras praticariam antes de assentarem roda; o estabelecimento de “graves condenações” às fiadeiras que fiassem irregularmente; o estabelecimento de prémios aos lavradores proprietários de amoreiras e às fiadeiras que laborassem na perfeição “e com limpeza”; e a elevação dos direitos de importação das sedas estrangeiras.
Logo em 1821, lavradores trasmontanos expuseram ao Congresso os problemas com que se debatia a indústria das sedas em Trás-os-Montes, nomeadamente o corte generalizado das amoreiras, com grave prejuízo público; o abuso da maior parte das fiadeiras, que, por ignorância ou malícia, fiavam pessimamente o casulo; e a importação da seda estrangeira. Em ordem a resolver tais questões, propunham, entre outras medidas, a proibição do corte de amoreiras; a proibição de as mulheres exercerem a fiação sem prévio exame da sua capacidade e habilidade, assim como a obrigação de as mesmas suportarem os prejuízos decorrentes da sua “má fiação”; e a proibição da importação da seda estrangeira.
A Comissão das Artes e Manufaturas emitiu um parecer declarando-se incapaz, quanto à destruição das amoreiras, de tomar qualquer medida, uma vez que “só o interesse individual é que eficazmente atalha os progressos desta destruidora mania”. E quanto aos abusos cometidos pelas fiadeiras, entendia que o Congresso deveria, logo que possível, dar as providências necessárias “sobre um ramo de indústria que tanto interessa”.
Em síntese, o novo regime liberal saído da revolução de 1820, não só não tomou qualquer medida para salvaguardar ou dinamizar a indústria das sedas em Bragança, como sancionou tacitamente o estado de anarquia em que se encontrava a produção, comércio e indústria das sedas em toda a região: a destruição das amoreiras; o monopólio de que era objeto a compra das sedas por parte de alguns negociantes do Porto, que impunham arbitrariamente os preços aos lavradores; a total desregulação da fiação; e a paralisação ou anemia dos principais centros industriais, precisamente Bragança, mas também Chacim.
A evolução do comércio e indústria das sedas bragançanas, entre 1820-1834, não deixa margens para dúvidas quanto ao seu afundamento e decadência. Em 1820, a Cidade de Bragança registava uma “pequena manufaturação de tecidos de seda, sarjas e cetins, tanto de cores como de preto”, de que era juiz conservador o corregedor da comarca, constituída por 37 fábricas, com outros tantos proprietários, nas quais trabalhavam 42 mestres, 69 oficiais, 19 aprendizes e 250 serventes, de acordo com as estações do ano e a venda dos seus tecidos. Dos 176 teares existentes, encontravam-se em atividade apenas 72, não só pela falta de seda em rama, mas também pela entrada de tecidos estrangeiros, o que dificultava a venda da sua produção. Dos sete tornos de torcer a seda trabalhavam apenas quatro. E quanto a tinturarias, existiam apenas duas, uma para o preto e outra para as restantes cores.
As 37 fábricas consumiam mais de 250 arrobas de seda, produzindo 84 000 côvados dos tecidos referidos, que eram vendidos para o Porto, Lisboa e outras terras e feiras do Reino (Quadro n.º 41).


Em 1821, a praça do comércio de Bragança, em memória apresentada às Cortes, vai dar conta dos fatores que tinham feito diminuir “extraordinariamente” o seu comércio, sendo um deles o estado “nulo” a que estava reduzida a fábrica de tecidos de seda que, 40 anos antes, chegara a contar 300 teares, quatro tinturarias e mais de 12 tornos, ocupando mais de 1 500 pessoas de ambos os sexos e de todas as idades, importando a mão-de-obra, mensalmente, em três contos de réis, quando, por 1821, funcionavam apenas 40 teares e nem sempre com caráter permanente.
Para se reanimar este comércio, tornava-se necessário promover o consumo dos tecidos, limitando a entrada dos tecidos estrangeiros, tanto de seda como de algodão, e acabar com o imposto dos 3% sobre a produção nacional.
Em 1825-1826, na Cidade de Bragança, existiam 11 proprietários de fábricas, com um número de 60 a 80 teares de seda, largo e liso – 20 de sarjas, 34 de tafetás, cetim e outros de lenços, veludos e cabaias, além de oito tornos para a seda torcida, e duas a três tinturarias, uma de cor e uma ou duas de preto. Trabalhavam nas fábricas 17 mestres, 81 oficiais, e entre 288 a 513 aprendizes e serventes, quase todos do sexo feminino. E as tinturarias, além dos dois proprietários, empregavam três a quatro mestres e nove a 12 serventes.

Lenço de seda bragançano com texto em latim

Mas as dificuldades para a indústria das sedas não pararam de aumentar ao longo dos anos seguintes. Com efeito, em 1827 – e é preciso não esquecer que, neste ano, a indústria das sedas em Trás-os-Montes já se encontrava em ampla regressão –, existiam em Bragança apenas 60 teares, oito tornos e três tinturarias. No total, cerca de 400 habitantes da Cidade estavam empregados nesta indústria.
Em 1829, já a indústria das sedas bragançana estava reduzida apenas a quatro proprietários ou fabricantes, com dez teares de sarjas e 20 teares de tafetás, dispersos pelas ruas da Cidade, que empregavam anualmente 2 000 arráteis de seda e produziam 5 000 côvados de tafetás, 300 de sarja, 1 000 de nobreza e 600 em lenços. Nestas fábricas, ocupavam-se 20 mestres, 20 oficiais, 10 aprendizes e 20 serventes. Todas as fábricas se localizavam na Cidade, distribuídas por diferentes ruas e pela cidadela, tendo o seu número diminuído consideravelmente, devido à introdução das fazendas estrangeiras de seda e de algodão. Existiam, ainda, dez tornos de seda e duas tinturarias, pouco funcionando a de cor, uma vez que apenas tingia algum carmesim branco e fino. O consumo anual de combustível era de 102 arrobas de lenha e os materiais consumidos eram o sumagre, sabão, galha, açúcar e caparrosa.
Em suma, após as invasões francesas, esta indústria nunca mais recuperou os níveis de qualidade e produção que atingira antes de 1808, muito particularmente, após a instauração do regime liberal, devido a um conjunto de fatores estruturais e conjunturais. As destruições causadas pelos franceses, a desarticulação de toda a nossa estrutura industrial e circuitos comerciais, a perda do mercado brasileiro em regime de exclusivo até 1808 1810, a concorrência dos tecidos ingleses, sobretudo de algodão, da primeira Revolução Industrial, e o contrabando vão contribuir, de forma esmagadora, para a violenta quebra que a indústria transmontana das sedas vai sofrer a partir de então.
O regime liberal, como já referimos, não veio criar um novo quadro favorável a esta indústria. Em primeiro lugar, importa referir que as exportações portuguesas de sedas para o Brasil, que se tinham mantido relativamente elevadas até 1821, descem significativamente, entre 1822-1830, ou seja, logo após a declaração da independência daquela colónia. Com efeito, a partir de 1822, desencadeia-se a crise no principal mercado do Brasil, o Rio de Janeiro, apenas se conservando com alguma importância as exportações das sedas do Porto. Tudo indica que os produtos portugueses, nesta década, sofrem agora, mais duramente, a concorrência de outros países no mercado brasileiro, apenas resistindo, quanto às sedas, o retrós fabricado na região do Porto. E, portanto, se já na década anterior a indústria das sedas de Bragança se ressentira da perda do mercado brasileiro, muito mais se vai ressentir, agora, na década de 1820 -1830, durante a qual todos os estabelecimentos nacionais de seda agonizam.
Em segundo lugar, como referem os negociantes da praça de comércio de Bragança e as informações dos magistrados locais, os tecidos de seda não conseguiam competir com as manufaturas inglesas e chinesas, superiores em qualidade e inferiores em preço, razão pela qual eram preferidos nos mercados nacional e espanhol.
Em terceiro lugar e relacionado com o mercado brasileiro, convém ter em conta que o Porto, após as invasões francesas, beneficiando das dificuldades sentidas pela Fábrica das Sedas do Rato, da Real Companhia das Sedas e mesmo do afundamento das fábricas de sedas do Nordeste Trasmontano, vai reforçar a sua posição neste setor.
A produção das fábricas de seda de Bragança não podia competir com a produção das fábricas do Porto, mais bem apetrechadas tecnicamente e pertencentes a capitalistas que dominavam mais eficazmente os circuitos de distribuição, nacionais e internacionais.
Em quarto lugar, a indústria das sedas ressentia-se da escassez de capitais e da inexistência de empresários capazes de dinamizarem a iniciativa privada, face ao desinteresse manifestado pelo Estado. Os fabricantes de sedas da província, “homens de muito poucos fundos”, só produziam novas “fazendas” depois de venderem as que já tinham manufaturado. Em Bragança, depois de Lopes Fernandes, que abandonou a Cidade em finais do século XVIII, não mais apareceu qualquer outro capitalista dedicado ao trato das sedas. A escassez de capitais, aliás, constituía, em Bragança, o principal obstáculo à renovação das técnicas, à contratação de “mestres peritos” das sedas, à aquisição, por exemplo, das máquinas de tecer à Jacquard, já utilizadas em Lisboa por 1825, ou de uma “calhandra para o arranjo dos tecidos”, a fim de os tornar mais atrativos aos compradores.
O quinto estrangulamento, de natureza estrutural, tinha a ver com a desregrada criação do bicho-da-seda e com a péssima fiação que proliferava, sem inspeção nem regulamentos, limitando drasticamente a utilização da seda local na tecelagem, apesar de todas as queixas e reclamações que eram apresentadas ao Governo, no sentido da sua disciplina e regulamentação, da adoção/imposição dos métodos piemonteses e de tal operação só poder ser efetuada na Fábrica de Chacim ou nas escolas dirigidas pelos Arnauds.

Pisão, instrumento para preparação de tecidos, típico de Bragança

Finalmente, convém não esquecer as lutas políticas e sociais desenvolvidas a partir da revolução de 1820, impedindo a resolução dos graves problemas económicos com que o País se debatia, nomeadamente ao nível da indústria das sedas, e institucionalizando um clima de guerra civil, latente ou efetivo, que se veio a prolongar até meados do século XIX – a contrarrevolução de 1823, iniciada justamente em Trás-os-Montes pelo conde de Amarante, seguida, ainda no mesmo ano, da Vilafrancada, da Abrilada (1824), da guerra civil de 1826-1827 (no âmbito da qual Bragança foi saqueada), do levantamento militar do Porto (1828) e finalmente da guerra civil que liquidou o Miguelismo (1832-1834) –, muitas das quais tiveram justamente como palco privilegiado Bragança, não é difícil compreender o impacto extremamente negativo que estes conflitos tiveram para a indústria das sedas naquela região, desarticulando os mecanismos de produção e os circuitos de distribuição, mobilizando civis e militares para as bandeiras em confronto, expatriando gentes, perseguindo, prendendo e matando inúmeras pessoas, enfim, paralisando por muito tempo as fábricas de sedas.

continua...

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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